domingo, 30 de dezembro de 2007

ele e os outros

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Parece que o Daniel Auteil está se especializando em filmes do tipo "o que se aprende quando nos abrimos para as pessoas simples", e isso não é uma ironia (pelo menos, não inteiramente). De forma semelhante ao que sucede em Meu melhor amigo, também aqui, em Conversas com meu jardineiro, há a aproximação de um homem relativamente só (já que incapaz de manter suas relações de afeto) com um antigo amigo de escola, cuja ocupação agora opõe culturalmente os dois mundos: um ferroviário aposentado que se dedica ao trabalho de que mais gosta - a jardinagem, e um pintor reconhecido, mas um tanto frustrado.

Esses dois homens retomam juntos o fio da vida a partir das lembranças de moleques e constituem uma parceria de afeto que vai render a ambos boas conversas, rememorações, solidariedade, compreensão, enfim o que faz valer a vida entre amigos.

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sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

site interessante

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Conheço esse site há alguns anos, e sempre que vou lá me surpreendo com a criatividade dessa pessoa, que eu não tenho a menor idéia de quem seja, mas acho que o projeto todo é subvencionado por alguma instituição da Holanda, e é muito, muito criativo e interessante. Encontrei lá esse poeminha que é a cara da bel seslaf e, eventualmente, da clara :).

Acho que o autor se chama assim: Jogchem Niemandsverdrie



My theory of relative happiness essentially
means that you don't feel
good or bad. Just
better or
worse than before. This insight
opens a new path to happiness:
depress
yourself and in the relief following that
depression, you will experience an
overwhelming sense of bliss.
I'm still working on the scientific evidence.

http://www.nobodyhere.com/justme/theory.here

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

blogues e teses

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Tenho conhecido alguns blogues bem interessantes, de pessoas na faixa entre os 30 e os 40 anos, fazendo coisas intensas, escrevendo trabalhos acadêmicos e vivendo momentos especiais da vida, no auge da idade adulta, das questões existenciais. Acho tudo isso estimulante, mas me sinto meio outsider de um monte de coisa, porque me vejo ali há muitos anos atrás. Às vezes tenho vontade de dizer a alguém que escrever uma tese é um momento magnífico da vida, aproveite, curta, goste do descomunal trabalho, porque é quando o universo todo vibra a sua volta, você produz endorfina como nunca, e o que se escreve naquele momento será seu patrimônio cultural para toda a vida e nunca mais você escreverá daquele jeito, porque aquele tipo de texto você só escreve ali, para aquilo.

Também acho engraçada essa coisa da academia vir parar, meio de viés, nos blogues, através dos comentários de orientandos sobre orientadores, sobre esse mundo de que eu fiz parte por décadas. Já li comentários de candidatos sobre determinadas bancas em que ele (o candidato) criticava impiedosamente um dos participantes mas, para alívio meu, resguardava outro, amigo meu, achei engraçadíssimo e jamais comentei nada disso com ele, que nem tempo para blogues. De todo modo, essa explicitação pública dos bastidores do trabalho acadêmico pode ser saudável e eu fico imaginando se os orientadores de hoje (porque no meu tempo não havia isso) lêem a produção bloguística de seus orientandos e o que pensam dela. Os meus amigos que estão na ativa eu sei que não têm muito tempo para dedicar a esse mundo, embora circulem pela rede.

É isso - rapazes e moças que escrevem teses, dissertações, ensaios ou o que for, sofram, chorem, amaldiçoem o dia em que escolheram esse caminho, mas saibam que vão sentir falta desses dias.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

o Natal para Adélia

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De qualquer maneira, seria bonito sentir o que exprime esse texto de Adélia Prado sobre o Natal.


No Presépio - Adélia Prado

Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vai repetir este ano: "Nada como um frango com arroz depois da missa". Minha irmã chora porque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar uns festões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quer saber de encher a geladeira com mortadela e cerveja. Talvez, por isto, ou porque me achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queria muito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu que estremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eu também. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora um sofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E ainda que quisesse, por destino, não posso. Este musgo entre as pedras não consente, é muito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia-noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estão pulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Vou fazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da "luz que não fere os olhos" abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos, banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber o vinho da alegria, porque deste lugar, onde "o leão come a palha com o boi", esta certeza me toma: "um menino pequeno nos conduzirá".____
Texto extraído do livro Filandras, Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, p 111 e disponibilizado no site http://www.releituras.com
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sábado, 22 de dezembro de 2007

de natal e expectativas

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Eu não gosto mesmo dessa época de Natal, nem de Ano Novo, sou daquelas que se angustiam com o entorno dessas festas: gente pra todo lado, confusão, compras em excesso, todo mundo querendo achar o tal espírito natalino nos lugares mais improváveis de encontrar, nadando de braçada para não se encontrar sozinho consigo mesmo, enfim, essa é uma época muito triste para minhas antenas sensíveis. Mas, como é Natal, pequenos milagres acontecem, como eu encontrar um amigo querido que não vejo há séculos, num lugar aprazível (que palavra! :), com quem é bom conversar até o fim dos tempos. Também receber telefonema de amiga que ao longo do ano submerge nas milhares de tarefas impostas pela labuta (que outra palavra! :) acadêmica e retomar a conversa como se tivéssemos interrompido ontem, lembrando as viagens que fizemos juntas, os congressos a que fomos, new orleans antes da queda, os malucos do radissom hotel, enfim, em meio aos cacos dos finais de ano, pequenos espaços de fraternidade e afeto, que bom.

Para ficar no espírito, um poema muito antigo do Drummond, que faz parte de um pedacinho de minha história:


Resíduo


De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponto bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil.
De tudo fica um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas,
e sob as nuvens e os ventos,
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

(CDA, Poesia completa e prosa, Aguilar, 1973, p. 162-5).

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

saudades de Barthes

Porque me deu saudades da beleza do texto de Barthes, aí vai um excerto de um momento glorioso de sua frase, saber e sabor.

*****

"Michelet toma a nossa História na instituição da servidão: é aqui que se forma a idéia da Feiticeira; isolada em seu casebre, a jovem mulher do servo dá ouvidos a esses vagos demônios do lar, restos dos antigos deuses pagãos que a Igreja expulsou: ela torna-os seus confidentes, enquanto o marido trabalha fora. Na esposa do servo, a Feiticeira ainda é apenas virtual, trata-se apenas de uma comunicação sonhada entre a Mulher e a Sobrenatureza: Satanás ainda não foi concebido. Depois, os tempos endurecem, a miséria, a humilhação aumentam; surge algo na História que muda as relações dos homens, que transforma a propriedade em exploração, que esvazia de toda a humanidade o elo entre o servo e o senhor: é o ouro. Ele próprio abstração dos bens materiais, o ouro abstrai a relação humana; o senhor já não conhece seus camponeses, mas apenas o ouro impessoal com que eles devem pagar-lhe a contribuição. É aqui que muito justamente, por uma espécie de presciência de tudo o que mais tarde se dirá da alienação, Michelet coloca o nascimento da Feiticeira: é no momento em que a relação fundamental é destruída, que a mulher do servo se exclui do lar, ganha a charneca, faz um pacto com Satanás, e recolhe no seu deserto, como um depósito precioso, a Natureza expulsa do mundo; estando a Igreja enfraquecida, alienada aos grandes, separada do povo, é a Feiticeira que exerce, então, as magistraturas de consolação, a comunicação com os mortos, a fraternidade dos grandes sabbats coletivos, a cura dos males físicos, durante os três séculos em que triunfa: o século leproso (XIV), o século epiléptico (XV), o século sifilítico (XVI). Por outras palavras, estando o mundo votado à desumanidade pela colusão terrível do ouro e da servidão, é a Feiticeira que, ao retirar-se do mundo, ao tornar-se a "excluída", recolhe e preserva a humanidade. Assim, ao longo dos finais da Idade Média, a Feiticeira é uma função: mais ou menos inútil quando as relações sociais comportam por si mesmas uma certa solidariedade, ela desenvolve-se na proporção em que essas relações empobrecem: anuladas essas relações, a Feiticeira triunfa."

*****

(BARTHES, Roland. "A feiticeira". In Ensaios críticos. Trad. Antonio Massano e Isabel Pascoal. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 154-5).



quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

um dia sem sol

Um dia no Rio sem o sol que torra o cérebro dos viventes, regozijemo-nos. Está bem, chuva em tempo integral também enche, nos dois sentidos, mas não se pode ter tudo.

o blog do Tolstoi

Pois é, eu acredito que tudo faz parte de um concerto de forças que une objetos e gente aqui e ali e que as coisas de que você precisa te procuram também, quando você as quer muito. Então deu-se que as energias da Carrie, do sublimesucubos, em torno do grupo de leituras para Ana Karenina, no sublimesconversacoes, me fizeram dar uma passada no Beta de Aquarius, sebo ótimo que fica na Buarque de Macedo, atrás do dito livro, que não tinha, mas tinha outro do Tolstoi que eu olhei assim pro título e pensei: ele também escreveu auto-ajuda! E comprei. Vejam vocês, eu já tive muitas vezes essa conversa com um amigo querido sobre escrever um best-seller para as massas, não precisava nem ser do tipo harry potter, mas algo convincente e conveniente para ambos - nós e o público pagante. Enfim, lendo o livro do Tolstoi descubro que:

1) ele também sonhou em atingir as grandes massas, levando para elas cultura e a sabedoria acumuladas pelos séculos;

2) o formato da obra, composto de pensamentos recolhidos das mais diferentes origens e autores, é semelhante tanto ao livro de auto-ajuda (de altíssima qualidade, bien sûr), quanto à dinâmica dos blogs, porque, primeiro, ele quer efetivamente auxiliar as pessoas para que elas sejam melhores, qualidade que o contato com os altos pensamentos das grandes obras pode gerar e, segundo, ele busca isso através dos parágrafos curtos, da frase parábola e do comentário síntese, escritos com o propósito de tornar simples e acessível ao maior número possível de leitores aquilo que os textos dizem;

3) ele era um cristão convicto, e o livro foi proibido durante o regime soviético em razão de suas inúmeras citações religiosas. Hoje, que não há mais regime soviético, ele pode igualmente ser menosprezado pelas mesmas razões;

4) eu gostei demais de encontrar esse livro, é o tipo de obra que você acha quando precisa e que não se lê de forma corrida, mas aos poucos, aqui e ali, refletindo, um pouco no espírito com que o autor o fez;

5) por fim, alguns trechos do Prefácio feito por Peter Sekirin, que dizem da obra:

A idéia original para a obra parece ter ocorrido a Tolstoi em meados da década de 1880. Sua primeira conceituação documentada de Calendário da Sabedoria - "Um pensamento sábio para cada dia do ano, dos maiores filósofos de todos os tempos e todos os povos" - aparece em 1884. Ele escreveu em seu diário a 15 de março daquele ano: "Tenho de criar um círculo de leituras para mim mesmo: Epicteto, Marco Aurélio, Lao-Tzu, Buda, Pascal, o Novo Testamento. Isso é necessário para todo mundo."

O processo de coleta desses pensamentos levou mais de 15 anos. Tolstoi começou a escrever entre dezembro de 1902 e janeiro de 1903. Com quase 80 anos, caiu gravemente doente; enquanto meditava acerca do significado da vida e da morte, foi inspirado a começar a reunir o que então chamou 'Um pensamento sábio para cada dia'. Quando, afinal, enviou o livro a seus editores, Tolstoi escreveu em seu diário:

"Senti que me elevara a grande altura espiritual e moral ao comunicar-me com os melhores e mais sábios indivíduos cujos livros eu lera e cujos pensamentos selecionara para o meu 'Círculo de Leituras."

Tolstoi preparou uma terceira edição revista, abreviada e simplificada que foi impressa com o novo título 'O caminho da vida', em 1910, seu último ano de vida. Desejava tornar o livro facilmente compreensível até mesmo para os mais simples e menos educados - os camponeses e as crianças. Muito provavelmente, Tolstoi comparava o 'Calendário da Sabedoria' com 'Guerra e Paz', quando escreveu que 'criar um livro para as massas, para milhões de pessoas... é incomparavelmente mais importante e frutífero do que compor um romance do tipo que diverte alguns membros das classes abastadas durante algum tempo e depois é esquecido. A região dessa arte dos mais simples e acessíveis é enorme e está até aqui intocada."

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Tolstoi, Pensamentos para uma vida feliz - Calendário da sabedoria. Tradução Bárbara Heliodora. São Paulo: Prestígio, 2005. Prefácio de Peter Sekirin.

caiu

Pois é, não há mal que dure para sempre, nem bem etc, etc. Caiu a CPMF, o imposto que servia para tudo, menos para o que se propunha inicialmente. Já caiu tarde, vamos esperar o que eles vão aprontar para compensar. De todo modo, uma boa notícia.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

conduta de risco

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Eu ando sem vontade de postar, o calor é tão absurdo que só tenho vontade de ficar quieta no quarto, ar ligado e sem fazer muito movimento para não esquentar. Mas vi Conduta de risco, que a Isabela Boscov elogiou muito e eu respeito a opinião dela. Em síntese, vale mais pelo belo Clooney, que está muito bem, e um certo dinamismo na montagem do filme, não que eu entenda muito disso, mas saí do cinema pensando: montagem é tudo. De todo modo, filmão americano sobre os bad e os good boys de sempre.

sábado, 8 de dezembro de 2007

de contos e contas

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Fim de ano é época também de juntar papéis, documentos, coisas acumuladas ao longo do ano, arrumar, jogar fora. Não sei por que, mas esse ano estou me sentindo um tanto sufocada por tantas coisas a exigirem definição: joga fora, guarda, rasga, faz o quê? Enfim, está tudo muito over por aqui, talvez por eu ter começado pelas fotos, duas caixas de sapato abarrotadas com fotos misturadas de todas as épocas da minha vida, olhar tudo isso vai dando uma aflição...

No meio das arrumações, consegui ler A festa de Babette, conto do Anedotas do destino, da Karen Blixen, e acho o filme muito melhor. Em geral, não costumo gostar mais de filmes, mesmo quando muito bem feitos, do que dos livros que os originaram, especialmente e sobretudo quando se trata de livro/filme brasileiro, mas nesse caso o filme é mesmo muito além do conto.

Do filme eu posso dizer "deslumbrante", do conto eu diria "muito bom", e não vou me estender na impressão de que a escrita de Karen não me parece no mesmo patamar de excelência das mulheres da minha vida (Woolf, Duras, Lispector) porque seria precipado, assim que tiver terminado de ler pelo menos todos os contos desse livro talvez possa dizer alguma coisa mais.

Também já li quase quase todo o Fica comigo esta noite, livro de contos da Inês Pedrosa, mas dizem que Fazes-me falta é a obra dela mais importante, resolvi começar a lê-la pelos contos e, como acontece sempre, alguns são excelentes, outros medianos, outros fracos. Acho que "Só sexo", o primeiro conto, diz muito do estilo e da temática dela: frase curta, direta, assuntos contemporâneos, amor, amor e suas interseções nas vidas modernas.

Uma boa frase:

Enquanto os nossos camaradas celebravam nas ruas, nós fabricávamos o amor a partir do zero, no deslumbramento silencioso de um deus que subitamente descobrisse as coisas de que era capaz. Amávamo-nos como se o amor fosse apenas um suplente íntimo dessa revolução que nunca mais chegava.


(Fica comigo esta noite, Planeta, 2007, p. 9)

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quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

à procura de um blog

Se alguma alma que passa por aqui souber do que falo, me dê o endereço do blog ou site em que só aparecem casas e objetos de decoração, é um espaço muito bonito, eu dei para um amigo que o perdeu e me pediu de novo, mas eu não consigo achar o maledeto. Thanks.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

um filme delicado

A vida dos outros é um filme delicado, embora tendo como pano de fundo a dura época do totalitarismo russo, e como tema a relação entre arte e essa mesma violência, de que Mephisto seria ainda o filme emblemático. Aqui, os três principais personagens movem-se de forma a encontrar, cada um deles, uma possível redenção sob a égide da arte como encontro entre sensibilidades e lugar onde a dignidade habita, mesmo que sob as vestes de um nazista. Uma certa humanização do carrasco constitui, então, o viés original do filme, misturada aos elementos de culpa, traição e abnegação próprias a tal enredo. Detalhe: pelo menos seis anos, no mínimo, se passam no decorrer da história, mas o personagem do escritor - belíssimo - não muda um milímetro, suponho que para não atrapalhar tanto charme.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Enfim, alguma boa notícia

Pelo menos por enquanto, o bruto está sob controle!

Venezuela diz não à reforma constitucional de Chavez


O presidente venezuelano Hugo Chavez foi derrotado (d.e.r.r.o.t.a.d.o!) no plebiscito em que propôs várias mudanças na Constituição que lhe atribuiriam mais poderes e permitiriam que ele concorresse à reeleição indefinidamente, informou a Reuters: "A Justiça Eleitoral da Venezuela anunciou a vitória apertada do Não, com cerca de 51% dos eleitores. Cerca de 49% apoiaram as propostas de Chavez. Opositores do presidente afirmam que as propostas tinham por objetivo transformar a Venezuela numa didadura. Hugo Chavez havia dito que pretendia governar a Venezuela até sua morte. Contudo, com o resultado do plebiscito, ele terá que deixar o governo em 2013".

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Ida ao Museu e JCMN

Travo sempre uma batalha comigo mesma para sair de casa, seja a hora que for, sobretudo à noite, mas hoje, instigada pelo post da carrie do sublimesucubus e também porque o Museu da República é aqui ao lado, fui ver a Primavera do Livro e só coisas ótimas aconteceram, querem ver?

Primeiro, comprei cinco livros, três da Cosac daquelas mulheres fantásticas (Karen Blixen e os dois da Duras, que eu já tenho mas não posso viver sem essas edições lindas), além de A lua da verdade, do Isaías Pessotti (alguém leu?), de quem li Aqueles cães malditos de Arquelau e amei demais. Também comprei um livrinho de pequenos contos pra Lu que, milagre, já leu dois e está gostando (milagre as duas coisas).

Segundo, depois de caminhar pelos estandes, estava tomando um café e pedi licença a uma moça que me pareceu acessível para sentar na mesma mesa, que permitiu, claro, e engrenamos um papo só ótimo - ela lida com cinema, é super extrovertida, gosta de conversar e de gente, pelo que pude ver. Além disso tudo, vocês não vão acreditar - é filha do João Cabral, que máximo! Já pensou, conversar assim de pertinho com a filha do homem, aquele mesmo, ele, JCMN. Pra quem passou a vida admirando sua obra e trabalhando com sua poesia foi um presente. Foi muito bom, viu, Inês? Beijo, adorei conhecer você.

Como se não bastassem tantas emoções, outra moça simpaticíssima pede também a nós duas licença para sentar e engrena outro papo ótimo conosco, a Márcia, com quem depois conversei sobre assuntos em comum e que parece ter sido enviada para esse encontro, porque falou de coisas que me interessam mas para as quais não sei ainda se estou pronta.

Por fim, enquanto conversava com essas duas damas encontro saindo do cinema a Silvinha, que não via há séculos, linda, com um cabelo tão fofinho, que também gostou de Piaf, como eu, e me deu notícias de um amigo comum. Foi muito bom revê-la, encontrar pessoas interessantes e foi uma festa essa minha ida ao Museu. Um abraço a todas as meninas que fizeram meu dia mais alegre hoje.

E, claro, em homenagem e preito de admiração irrestrita, poemas de João Cabral, retirados da Obra completa, Editora Nova Aguillar, 2003:


Tecendo a manhã

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. (p. 345)

***

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma. (p. 338)

***

A mulher e a casa

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
pelos recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
(p. 242)

***

Janelas
Há um homem sonhando
numa praia; um outro
que nunca sabe as datas;
há um homem fugindo
de uma árvore; outro que perdeu
seu barco ou seu chapéu;
há um homem que é soldado;
outro que faz de avião;
outro que vai esquecendo
sua hora seu mistério
seu medo da palavra véu;
e em forma de navio
há ainda um que adormeceu. (p. 50)

***

Estudos para uma bailadora andaluza

1

Dir-se-ia, quando aparece
dançando por siguiriyas,
que com a imagem do fogo
inteira se identifica.

Todos os gestos do fogo
que então possui dir-se-ia:
gestos das folhas do fogo,
de seu cabelo, sua língua;

gestos do corpo do fogo,
de sua carne em agonia,
]carne de fogo, só nervos,
carne toda em carne viva.

Então, o caráter do fogo
nela também se adivinha:
mesmo gosto dos extremos,
de natureza faminta,

gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza.

Porém a imagem do fogo
é num ponto desmentida:
que o fogo não é capaz
como ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capaz
de acender-se estando fria,
de incendiar-se com nada,
de incendiar-se sozinha. (p. 219-20)

[...]

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Adélia Prado

Hoje estou com saudades de Adélia Prado, sobre cuja poesia já escrevi um livrinho. Acho que mais do que sobre a obra de Manoel de Barros, se pode usar a palavra singeleza para definir uma de suas fortes qualidades. Quando estou muito carente de coisas simples e essenciais, leio Adélia.

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
'Coitado, até essa hora no serviço pesado'.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

Casamento

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

A invenção de um modo

Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

Pelicano

Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria
Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.

Mais poemas de Adélia em Poesia reunida, Siciliano, 1991; republicado por editora Arx.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Piaf, amigos, canções

Piaf é um filme que fica em nós muito tempo depois que saímos do cinema: é bonito, a atriz é ótima e intensa, sobretudo o olhar e a postura comovem, a dublagem é perfeita e somos todos contagiados pelo drama daquela vida e pela luz de sua canção. Vale muito ver.

Também Meu melhor amigo é ótimo, além de fazer um bem enorme à alma. E tem também o homem comum mais charmoso dos últimos tempos (Dany Boon), que engole praticamente o Daniel Auteuil ao longo do filme. Além disso de novo, não é um filme americano, e isso é coisa à beça, estou meio saturada da cultura cinematográfica americana, sobretudo a televisiva, querendo ficar pelo menos um mês de jejum de qualquer coisa falada in English. A Net devia pagar seus assinantes por impingir tanto lixo americano.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Reparação

Reparação, do Ian McEwan,é um romance extraordinário. Quando, não há muito, tivemos decretado o fim das grandes narrativas, sejam históricas ou ficcionais, o autor retoma o fio da meada da grande tradição do romance moderno e escreve uma saga contada pela perspectiva de três narradores distintos, que vivenciam o mesmo acontecimento fundador e desestabilizador, cujos desdobramentos sobre a vida de cada personagem serão a matéria do que se vai ler.
O homem escreve que é um escândalo, e acho que ele realmente toma a Virginia Woolf como fonte e modelo de seu estilo, e o diz explicitamente ao longo da narrativa em dois momentos: por ocasião de uma reflexão de Briony acerca do novo texto que havia escrito e quando ela recebe uma longa carta da editora justificando por que seu texto estava sendo rejeitado:

"Ah, se ela pudesse reproduzir a luz límpida de uma manhã de verão, as sensações de uma criança olhando por uma janela, a curva e a descida do vôo de uma andorinha sobre a lagoa! O romance do futuro seria totalmente diferente dos que existiram no passado. Briony tinha lido As ondas de Virginia Woof três vezes, e achava que uma grande transformação estava ocorrendo na própria natureza humana; apenas a ficção, um novo tipo de ficção, poderia captar a essência dessa mudança." (p. 336);

"Algo de singular e inexplicado é apreendido. No entanto, por vezes nos pareceu haver uma presença um pouco excessiva das técnicas de Virginia Woolf. O momento presente cristalino em si é, sem dúvida, um tema merecedor, especialmente no caso da poesia; ele permite que o escritor exiba seu talento, mergulhe nos mistérios da percepção, apresente uma versão estilizada dos processos de pensamento, permite a exploração das circunstâncias imprevisíveis do seu íntimo etc. Quem haverá de questionar a validade dessa experimentação? Porém esse tipo de prosa pode resvalar no preciosismo quando falta um movimento para frente. Em outras palavras, nossa atenção teria sido cativada ainda mais se houvesse uma correnteza subjacente de simples narrativa. É preciso haver um desenvolvimento." (p. 373).

Com fina ironia, McEwan rende o tributo incontornável a Woolf, mas diz também onde ancorar seu traço pessoal e particular: na narrativa, no plot, na história a ser contada, porque é preciso contar uma história e isso o autor faz de forma magistral, além de criar personagens inesquecíveis. Quando Briony comete afinal seu crime, eu me alinhei imediatamente ao lado dos que jamais a perdoarão, como Cecilia e Robbie, mesmo conhecendo que a ignomínia é um traço humano, demasiado humano, ao longo da vida de qualquer um, e mesmo tendo compreendido todas as nuanças de seu temperamento: a difícil passagem da infância à puberdade; a inveja (mesmo que intangível) do amor da irmã; a exacerbação da vaidade daquele que cria, sobretudo daquele que escreve; a extrema sensibilidade, aguçada pelos excessos permitidos à filha caçula, enfim, Briony é uma personagem complexa e rica em sutilezas, o que impede que sua ação seja lida maniqueisticamente, ou as ações de quaisquer outros personagens, mas nem por isso a reparação me parece possível, ou a cooptação do leitor. Acho que nem mesmo ela pede isso, e o romance se escreve face a essa impossibilidade.

Quanto às engrenagens do "movimento para frente" mencionado acima, uma das mais contundentes é a da guerra, de que se ocupa Robbie por longo tempo na segunda parte. É interessante que o tributo à ação no romance se dê exatamente por aquilo que algumas vertentes da crítica feminista consideram o mundo male por excelência - a guerra, se se pensa que Woolf também é uma das grandes autoras da teoria crítica feminista, sobretudo com Um teto todo seu. Confesso, por outro lado, que pulei algumas passagens mais candentes dessa parte, não por serem ruins, mas por serem excessivas em sua força (descritiva e narrativa), compondo figuras dignas de Jeronimus Bosch. Na verdade, o mundo da guerra não me interessa em nada, sob nenhum de seus aspectos.
Por fim, considero o final do livro um achado extremamente sofisticado, porque recoloca em foco a questão visceral do fato literário per se e, à maneira de um Machado de Assis ultra-moderno, nos faz especular sobre as fronteiras entre o real e o ficcional.

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Ian McEwan. Reparação. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Sem medo de saber

Ontem passei a noite lendo Sem medo de saber - a importância do diagnóstico precoce do câncer, do Ilan Gorin (Ed. Sextante, 2007), 40 depoimentos de pessoas, a maior parte públicas, que tiveram câncer. Achei muito bom, me encontrei em muitas histórias e acho que o livro dá ânimo e coragem, sim, a quem passa ou passou por situações semelhantes. O depoimento que mais me tocou foi o do Carlos Lessa, que fala do medo com muita coragem. Animador.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Duras etc

Tendo trabalhado boa parte de minha vida acadêmica com crítica literária feminista, questões de gênero et caterva, li sempre por dever de ofício e prioritariamente as escritoras mulheres, daqui e abroad. Assim, dos escritores devo uma montanha de leituras e agora, sem obrigações de trabalho ou de leitura, busco dar conta dos livros interessantes (nem tantos assim) que ainda não li. Mas eis que de repente, rodando na cadeira de trabalho na direção da estante, dou de cara com um livrinho da Marguerite Duras chamado Escrever, que estava lá perdido no meio dos outros. Peguei-o, abri-o e comecei a ler, reconhecendo as frases e, mais que isso, reconhecendo ali o meu mundo, a minha interlocutora, a minha sensibilidade. 

Mesmo os defeitos do livro me agradam, é como se eu reconhecesse naturalmente quem eu sou no universo mental dessa escritora, na sua frase, na sua escrita. Então o livro do Ian McEwan (um dos autores homens que valem realmente a pena), Reparação, que comecei, terá de esperar um pouquinho porque alguém já muito amigo furou a fila e veio me dar um abraço.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

o filme do Babenco

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O filme do Babenco é um lixo. Já tinha desistido de ler o livro do Alan Pauls e fui dar uma conferida no filme para ver se me redimia por ter abandonado o livro, mas quase abandono o filme também. Razões: o filme é uma louvação ao falo, à supremacia do homem em sua função de "provedor do pau" à mulher; a mulher, Sofia, é absolutamente patética, ridícula, inacreditável o que os autores do filme fazem essa mulher dizer e fazer.

Uma cena, sobretudo, dá vontade de esganar o diretor: quando ela, de um modo absolutamente mesquinho, rouba o filho do Rímini enquanto este vai comprar cigarros para ela. Detalhe: ela tinha acabado de implorar a ele que trepasse com ela, e ele, coitadinho, não havia conseguido (por culpa), ele sai com o filho, pega um táxi, ela sai logo depois, desfigurada, ele tem pena e dá uma carona no táxi. O coitadinho aqui vai por conta da atitude desse Rímini, totalmente refém daquela maluca, sem vontade própria a não ser quando se trata de trepar, que é quase o que ele faz o tempo todo no filme (outra coisa antiga, suscitar interesse do espectador por conta de sexo).

O homem aqui é visto como aquele que tem o poder entre as pernas, mas não sabe ter outras emoções profundas a não ser a partir daí. Ele é um adulto imaturo, totalmente à mercê dos sentimentos vagos com relação à maluca da Sofia, a mulher louca que só quer atormentar o cara. Não é que as peripécias amorosas na vida real não levem a situações como essas, mas a mão do diretor pesou muito negativamente com relação à mulher e ficou um retrato muito caricatural, sem o mínimo distanciamento crítico que faz dos filmes de Almodóvar, por exemplo, exemplares na exploração desses desconcertos. O espectador torce para que o diretor dê uma colher de chá e torne aquele imbróglio mais leve, para que haja um pouco de humor sem o qual tudo vira um grande pastelão, a despeito de seu propósito.

Acho que o filme tem uma visão muito antiga e muito degradada da mulher, imprime um contorno de megera bem antiquado a ela, e coloca o homem, no viés do macho-que-fode, como a vítima que é sitiada por ela ao longo da vida. Tudo muito antigo, muito chato e no final dá vontade de dizer ao Babenco: se atualiza, cara, a gente tem mais o que fazer na vida.

E, last but not least, o Garcia Bernal, que é mesmo um ótimo ator, mas não "o melhor de sua geração da AL" como disse o diretor, está apenas regular, mantendo um olhar catatônico e alheado durante todo o filme. Só numa cena a cara do Bernal se ilumina e é quando ele vê na TV um programa sobre o genocídio em um país africano, só aí o rosto adquire alguma expressão. Convenhamos, é pouco.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

poemas de Hilda Hilst

Só agora me dei conta de que não há poemas de Hilda Hilst aqui no meu blog. Não havia!

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Sobre a tua grande face

Honra-me com teus nadas.
Traduz meu passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até o osso
Igual a um morto.


In: Do desejo, Sobre a tua grande face. São Paulo: Ed. Globo, 2004, p.111)

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 I 

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bicho dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A vida é líquida.


(In: Do desejo, Alcoólicas, id, ib., p. 99)
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I

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d'água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

(id, ib, p. 100)

IX

Se um dia te afastares de mim, Vida -- o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida --
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso: compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
O êxtase de te deitares contigo. Beba.
Estilhaça a tua própria medida.

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Do desejo, Alcoólicas, id., ib, p. 107)

terça-feira, 16 de outubro de 2007

filme e patetinha

Saí da sessão de Nunca é tarde para amar com várias impressões estranhas, a saber:
1. já vi esse filme
2. a Michelle Pfeiffer encontrou um artista, ou melhor, um deus da cirurgia plástica que lhe deu um rosto novinho em folha, igual ao de vinte anos atrás. Teria sido o Pitanguy?;
3. a comédia leve para adolescentes americanos engajadinhos tem como tema agora a malhação do Bush, ou seja, a aluna avançadinha faz canção em que critica a patetice dos ícones dessa cultura: bush, as peladas da mídia e as celebridades anoréxicas. Todos lá ficam felizes, a catarse de coca-cola acontece, apazigua a micro consciência do grupo e a indústria do cinema continua jogando seu lixo cultural pro mundo todo consumir (eu, inclusive, quem diria);
4. uma sensação de ser meio voyeur de uma brincadeira que não me diz respeito, que é lá deles e, aliás, eles estão se lixando para quem não é da patota, ou seja, não é americano, não é da tchurma. E quem faz parte da tchurma? Eles, apenas eles. O resto é o resto, serve apenas para isso que eu fiz : dar dinheiro para ver um filme absolutamente ridículo, e ainda por cima rir dele.
Eu mereço. Todos nós merecemos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Inês aos poucos

Estou lendo uns contos de Fica comigo esta noite, da Inês Pedrosa, escreve muito bem, gostei dos poucos contos que li até agora, e vou terminar o livro para aventar uma hipótese estranha sobre ele.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Ensaio sobre a cegueira, blog etc...

Li o Ensaio sobre a cegueira e observo que esse é um caso único em minha experiência com a literatura de um livro ser indicado por um post, que por sua vez existe em função de um filme - tudo isso vem do blog do Meirelles, o diário da filmagem de Blindness, pelo qual estou/estamos, seus leitores, apaixonados. Achei no início que o blog pudesse ganhar do livro, mas estava cega, claro. São coisas diferentes e cada um com seu cada qual.

O blog do Meirelles é precioso e o livro do Saramago é muito bom, o problema é que não consigo agora pensar nas cenas do livro sem ver a Julianne Moore fazendo a mulher do médico, o Mark Rufallo como o médico, fingindo de cego e conversando com o Meirelles, o Danny Glover como o velho da venda preta e por aí vai (só não imagino ainda o cão das lágrimas, mas vi nele meu antigo cachorro de relance). Além disso, entrei na paranóia de que ele não vai conseguir filmar aquilo, é muita loucura junta, muita craca, muida dor, muita sujeira e muito desalento e esses atores são marcados demais para fazer o 'qualquer um' que os caracteriza no livro. Enfim, vamos confiar que quem descreve tão bem seu ofício, além de escrever como o faz o Meirelles, vai nos dar o melhor filme para obra tão singular.

Outra coisa que tem me acontecido depois que li o livro é que fico esperando que os pobres que me cercam e que vivem próximos a minha rua surjam de repente como uma leva incontida de cegos e famintos e desvalidos, andando a ermo pra lá e pra cá, sem rumo ou direção, sem norte, sem nada. Fico agora mais assustada, tenho imagens agora muito fortes e firmes sobre o que seria o apocalipse.
Se é verdade que nenhum leitor fica o mesmo depois que é tocado por um grande e forte livro, essa obra do Saramago tem poderes assombrosos, no duplo sentido de ser uma estória extraordinária com uma prosa literária à altura.

Tem defeitos o livro? Sim, tem. No começo achava mesmo que não ia decolar, que o viés de parábola enfraquecia a obra, e há momentos em que uma certa repetição de cenas (quando as normas no manicômio são anunciadas, por exemplo) ou quando o narrador se empolga com alguma idéia filosófica e a desenvolve além da conta, a obra se enfraquece em alguns momentos. Além de que impliquei um pouco com o gesto político do autor de manter a grafia e a sintaxe do português de Portugal, e daí tudo que penso sobre o livro, penso com sotaque lusitano, mas agora tudo bem, não ligo mais.

De todo modo, à medida que se avança na leitura, o viés dramático se adensa e somos inteiramente subjugados pela força avassaladora das imagens, dos personagens, das cenas. Não há como não vagar com aqueles homens e mulheres, não há como não se irmanar, não há como não chorar por eles e com eles, não há como não cegar com cada um e torcer para que o mistério dessa cegueira se aclare para que possamos, nós também, enxergar enfim.

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quarta-feira, 26 de setembro de 2007

sobre Viagens no scriptorium

Estou para falar sobre o Viagens no scriptorium, do Paul Auster, mas meio intimidada, deve haver um mar de textos escritos sobre ele, que eu não li. Na verdade, de toda a sua obra só li essa até essa data, e de toda a sua fortuna crítica li apenas o comentário do Lucas, linkado aí embaixo. Convenhamos, ainda é pouco. 

Mas acho que posso dizer que o autor conhece tudo de literatura, ou seja, ele faz questão de escrever deixando à mostra todo o tempo o jogo que está jogando, em níveis diversos. Por exemplo, na escolha do nome do personagem (sobretudo o Blank); no fato de haver uma estória subjacente à estória narrada que vai-se aproximando de tal maneira do personagem que acaba se transformando na estória propriamente do que ele é: pura ficção. 

De modo que o autor vai nos levando numa prosa elegantíssima (frase que não diz nada mas aqui significa que a linguagem que ele usa nos dignifica, nos enobrece, é clássica, correta, bela, ou seja, ele faz o que quer com a palavra escrita) pelo coração dessas estórias que não se resolvem, não têm fim (nem começo, aliás), mas que seguimos fascinados até a constatação final de que somos cúmplices daquele aprisionamento aparentemente injusto de Blank, somos todos carcereiros do Guantánamo particular em que se transforma aquele quarto, na verdade, somos nós, leitores, os autores dessas vidas, dessas estórias, dessas páginas, dessa obra. Nunca o leitor teve um lugar tão privilegiado numa obra de ficção, que eu me lembre. Preciso ver se ele (esse leitor) cabe na teoria do Iser. Ah, sim, e lerei o Leviatã (que nome forte!) no futuro próximo.

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Paul Auster. Viagens no scriptorium. Trad. Beth Vieira. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

sábado, 22 de setembro de 2007

sobre Por que sou gorda, mamãe?

Pois é, depois de ler a resenha da Renata Miloni na Copa de literatura (ver site ao lado) sobre os livros da Cíntia Moscovich e do Daniel Galera, eu tinha decidido que nenhum dos dois havia me seduzido e não os compraria, mas aí veio o resultado parcial da seleção do prêmio Portugal Telecom 2007 e o livro da Cíntia estava entre os dez, daí fui saber por quê. E só posso entender a escolha em virtude de que é muito, muito difícil criticar o livro da Cíntia, porque ele tem uma qualidade que não constitui um valor literário em si, mas que torna difícil sair isento de seu universo: a sinceridade. Parece que a autora se entregou a esse projeto com a visceralidade de uma aposta de vida ou morte, e o personagem não poupa a mãe, ao contrário, a mãe é efetivamente a megera da estória, aquela que detonou o amor dos filhos (o amor pelos filhos), descrita como egoísta, mesquinha, perdulária, enfim, ninguém precisa aqui de madrasta má. 

Vai-se lendo aquela enxurrada de confidências e de despautérios dirigidos a essa mãe, sobretudo, mas também a uma família e uma tradição duríssimas com a criança que a personagem-narradora foi. A uma certa altura, dá um pouco de constrangimento por estar sendo cooptado a ver, bisbilhotar e, de certo modo, situar-se como voyeur e mediador daquelas cenas 'domésticas', espécie de 'lavagem de roupa suja' em público que, muito raramente, consegue ir além da confidência pessoal. 

Ser ou não ficção importa menos do que o pacto de sinceridade que a narradora estabelece com seu leitor, mais que isso, pacto de cumplicidade, como se essa escandalosa sinceridade pudesse avalizar não apenas o que ela diz, mas o texto que o diz - sua obra. Além disso, que mulher-leitora, sobretudo, com quilos a perder, não tem contas a ajustar com uma mãe omissa de amor, com uma família repressora ou com uma tradição obsoleta, nas costas de quem jogar os excessos do corpo que compensam a parca vida dos afetos? 

Enfim, penso que as qualidades do livro de Moscovich estão mais no que ele tem de apelo aos sentimentos mais primitivos do leitor (nesse caso, os conflitos na relação mãe/filha), e menos no jogo com a literatura.

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Moscovich, Cíntia. Por que sou gorda, mamãe? Rio de Janeiro: Record, 2006.


sexta-feira, 21 de setembro de 2007

as mulheres dos maridos

Estava lendo a resenha que o Lucas Murtinho fez do Viagens no scriptorium (http://www.zapbangmagazine.com/literature/fiction_reviews/16/ ), do Paul Auster, em que ele começa fazendo menção a um comentário sagaz da mulher dele: “Paul Auster is getting old”, my wife wrote on the first page of Travels in the Scriptorium. She’s right, as always; I’d only add he’s also really scared of it". Assim começa a ótima resenha que vai, afinal, situar no conjunto da literatura do autor norte-americano não apenas esse livro, mas seus temas e as técnicas utilizadas ("the potential role of obsessions in life, the tension that rises from artistic creation"), bem como a noção de coincidência ("these moments when reality becomes symbolic") e em que Auster, segundo Murtinho, "has followed a path that started on the symbolic and strange and slowly but surely approached the real and quotidian". A resenha é ótima, cumpre sua função de dizer por que um livro é bom, um autor merece ser lido e o que esperar das obras que menciona. Mas o motivo deste post é mesmo para comentar sobre a presença de viés de algumas mulheres de blogueiros, como essa da do Lucas e a do Dr Plausível, na Copa de literatura (http://www.copadeliteratura.com/ ), que na ótima resenha sobre os dois livros sob sua responsabilidade traz o comentário da mulher, muito apropriado: "Ri muito quando minha esposa, ao me ouvir ler em voz alta algumas frases mais abstrusas do livro, disse “Esse pessoal parece q não aprendeu nada com os modernistas"". E como eu já percebi que há menos mulheres (ou nicks de mulheres) nos blogs sobre literatura que eu freqüento, acho engraçado esse "andar na sombra dos maridos" em pleno século 21. Adoraria saber por que elas mesmas não escrevem o que os maridos dizem que elas dizem. :)


terça-feira, 18 de setembro de 2007

blog do Meirelles

Acabei de descobrir o blog do filme Ensaio sobre a cegueira (Blindness, um nome lindo), que está sendo rodado pelo Fernando Meirelles, e li a primeira postagem (ainda é pequeno) sobre carisma, como é bom, como escreve bem a figura e como é apropriado seu comentário sobre os atores que ele cita. Está lá em http://blogdeblindness.blogspot.com/

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Ainda o Tezza

Gostei tanto de O filho eterno, do Tezza, que estou lendo outros livros dele. Comecei O fantasma da infância, mas demorou a engatar e peguei outro, Aventuras provisórias, que acabei de ler. O narrador aqui continua aquele ser indócil, duro, com suas obsessões e fraquezas, o que não diz nada, mas é disso mesmo que vive o romance: as aventuras desse personagem em torno do seu universo, em que a mãe, o amigo torturado pela ditadura, as amantes, a mulher burrinha com quem ele se casa, a experiência comunitária, enfim, o mundo das relações amorosas e afetivas constituem a trama narrativa. O que cativa especialmente nem são tanto as histórias desses seres envolvidos em suas pequenas guerras cotidianas, mas a linguagem ágil, o domínio que o autor tem do modo de narrar, embora eu pessoalmente considere esse (se comparado com O filho) um romance mais "macho", cheio de clichês do universo masculino, do vaivém das mulheres, do amor-dor-bebida-ressaca etc, mas com muitos momentos intensos, de boas sacações e lirismo. Vejamos esse:

"Penso e peso o rompimento, o momento final, e continuo sem compreender por que nos separamos - ou por que eu detonei a separação. Mas ainda não é isso: é por que aconteceu daquele modo, tão estupidamente, sem dignidade. Não merecíamos um fim de festa tão tosco. A falta de filhos, minha mãe, o cheiro de incenso, tudo isso são miudezas, têm de fazer parte da vida, porque não estamos numa redoma asséptica. Vivemos na poeira, no resfriado, na chuva, na foice, no suor, no medo, no arrepio. Vivemos nos esbarrando bêbados e burros, tagarelando sem propósito. Mesmo assim, deveríamos contar com uma breve margem de segurança, que não nos quebrasse tanto." (Aventuras provisórias, Record, 2007, p. 80).

Então a coisa fica assim: há os delizes dos ecos, das frases com aliterações e repetições fáceis ('fim de festa tão tosco'), mas o homem é um ótimo romancista, sem dúvida.


quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Eu também vi

Tá certo, eu também vi, todo mundo que quis, viu. Achei um bom filme, no máximo, e se for pela linha do documentário o Bope fica meio mal, ao contrário do que se apregoa, porque a cena de tortura não passa despercebida mesmo. Se nossa polícia de elite, o crème de la crème, faz aquilo tudo, imagina o resto. Mas há qualidades inegáveis no filme, seja visto como documentário, seja como ficção, porque apresenta um painel complexo e sobre a complexidade das relações entre polícia, bandido e os grupos sociais no Rio de Janeiro, o que já é coisa à beça. E, parafraseando o Xexéu, eu provavelmente vou ver Tropa de elite também no cinema, menos por questões morais (comprar o pirata no chão alimentou a família do vendedor, que tem mulher e filho pequeno pra criar, além da lei Rouanet que pagou uma parcela do filme etc, etc), que não são tampouco as dele, e mais porque quero ver o bang-bang em tela grande.

sábado, 8 de setembro de 2007

Reinaldo Azevedo e a educação

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Replico aqui excerto do ótimo ensaio do Reinaldo Azevedo, publicado na última Veja (edição 20025, de 12/09/2007), que deve ser lido na íntegra por todos aqueles que lidam e/ou se preocupam com o ensino da língua portuguesa na atualidade. Além dos argumentos excelentes, ainda se ri um tantinho:


Restaurar é preciso; reformar não é preciso
[...]
Não é só a língua portuguesa que está submetida a esse vexame, é claro. As demais disciplinas passaram e passam pela mesma depredação. A escola brasileira é uma lástima. Mas é nessa área, sem dúvida, que a mistificação atingiu o estado de arte. Literalmente. Aulas de português se transformam em debates, em que o aluno é convidado (santo Deus!) a fazer, como eles dizem, "colocações" e a "se expressar". Que diabo! Há gente que não tem inclinação para a pintura, para a música e para a literatura. Na verdade, os talentos artísticos são a exceção, não a regra. Os nossos estudantes têm de ser bons leitores e bons usuários da língua formal. E isso se consegue com o ensino de uma técnica, que passa, sim, pela conceituação, pela famigerada gramática. Precisamos dela até para entender o "Virundum". Veja só:

"Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / De um povo heróico o brado retumbante"

Quem ouviu o quê e onde, santo Deus? É "as margens plácidas" ou "às margens plácidas"? É perfeitamente possível ser feliz, é certo, sem saber que foram as margens plácidas do Rio Ipiranga que ouviram o brado retumbante de um povo heróico. Mas a felicidade, convenham, é um estado que pode ser atingido ignorando muito mais do que o hino. À medida que se renuncia às chaves e aos instrumentos que abrem as portas da dificuldade, faz-se a opção pelo mesquinho, pelo medíocre, pelo simplório.As escolas brasileiras, deformadas por teorias avessas à cobrança de resultados – e o esquerdista Paulo Freire (1921-1997) prestou um desserviço gigantesco à causa –, perdem-se no proselitismo e na exaltação do chamado "universo do educando". Meu micro ameaçou travar em sinal de protesto por escrever essa expressão máxima da empulhação pedagógica. A origem da palavra "educação" é o verbo latino "duco", que significa "conduzir", "guiar" por um caminho. Com o acréscimo do prefixo "se", que significa afastamento, temos "seduco", origem de "seduzir", ou seja, "desviar" do caminho. A "educação", ao contrário do que prega certa pedagogia do miolo mole, é o contrário da "sedução". Quem nos seduz é a vida, são as suas exigências da hora, são as suas causas contingentes, passageiras, sem importância. É a disciplina que nos devolve ao caminho, à educação.

Professores de português e literatura vivem hoje pressionados pela idéia de "seduzir", não de "educar". Em vez de destrincharem o objeto direto dos catorze primeiros versos que abrem Os Lusíadas, apenas o texto mais importante da língua portuguesa, dão um pé no traseiro de Camões (1524-1580), mandam o poeta caolho cantar sua namoradinha chinesa em outra barcarola e oferecem, sei lá, facilidades da MPB – como se a própria MPB já não fosse, em nossa esplêndida decadência, um registro também distante das "massas". Mas nunca deixem de contar com a astúcia do governo Lula. Na citada prova do Enem, houve uma "modernização" das referências: em vez de Chico Buarque, Engenheiros do Hawaii; em vez de Caetano Veloso, Titãs. Na próxima, é o caso de recorrer ao funk de MC Catra: "O bagulho tá sério / vai rolar o adultério / paran, paran, paran / paran, paran...".
[...]


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terça-feira, 4 de setembro de 2007

E falando em mordomos

E falando em mordomos, não dá para não lembrar da atuação do Anthony Hopkins em The remains of the day (Vestígios do dia), o belíssimo filme do James Ivory (1993), que tem também em ótimas atuações Emma Thompson, Hugh Grant e Christopher Reeve. Sobre este último, é muito estranho vê-lo ainda andando, no auge da vida e lembrar que dois anos depois, em 1995, sofreria um acidente terrível ao cair de um cavalo e quebrar duas vértebras, ficando completamente imóvel do pescoço para baixo. Ver aquele homem belo, forte, cheio de vida, que daí a poucos anos será completamente diferente, levará uma vida dificílima e fará enormes esforços, publicamente, para superar suas imensas limitações, tudo isso dá uma compreensão de que a vida é profundamente estranha, e o aleatório ronda qualquer um de nós.
Quanto ao mordomo do Hopkins, o Santiago deste filme, é possível ver que é um obsessivo, um sujeito que leva as atribuições de suas funções até o limite da exaustão, e eu me identifico profundamente com ele. Gosto da idéia de que algo que precisa ser feito tem de ser perfeito, o melhor possível, nem que para isso se gaste a vida, o tempo, o corpo, as mãos, o que for.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Entrevista

Numa entrevista do João Moreira Salles ao Canal Brasil ele comentava sobre a possível prepotência no filme, que era possível haver, sim, que talvez fosse inevitável na relação com um empregado de tantos anos, que morava na casa. Também observou que não quisera mesmo ouvir as confidências do empregado, que o corte dado fora proposital. Fiquei pensando que talvez meu comentário sobre a ajuda para comprar o apartamento tenha sido inadequado: e se o patrão tiver ajudado o empregado a ter aquele imóvel, ou mesmo se tiver dado a ele o apartamento? Pode ser, e jamais saberei porque isso não é uma coisa que qualquer dos filhos vá contar.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Santiago

Santiago é um documentário estranho, que diz muito de seu diretor, João Moreira Salles, e das delícias que as diferenças de classe instituem. Em princípio, foi corajoso expor-se daquela maneira, mostrar sua intolerância para com o ex-empregado da mansão, sua rispidez ao dirigir-se a ele, sua prepotência mesmo, no tom de voz, nas ordens que dá. Depois ele amansa e faz um mea culpa que não convence muito, meio piegas ao aproximar a morte do empregado à dos pais e chamar os irmãos para o filme.
Sobre Santiago, ele mesmo, primeiro de tudo: como é que um homem que trabalhou 30 (TRINTA!) anos para uma das famílias mais ricas do país acabou seus dias num apartamentozinho minúsculo, no Leblon, é verdade, mas minúsculo. Me lembra a Danuza confessando em seu livro Quase tudo que, em momento de brabeza na vida, ganhou um apartamento de presente de sua grande amiga Lilly Marinho (que não era Marinho então). Danuza não era o mordomo da Lilly, bien sûr, era sua grande amiga, mas mesmo assim acho que não custava nada o tal imperador dos bancos financiar a juros decentes uma moradia melhor para seu empregado de tantos anos. Êta elitizinha voraz e fominha.
Segundo: minha leitura para as idiossincrasias de Santiago está ligada ao fato de que ele foi um homem que não teve vida própria por muitos anos, com uma identidade inteiramente colada a seu ofício - servir diligentemente os ricos, daí a construção de uma incomensurável teia de vidas reais, nobres, valorosas, que ele anotou pacientemente ao longo de toda a vida. Ele mesmo diz que mora completamente só, mas nunca está sozinho, pois todas aquelas pessoas conversam com ele. Lembra muito, com as sutis diferenças entre sanidade e insanidade, o Bispo do Rosário, recolhendo coisas. No caso de Santiago, coletando vidas, estórias e histórias com as quais ia enriquecendo seu prodigioso imaginário e dando vazão a uma requintada inteligência.
Minha impressão é que se trata de um dos mais fortes documentários sobre a solidão humana, e sobre como sobreviver a ela, ainda fruindo da vida muitos bons momentos: a ópera, as castanholas, a dança.
E o amor? Santiago queria contar - tentou esboçar a frase 'sou daqueles seres malditos...', ao que a autoridade do autor (do outro) retruca em frase breve - 'isso não precisa' e ele ainda resmunga um som ininteligível. Acabou. Nada mais pode ser dito sobre... quase tudo.
Santiago - as tiradas dele são ótimas: a filmagem, o tititi dos porteiros do prédio onde mora, ele resume tudo com a observação: vão me embalsamar, ou empalhar, o que dá no mesmo. Não é o máximo de crueldade? Joãozinho não percebe, nem ouve, mas nós ouvimos. Ouviu, João?
O filme, ele mesmo, tem muitas falhas, repetições, planos chapados e uma estética 'suja', como a literatura de Clarice, que constituem sua força maior. Deixar o leitor em contato com 'quase tudo', não limpar o filme nem o que ocorreu nas filmagens faz parte do seu processo e, nesse sentido, torna-se um documentário interessante, acaba provocando o espectador, convocando-o para assumir uma posição face ao que está vendo.

domingo, 26 de agosto de 2007

Enquanto Pauls descansa

E enquanto não volto ao livro do Pauls, aproveito o embalo dos policiais para começar O sono eterno, do Raymond Chandler, o primeiro livro dele, em edição da L&PM Pocket vendida em bancas de jornais. 

A apresentação da capa final promete:

"O cenário [de O sono eterno] é a Califórnia no difícil período da Depressão, nos anos 30. Marlowe surge como um personagem tão fascinante quanto complexo: detetive particular, cínico, aparência de durão, mas com um lado generoso e sentimental. À margem dos tiras, dos clientes e dos marginais, Marlowe é um solitário convivendo com as mazelas de um tempo difícil, na cidade grande apinhada de perdedores."
O livro foi adaptado para o cinema sob o título À beira do abismo, com Humphrey Bogart e Lauren Bacall.
Vamos a ele, então.

sábado, 25 de agosto de 2007

Garcia-Roza e o Espinosa sem saída

Enquanto não decido o que fazer com O passado, vou pegando outras coisas pra ler, e acabei de acabar Espinosa sem saída, de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Comecei a gostar de seus romances policiais com O silêncio da chuva, depois li Perseguido e Berenice procura. Acho interessante no Garcia-Rosa o fato dele ser um professor por tantos anos de teoria psicanalítica, um acadêmico com vários livros publicados nessa área, sem nunca ter atendido pacientes, isso é meio raro; depois, a audácia de escrever romance policial sem qualquer tradição brasileira mais forte do gênero - isso parece facilitar as coisas, mas acho que torna tudo mais difícil, porque o sujeito tem de caminhar sozinho, meio sem pai nem mãe. 

E não é a mesma coisa ter lido toda Highsmith, Chandler, Hammett e tutti quanti da tradição policial, porque um escritor brasileiro precisa também de referências na língua materna, uma tradição de escrita e pensamento ficcionais brasileiros. Aliás, ele começou tardíssimo, aos sessenta anos, e isso é bastante inspirador; terceiro, ele achou um caminho muito próprio, uma linguagem simples mas não simplória - tem senso de humor, seu Espinosa tem caráter, identidade própria, inteligência, ironia, esperteza no bom sentido, enfim, é um sujeito bem interessante. 

Além disso, os romances mapeiam regiões e bairros do Rio de Janeiro e acaba sendo um prazer extra caminhar com os personagens por ruas nossas conhecidas e por onde passamos com freqüência, como ocorre nesse com relação ao bairro de Copacabana. Foi difícil largar o livro antes de chegar ao final, só lamentei um pouco de frouxidão exatamente nessa parte final, como se o autor tivesse ficado cansado da estória e tivesse resolvido acabar de qualquer jeito. Mas vale o tempo e a leitura.

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Garcia-Roza. Espinosa sem saída. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Desistir de um livro

É difícil desistir de um livro, sobretudo de um autor best seller, conceituado, com ótimas resenhas e, last but not least, convidado da FLIP! :). Tá certo, qualquer arroz de festa vai à flip, mas estou quase desistindo de ler O passado, do Alan Pauls, por razões diversas, a mais forte é que esse livro tem uma frase impossível, um estilo muuuuuito literário, que quer demaaaais fazer literatura, alta literatura, um livro cheio de acontecimentos em torno desse casal Rímini e Sofia. Eu não aguento mais frases como essas:

No entanto, mesmo parecendo alheio, era como se soubessem tudo desse mundo. Conheciam o mecanismo do ardor, a lógica do engano, as molas secretas da dominação e do desprezo, todas as chaves que moviam, davam brilho e às vezes aniquilavam a vida dos outros. Seus quadros da situação eram precisos; raras vezes falhavam ao fazer um diagnóstico; e quando davam conselhos - uma coisa excepcional, que só concordavam em fazer nos casos mais graves ou urgentes, de tão reativos que eram a tudo que pudesse confundir-se com a manipulação emocional -, cuidavam muito bem das fragilidades, dos impulsos, das propensões capazes de viciar a operação de parcialidade
(São Paulo: Cosacnaify, p. 39).

Mas ainda não desisti de vez, vou continuar tentando achar uma porta.
Enquanto isso, vou devorando o Espinosa sem saida, depois conto mais.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

blog do carpinejar

Nossa, o blog do Fabrício Carpinejar, grande poeta, é bom demais, vejam só a crônica que ele escreveu hoje (20/08) sobre os amigos não se visitarem, só se vendo quando marcam com muita antecedência, e que perdem o sentido do encontro casual, do estar juntos só por estar, de bobeira na vida. Eu sinto a mesmíssima coisa, e fico pensando que um dos fatores para essa deserção dos amigos seria a própria cidade do Rio, tão bela e tão 'pra fora' que ninguém mais precisa de ninguém, é só sair à rua que já se está 'no meio do mundo', daí que todo mundo precisa de ficar sozinho em casa pra compensar, mas não sei não. De todo modo, o Fabrício consegue flagrar esse sentimento de modo definitivo em http://www.fabriciocarpinejar.blogger.com.br/

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Todos se le van

Alguém escreveu este verso: Si le vent avait sufflé du Nord, mes pins de Basilac étaient perdus e esse alguém vai morrer também. CDA morreu. JCMN também. Eu vou morrer. Todos os meus amigos, amigas, os ricos (os pobres já morrem demais), os mal vestidos, os bem, os gordos -- os magros também, mas menos. Estar aqui, lá, nos chateaux franceses, nos palácios dos irmãos jaloux americanos, no daquele magnata do cinema idem -- tinha um rio a correr dentro do palácio – qual o nome dele? -- em qualquer lugar de ontem, de hoje ou de amanhã -- todos vamos morrer. Eu também vou morrer. HH morreu há pouco, ela quis morrer -- a graça da vida era ela descer líquida, mas na velhice tudo desanda, fígado, rins, ossos, e a vontade de escrever não sustenta o futuro -- que futuro quando os anos depois dos (90? 70? 80?) já afunilam a chegada final do lance final do currículo-labirinto. Todos MORREREMOS. Fim. Ana CC não quis esperar, deu aflição no pensamento e ela preferiu voar pela janela afora, libertas quae sera tamen. Drummond nunca mais vai passear na orla de Copa ou sentar no banco da praça, tomando ar fresco e olhando as meninas que passam em doce balanço, nem Vinicius, nem Jobim. Chico também vai morrer, eu vou morrer, L vai morrer, my mother vai morrer, my sister idem, R também vai, e M e T e F todo o alfabeto vai morrer.
Que nome pôr no lugar de todo mundo? Ah, Borges também morreu, embora tenha vivido mais intensamente do que qualquer de nós.