quarta-feira, 26 de setembro de 2007

sobre Viagens no scriptorium

Estou para falar sobre o Viagens no scriptorium, do Paul Auster, mas meio intimidada, deve haver um mar de textos escritos sobre ele, que eu não li. Na verdade, de toda a sua obra só li essa até essa data, e de toda a sua fortuna crítica li apenas o comentário do Lucas, linkado aí embaixo. Convenhamos, ainda é pouco. 

Mas acho que posso dizer que o autor conhece tudo de literatura, ou seja, ele faz questão de escrever deixando à mostra todo o tempo o jogo que está jogando, em níveis diversos. Por exemplo, na escolha do nome do personagem (sobretudo o Blank); no fato de haver uma estória subjacente à estória narrada que vai-se aproximando de tal maneira do personagem que acaba se transformando na estória propriamente do que ele é: pura ficção. 

De modo que o autor vai nos levando numa prosa elegantíssima (frase que não diz nada mas aqui significa que a linguagem que ele usa nos dignifica, nos enobrece, é clássica, correta, bela, ou seja, ele faz o que quer com a palavra escrita) pelo coração dessas estórias que não se resolvem, não têm fim (nem começo, aliás), mas que seguimos fascinados até a constatação final de que somos cúmplices daquele aprisionamento aparentemente injusto de Blank, somos todos carcereiros do Guantánamo particular em que se transforma aquele quarto, na verdade, somos nós, leitores, os autores dessas vidas, dessas estórias, dessas páginas, dessa obra. Nunca o leitor teve um lugar tão privilegiado numa obra de ficção, que eu me lembre. Preciso ver se ele (esse leitor) cabe na teoria do Iser. Ah, sim, e lerei o Leviatã (que nome forte!) no futuro próximo.

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Paul Auster. Viagens no scriptorium. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

sábado, 22 de setembro de 2007

sobre Por que sou gorda, mamãe?

Pois é, depois de ler a resenha da Renata Miloni na Copa de literatura (ver site ao lado) sobre os livros da Cíntia Moscovich e do Daniel Galera, eu tinha decidido que nenhum dos dois havia me seduzido e não os compraria, mas aí veio o resultado parcial da seleção do prêmio Portugal Telecom 2007 e o livro da Cíntia estava entre os dez, daí fui saber por quê. E só posso entender a escolha em virtude de que é muito, muito difícil criticar o livro da Cíntia, porque ele tem uma qualidade que não constitui um valor literário em si, mas que torna difícil sair isento de seu universo: a sinceridade. Parece que a autora se entregou a esse projeto com a visceralidade de uma aposta de vida ou morte, e o personagem não poupa a mãe, ao contrário, a mãe é efetivamente a megera da estória, aquela que detonou o amor dos filhos (o amor pelos filhos), descrita como egoísta, mesquinha, perdulária, enfim, ninguém precisa aqui de madrasta má. 

Vai-se lendo aquela enxurrada de confidências e de despautérios dirigidos a essa mãe, sobretudo, mas também a uma família e uma tradição duríssimas com a criança que a personagem-narradora foi. A uma certa altura, dá um pouco de constrangimento por estar sendo cooptado a ver, bisbilhotar e, de certo modo, situar-se como voyeur e mediador daquelas cenas 'domésticas', espécie de 'lavagem de roupa suja' em público que, muito raramente, consegue ir além da confidência pessoal. 

Ser ou não ficção importa menos do que o pacto de sinceridade que a narradora estabelece com seu leitor, mais que isso, pacto de cumplicidade, como se essa escandalosa sinceridade pudesse avalizar não apenas o que ela diz, mas o texto que o diz - sua obra. Além disso, que mulher-leitora, sobretudo, com quilos a perder, não tem contas a ajustar com uma mãe omissa de amor, com uma família repressora ou com uma tradição obsoleta, nas costas de quem jogar os excessos do corpo que compensam a parca vida dos afetos? 

Enfim, penso que as qualidades do livro de Moscovich estão mais no que ele tem de apelo aos sentimentos mais primitivos do leitor (nesse caso, os conflitos na relação mãe/filha), e menos no jogo com a literatura.

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Moscovich, Cíntia. Por que sou gorda, mamãe? Rio de Janeiro: Record, 2006.


sexta-feira, 21 de setembro de 2007

as mulheres dos maridos

Estava lendo a resenha que o Lucas Murtinho fez do Viagens no scriptorium (http://www.zapbangmagazine.com/literature/fiction_reviews/16/ ), do Paul Auster, em que ele começa fazendo menção a um comentário sagaz da mulher dele: “Paul Auster is getting old”, my wife wrote on the first page of Travels in the Scriptorium. She’s right, as always; I’d only add he’s also really scared of it". Assim começa a ótima resenha que vai, afinal, situar no conjunto da literatura do autor norte-americano não apenas esse livro, mas seus temas e as técnicas utilizadas ("the potential role of obsessions in life, the tension that rises from artistic creation"), bem como a noção de coincidência ("these moments when reality becomes symbolic") e em que Auster, segundo Murtinho, "has followed a path that started on the symbolic and strange and slowly but surely approached the real and quotidian". A resenha é ótima, cumpre sua função de dizer por que um livro é bom, um autor merece ser lido e o que esperar das obras que menciona. Mas o motivo deste post é mesmo para comentar sobre a presença de viés de algumas mulheres de blogueiros, como essa da do Lucas e a do Dr Plausível, na Copa de literatura (http://www.copadeliteratura.com/ ), que na ótima resenha sobre os dois livros sob sua responsabilidade traz o comentário da mulher, muito apropriado: "Ri muito quando minha esposa, ao me ouvir ler em voz alta algumas frases mais abstrusas do livro, disse “Esse pessoal parece q não aprendeu nada com os modernistas"". E como eu já percebi que há menos mulheres (ou nicks de mulheres) nos blogs sobre literatura que eu freqüento, acho engraçado esse "andar na sombra dos maridos" em pleno século 21. Adoraria saber por que elas mesmas não escrevem o que os maridos dizem que elas dizem. :)


terça-feira, 18 de setembro de 2007

blog do Meirelles

Acabei de descobrir o blog do filme Ensaio sobre a cegueira (Blindness, um nome lindo), que está sendo rodado pelo Fernando Meirelles, e li a primeira postagem (ainda é pequeno) sobre carisma, como é bom, como escreve bem a figura e como é apropriado seu comentário sobre os atores que ele cita. Está lá em http://blogdeblindness.blogspot.com/

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Ainda o Tezza

Gostei tanto de O filho eterno, do Tezza, que estou lendo outros livros dele. Comecei O fantasma da infância, mas demorou a engatar e peguei outro, Aventuras provisórias, que acabei de ler. O narrador aqui continua aquele ser indócil, duro, com suas obsessões e fraquezas, o que não diz nada, mas é disso mesmo que vive o romance: as aventuras desse personagem em torno do seu universo, em que a mãe, o amigo torturado pela ditadura, as amantes, a mulher burrinha com quem ele se casa, a experiência comunitária, enfim, o mundo das relações amorosas e afetivas constituem a trama narrativa. O que cativa especialmente nem são tanto as histórias desses seres envolvidos em suas pequenas guerras cotidianas, mas a linguagem ágil, o domínio que o autor tem do modo de narrar, embora eu pessoalmente considere esse (se comparado com O filho) um romance mais "macho", cheio de clichês do universo masculino, do vaivém das mulheres, do amor-dor-bebida-ressaca etc, mas com muitos momentos intensos, de boas sacações e lirismo. Vejamos esse:

"Penso e peso o rompimento, o momento final, e continuo sem compreender por que nos separamos - ou por que eu detonei a separação. Mas ainda não é isso: é por que aconteceu daquele modo, tão estupidamente, sem dignidade. Não merecíamos um fim de festa tão tosco. A falta de filhos, minha mãe, o cheiro de incenso, tudo isso são miudezas, têm de fazer parte da vida, porque não estamos numa redoma asséptica. Vivemos na poeira, no resfriado, na chuva, na foice, no suor, no medo, no arrepio. Vivemos nos esbarrando bêbados e burros, tagarelando sem propósito. Mesmo assim, deveríamos contar com uma breve margem de segurança, que não nos quebrasse tanto." (Aventuras provisórias, Record, 2007, p. 80).

Então a coisa fica assim: há os delizes dos ecos, das frases com aliterações e repetições fáceis ('fim de festa tão tosco'), mas o homem é um ótimo romancista, sem dúvida.


quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Eu também vi

Tá certo, eu também vi, todo mundo que quis, viu. Achei um bom filme, no máximo, e se for pela linha do documentário o Bope fica meio mal, ao contrário do que se apregoa, porque a cena de tortura não passa despercebida mesmo. Se nossa polícia de elite, o crème de la crème, faz aquilo tudo, imagina o resto. Mas há qualidades inegáveis no filme, seja visto como documentário, seja como ficção, porque apresenta um painel complexo e sobre a complexidade das relações entre polícia, bandido e os grupos sociais no Rio de Janeiro, o que já é coisa à beça. E, parafraseando o Xexéu, eu provavelmente vou ver Tropa de elite também no cinema, menos por questões morais (comprar o pirata no chão alimentou a família do vendedor, que tem mulher e filho pequeno pra criar, além da lei Rouanet que pagou uma parcela do filme etc, etc), que não são tampouco as dele, e mais porque quero ver o bang-bang em tela grande.

sábado, 8 de setembro de 2007

Reinaldo Azevedo e a educação

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Replico aqui excerto do ótimo ensaio do Reinaldo Azevedo, publicado na última Veja (edição 20025, de 12/09/2007), que deve ser lido na íntegra por todos aqueles que lidam e/ou se preocupam com o ensino da língua portuguesa na atualidade. Além dos argumentos excelentes, ainda se ri um tantinho:


Restaurar é preciso; reformar não é preciso
[...]
Não é só a língua portuguesa que está submetida a esse vexame, é claro. As demais disciplinas passaram e passam pela mesma depredação. A escola brasileira é uma lástima. Mas é nessa área, sem dúvida, que a mistificação atingiu o estado de arte. Literalmente. Aulas de português se transformam em debates, em que o aluno é convidado (santo Deus!) a fazer, como eles dizem, "colocações" e a "se expressar". Que diabo! Há gente que não tem inclinação para a pintura, para a música e para a literatura. Na verdade, os talentos artísticos são a exceção, não a regra. Os nossos estudantes têm de ser bons leitores e bons usuários da língua formal. E isso se consegue com o ensino de uma técnica, que passa, sim, pela conceituação, pela famigerada gramática. Precisamos dela até para entender o "Virundum". Veja só:

"Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante"

Quem ouviu o quê e onde, santo Deus? É "as margens plácidas" ou "às margens plácidas"? É perfeitamente possível ser feliz, é certo, sem saber que foram as margens plácidas do Rio Ipiranga que ouviram o brado retumbante de um povo heróico. Mas a felicidade, convenham, é um estado que pode ser atingido ignorando muito mais do que o hino. À medida que se renuncia às chaves e aos instrumentos que abrem as portas da dificuldade, faz-se a opção pelo mesquinho, pelo medíocre, pelo simplório.As escolas brasileiras, deformadas por teorias avessas à cobrança de resultados – e o esquerdista Paulo Freire (1921-1997) prestou um desserviço gigantesco à causa –, perdem-se no proselitismo e na exaltação do chamado "universo do educando". Meu micro ameaçou travar em sinal de protesto por escrever essa expressão máxima da empulhação pedagógica. A origem da palavra "educação" é o verbo latino "duco", que significa "conduzir", "guiar" por um caminho. Com o acréscimo do prefixo "se", que significa afastamento, temos "seduco", origem de "seduzir", ou seja, "desviar" do caminho. A "educação", ao contrário do que prega certa pedagogia do miolo mole, é o contrário da "sedução". Quem nos seduz é a vida, são as suas exigências da hora, são as suas causas contingentes, passageiras, sem importância. É a disciplina que nos devolve ao caminho, à educação.

Professores de português e literatura vivem hoje pressionados pela idéia de "seduzir", não de "educar". Em vez de destrincharem o objeto direto dos catorze primeiros versos que abrem Os Lusíadas, apenas o texto mais importante da língua portuguesa, dão um pé no traseiro de Camões (1524-1580), mandam o poeta caolho cantar sua namoradinha chinesa em outra barcarola e oferecem, sei lá, facilidades da MPB – como se a própria MPB já não fosse, em nossa esplêndida decadência, um registro também distante das "massas". Mas nunca deixem de contar com a astúcia do governo Lula. Na citada prova do Enem, houve uma "modernização" das referências: em vez de Chico Buarque, Engenheiros do Hawaii; em vez de Caetano Veloso, Titãs. Na próxima, é o caso de recorrer ao funk de MC Catra: "O bagulho tá sério / vai rolar o adultério / paran, paran, paran / paran, paran...".
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terça-feira, 4 de setembro de 2007

E falando em mordomos

E falando em mordomos, não dá para não lembrar da atuação do Anthony Hopkins em The remains of the day (Vestígios do dia), o belíssimo filme do James Ivory (1993), que tem também em ótimas atuações Emma Thompson, Hugh Grant e Christopher Reeve. Sobre este último, é muito estranho vê-lo ainda andando, no auge da vida e lembrar que dois anos depois, em 1995, sofreria um acidente terrível ao cair de um cavalo e quebrar duas vértebras, ficando completamente imóvel do pescoço para baixo. Ver aquele homem belo, forte, cheio de vida, que daí a poucos anos será completamente diferente, levará uma vida dificílima e fará enormes esforços, publicamente, para superar suas imensas limitações, tudo isso dá uma compreensão de que a vida é profundamente estranha, e o aleatório ronda qualquer um de nós.
Quanto ao mordomo do Hopkins, o Santiago deste filme, é possível ver que é um obsessivo, um sujeito que leva as atribuições de suas funções até o limite da exaustão, e eu me identifico profundamente com ele. Gosto da idéia de que algo que precisa ser feito tem de ser perfeito, o melhor possível, nem que para isso se gaste a vida, o tempo, o corpo, as mãos, o que for.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Entrevista

Numa entrevista do João Moreira Salles ao Canal Brasil ele comentava sobre a possível prepotência no filme, que era possível haver, sim, que talvez fosse inevitável na relação com um empregado de tantos anos, que morava na casa. Também observou que não quisera mesmo ouvir as confidências do empregado, que o corte dado fora proposital. Fiquei pensando que talvez meu comentário sobre a ajuda para comprar o apartamento tenha sido inadequado: e se o patrão tiver ajudado o empregado a ter aquele imóvel, ou mesmo se tiver dado a ele o apartamento? Pode ser, e jamais saberei porque isso não é uma coisa que qualquer dos filhos vá contar.