sábado, 28 de março de 2009

Onetti e a vida breve

"Acordada, aceitando estar acordada depois de lutar um pouco para merecer novamente o nada, encontrava-se, depois, com a forma côncava de sua desgraça. Ficava acordada na cama, imóvel e de olhos fechados para que eu pensasse que ela estava dormindo, para que não falasse com ela, esperando com impaciência o ruído cuidadosamente lento que eu fazia na porta ao sair. Desperta e imóvel, ampla, pesada, jogada no centro cálido da cama, de costas, com uma perna dobrada e um braço rodeando a cabeça; com os lábios separados e ansiosos por reconstruir a convincente imagem dela mesma adormecida, ouvia meus movimentos no quarto, o início dos preparativos para deixá-la sozinha até a noite. Sentia-me consultar o relógio e sentar-me na cama - nao eu; esta forma, este peso, este corpo -, calçar devagar os chinelos (estas costas de homem de pijama), arrancar-me do sono e aceitar o repugnante começo da jornada. Ouvia-me ir até o banheiro, desviar, na luz escassa, as cadeiras, a mesa, a cesta de revistas, deter-me, talvez, para examinar o semblante da manhã estendida no vidro da sacada. Ouvia o rumor da ducha; imaginava-me, forma sem sexo, curvado sobre a pia, supunha o sussurro da navalha sobre minha barba. Depois me ouvia regressar, estremecendo, invadindo o quarto com o cheiro de sabonete. Ouvia-me suspirar enquanto me vestia, tolerava o momento de silêncio em que eu dava o nó na gravata diante do espelho. Depois - eu estaria movendo meus olhos inchados em busca do chapéu - endurecia as coxas para transformar em pedra a estátua de Gertrudis adormecida e para que a energia de seu corpo contraído chegasse até minhas costas e me impelisse a sair. Depois, separada de mim, de alguém, de uma presença, de um corpo, de uma espessura desse corpo, da memória de seus cheiros e de sua temperatura, imitava a postura dócil e hipócrita dos mortos, unia as mãos sobre o ventre, juntava os joelhos e se dispunha a receber as suaves vozes que proclamavam sua infelicidade, sua derrota, o volume do pedaço que faltava em seu corpo e que haveria de faltar, proporcionalmente, em toda a felicidade futura."

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Eu acho que até hoje não me tinha apresentado à literatura de Onetti porque precisei crescer muito para poder lê-lo. E ainda estou abismada com a beleza de sua frase e a grandeza dos universos que ele cria para mim.

Estou ainda em estado de começo, mas tudo que ele diz, e a forma como diz, me aponta que a literatura é o lugar sagrado da dignidade humana.


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A vida breve. Juan Carlos Onetti. Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Planeta, 2004, p. 70.


domingo, 22 de março de 2009

Gran Torino, asas e canções



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Escrever um blogue também escraviza, e estou tentando me livrar de algumas algemas que me prendem. Claro que é uma forma de estar na coisa, não é intrínseco ao ato de escrever aqui, mas incomoda um certo sentimento de obrigação, como se eu não pudesse mais parar com essa coisa.

Então, estou dando 'uns tempos' para testar as asas (aliás, uma das coisas mais aflitivas para mim é ver o nome desse blogue naqueles links em que aparece o título do post e mais 'escrito há XXX horas', isso me dá uma angústia, é como se eu estivesse participando de uma maratona - e, de novo, isso é maluquice minha, claro, são sentimentos que não têm nada a ver com a realidade, mas vai querer entender todos os sentimentos dos 'à beira de'...).




Sobre Gran Torino, o filme todo é cheio de problemas, alguns deles: o grande Eastwood faz caretas demais, está quase caricato; o filme é descaradamente ideológico, pinta pela bilionésima vez o americano médio como o bom moço, capaz de transformar-se pelo bem do outro (!!!) e, muito mais que isso, capaz de morrer pelo vietnamita invasivo, uma quase piada não fosse o trágico da situação. De modo que tudo me soou bem falso no filme, ou quase tudo.


Mas há um momento breve, no final, quando os letreiros sobem e alguém canta uma canção lindíssima, voz rascante e doce, acho que é o próprio Eastwood cantando. Esse foi o momento ótimo, o punctum do filme (sempre achei que as trilhas dele são uma finura à parte e, nesse, que parece ser seu último como ator, ele nos dá esse presente. Gostei, mesmo que não seja sua voz - acho que é - aceito o presente).



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quarta-feira, 11 de março de 2009

Eu, sua mãe

Esse texto foi publicado no Idéias em 10/08/86, sobre o livro Eu, sua mãe, de Christiane Collange. Tradução Lucia Melim, Editora Rocco. Aqui, um trecho.

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O interesse maior de Eu, sua mãe vem da ousadia da autora em derrubar alguns tabus até há pouco intocáveis com relação à 'instituição materna' e, fundamentalmente, em desculpabilizá-la de toda sorte de problemas dos jovens imputados à educação que os pais lhes dão. É tocante ler essa quase carta-aberta de uma mãe a seus filhos, decepcionada com o uso que eles fazem de uma liberdade tão arduamente conquistada pelos de sua geração. É patético observar as contradições de quem depositou na geração seguinte as esperanças de um reconhecimento por esse esforço e constata um solene desprezo por valores tais como respeito ao próximo, responsabilidade, desprendimento, preocupações com o futuro ou com uma profissão.

Longe de desfiar um 'rosário de lágrimas' por essas distorções, do tipo 'onde foi que eu errei?', a autora retira o foco de luz - e de culpas - da cena materna e o coloca sobre os adolescentes - esses seres tão complicados. É à mãe agora que cabem as reclamações contra o autoritarismo filial. Ela põe em discussão e em seu devido lugar a acomodação dos jovens numa situação que lhes é em tudo favorável: têm casa, comida, não pagam impostos, não conhecem o valor do dinheiro ganho com o trabalho, dilapidam os bens acumulados pelos pais ao longo de uma vida útil, além de se acharem no direito, conquistado pelo nascimento, de fazer toda sorte de chantagens para manter
seus privilégios. É sem dúvida uma visada corajosa da autora e só possível a quem já desbastou, ajudada pelos conhecimentos trazidos pela psicanálise, o difícil emaranhado de culpa e de amor que permeia a relação mãe/filho.

[Considero, em vários sentidos, muito atuais as questões colocadas pelo livro da Collange, embora outros complicadores tenham surgido para os jovens nesses últimos vinte anos, desemprego entre eles, mas penso que o mais terrível talvez seja a falta de lugares sociais onde colocar o desejo, o imaginário e a própria constituição de si de forma íntegra].


segunda-feira, 9 de março de 2009

Rumba


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Rumba é um filme diferentíssimo, não tenho parâmetros para comentá-lo, mas gostei de alguns momentos, não entendi outros, e os números de dança são sempre ótimos, um em especial, sobre o oceano, é tocante. Outra coisa boa: sempre reclamo de que não vemos outra cultura além da estadunidense nos filmes da TV, ou nos cinemas, é uma overdose acachapante. Deste filme não se pode reclamar: é o inteiramente outro, sendo um pouco nós mesmos, latinos, mas de um jeito engraçado, meio torto, meio gauche, meio louco. Enfim, gostei de ter visto, o Antonio também gostou e o Cine Glória tinha mais alguns espectadores dessa vez.


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domingo, 8 de março de 2009

Sobre crônicas e resenhas

Durante alguns anos escrevi resenhas para o Idéias do JB, lá pelos idos da década de 80. Resolvi trazer para esse blogue alguns trechos dessas resenhas, porque não estou querendo postar apenas sobre meus romances recém-lidos, isso cria um compromisso de trabalho que não estou podendo assumir por agora, até porque tenho de me concentrar para escrever "à vera", como diz minha amiga.

Então, para começar, um excerto de uma resenha sobre Moça deitada na grama, de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 19/12/87.

Escrever sobre o primeiro livro de Drummond publicado após sua morte é tarefa, no mínimo, inquietante. Primeiro, porque há uma expectativa do leitor gerada pela presença/ausência a que a obra remete; segundo, porque Moça deitada na grama é uma coletânea de crônicas e em nossa memória e história literárias Drummond será, para sempre, o Poeta que também escrevia crônicas. Aliás, escreveu-as ao longo de sua vida - este é o décimo sexto volume em prosa, e o primeiro, Confissões de Minas, data de 1944.

Organizadas pelo autor nos últimos meses de vida, estas sessenta crônicas percorrem um tempo cronológico que abarca a década de 80 e passeiam por temas pinçados no vasto painel da realidade cotidiana, iluminada, assim, por um olhar às vezes humorístico, às vezes irônico, frequentemente crítico. Pois é deste ofício de recortar o real e oferecê-lo ao leitor, em conversa inteligente e em convívio estreito, que vivem crônica e cronista. Desse convívio, aliás, nasce a matéria de "O leitor e o lido", colcha de comentários que lhe fazem seus leitores, costurada com ironia e bom humor, a que caberia apropriadamente o subtítulo de 'todo leitor de crônicas é um cronista em potencial'. Em outro texto, o autor reclama da exiguidade de tempo de que o leitor dispõe para oferecer-lhe em face do excesso de assuntos a serem comentados ("Cinco minutos é o meu tempo, ou o tempo do leitor para me ler. Dá-me cinco minutos para comentar o mundo, ou o pedaço de mundo que atrai o interesse coletivo. Como sair dessa...?").
Tática de conquista e técnica de quem conhece as manhas do ofício, reafirmadas no perfeito e singelo diálogo entre pai e filho, apoiado no duplo sentido do verbo cair, em "Vó caiu na piscina". Caiu porque jogou-se ou porque tropeçou?

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Cássia fala

Trechos da entrevista da Cássia Kiss à Isto É desta semana que achei interessantes:


ISTOÉ - A sra. brigou muito com a psiquiatria?
Cássia - Não, mas demorei para achar um profissional do qual eu gostasse. Eu me lembro de ter ido a uma consulta com um psicanalista e de ter ficado ali na frente dele por uns 15 minutos. Ele não falou nada. Daí eu me levantei e fui embora irritada. Que diabo de psicanalista é esse que não fala coisa nenhuma? Mas hoje tenho um psiquiatra e um psicanalista. Eu preciso muito deles.


ISTOÉ - E o tratamento?
Cássia - A vida se descortinou. É como se pegassem uma brocha de tinta e dessem uma pincelada no mundo, e então ficasse tudo colorido. É exatamente isso o que aconteceu. O medicamento me trouxe equilíbrio.


ISTOÉ - Que tipo de problemas esse transtorno causou para a sra.?
Cássia - Eu sempre gostei da verdade, mas eu não tinha muito critério. Dizia verdades agressivas às pessoas. Machuquei muita gente. O meu desequilíbrio era exatamente a bipolaridade - uma hora está-se eufórica, outra hora está-se na depressão total. Na euforia eu saía pedindo desculpas para todo mundo, mandando flores. Era uma mão-de-obra do cão. Eu tinha de encontrar caminhos para poder me desculpar com as pessoas e nem sempre elas me desculpavam. Quando estava bem, não construía nada, só tentava consertar o que tinha destruído no período anterior, em que estava mal. Fui muito impulsiva e saía comprando um monte de coisas e depois via que não queria nem precisava de nada daquilo. A bipolaridade provoca isso, e esses dois extremos são destruidores.


ISTOÉ - Fale de suas personagens.
Cássia - Os personagens só somaram para mim. Nenhum deles me subtraiu ou me destruiu. Pelo contrário, sempre me fortaleceram. E me agrada a mulher que eu sou hoje e eu devo isso a todas as personagens que interpretei. Surfei em universos muito distintos. Eu matei sete personagens numa novela (como Adma, em Porto dos milagres, da Rede Globo). E eu adorava. A maldade não tem compromisso, não tem ética. É uma delícia não ter compromisso com nada. Compromisso dá trabalho. Eu tenho compromisso com meus filhos. E, nesse sentido, ser mãe é uma grande meleca.


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sexta-feira, 6 de março de 2009

um filme

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Sobre o filme Alguém que me ame de verdade : ... ... ... ... ...


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quinta-feira, 5 de março de 2009

blog errático

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Estou fazendo uma brincadeira. Crei outro blog (nome e email outros, claro) e ele está solto por aí, sem pai nem mãe, à deriva, à espera de que alguém o encontre. É tão interessante como andar anônima numa cidade desconhecida.

ps em 09/07/011: perdi esse blog, não tenho idéia do seu nome, nem sua senha, nada. Hoje ele é um fantasma solto nas nuvens.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Calcanhotto, filmes, oásis etc

Ir ao cinema será sempre programa cultural, mas nas últimas semanas tem sido também refúgio para o calor insano que tem feito na cidade. Assim, fui conhecer o minúsculo Cine Glória, bonitinho, todo novinho e quase ninguém por lá, uma pena. O filme que vi então - melhor esquecer, que de juventude não tem nada, é velho, velho, assim como o ego imenso do diretor e um dos atores (Domingos de Oliveira), que coisa mais chata aquela conversaria de homens bobos, nada que me chame para o papo, enfim.

Acabei indo ver Ninho vazio, e não sei bem o que pensar dele. No geral, excessivo. No particular, algumas cenas boas, os dois protagonistas bons, mas para mim muita coisa não funcionou, não engrenou, uma história com muitos furos, e afinal fiquei sem saber se os filhos faltam ou já foram tarde...

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De todo modo, valeu ter passado na livraria e visto um livrinho despretensioso da adriana calcanhotto (agora com dois tt ou já tinha antes?) - Saga Lusa - a respeito de uns problemas alérgicos que teve numa turnê do show maré, em portugal.

O ótimo é que ela escreve bem, é irônica e mordaz, engraçada e tem um estilo com uma pegada meio modernista, meio oswald de andrade, mas não fica demodé não.

Outra coisa boa é que a gente fica o tempo todo imaginando o que pode ou não ter acontecido, se aquela piração teria sido real ou não, porque ela usa o próprio nome, as canções que compôs e várias outras referências ao mundinho real. É um voyeurismo leve, brincalhão, uma leitura agradável, que eu engrenei desde o momento que cheguei à casa e só larguei no fim do livro e da noite.

Trechinhos:

Minha mãe sempre me disse que um dia eu ia escrever um livro, gozado. A gente se esforça, batalha, luta, faz psicanálise, vai ao teatro, tudo, pra se constituir, pra ter recorte. Aí, na primeira surtadinha faz o quê? O que mamãe queria. Não sei não, achei meio caído. (p. 66).

Albuquerque querido veio me buscar para irmos ao médico, acho que viciei nisso também. Ele tem um ótimo que o ajuda com as drogas, pra dormir, pra acordar, pra subir, pra descer, pra renascer, pra zoar, pra pintar, pra ser, pra estar. Abre-se a porta do elevador e lá está no saguão do hotel o meu amigo, com um sorriso largo e um par de brincos deslumbrantes para oferecer, presente pra mim, que ele não bate bem da cachola. Não podem ser mais lindos, parecem etruscos. (p. 94).

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Adriana Calcanhotto. Saga lusa: o relato de uma viagem. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.