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segunda-feira, 21 de abril de 2025

GENTE MINHA. MINHA GENTE


Existem dois livros de Bocage na Biblioteca da Casa.

Em nenhum deles se encontra este seu poema.

Os primeiros versos do soneto, li-os como epígrafe do texto «35 Anos de Opressão Fascista» de José Dias Coelho, que consta do livro A Resistência em Portugal, que hoje se apresenta em Olhar as Capas, livro que comprei nos primeiros meses, após o 25 de Abril.

O caminho das pedras trouxe-me até aqui.

Cheguei aos 80 anos.

Nunca esperei viver tanto!

Senti que era tempo de lembrar os escritores, os poetas, os cantores, os músicos, os actores, os realizadores, os pintores, tanta gente, tanta gente, que me ajudaram a fazer o caminho.

É um difícil passo, provavelmente, não terei tempo para os apresentar todos.

A abertura da secção cabe a José Dias Coelho, morto pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, acontecimento denunciado num poema de António Quadros(pintor), para o qual José Afonso fez música, palavras e canção que muitos, nem todos, conhecem,  e que nos grita que a morte saiu à rua num dia assim.

Palavras de Margarida Tengarrinha, sua mulher, no prefácio de «A Resistência em Portugal»:

«Quando podia, e era muito raro poder, fazia pequenas esculturas, desenhos e gravuras, muitas das quais foram publicadas na imprensa clandestina do Partido. A sua última gravura, feita em Novembro de 1961 para o «Avante», representava o operário Cândido Martins assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral.»

houve um tempo antes de abril.
um tempo monstruoso
calados    amordaçados    sitiados    vigiados
o medo sobretudo o medo
era de noite e levaram quem nesta cama dormia, perseguições prisões mortes silêncios lutas
também um tempo de canções quem deu a cara as palavras as músicas as vozes
um dia foi a tal madrugada por que esperámos tanto tempo
depois os que entraram na barca para a afundar.
um retrato de desencanto, de impotência franjas de uma esperança apenas sonhada
e no entanto era possível
mas algum erro os filhos da madrugada cometeram
a culpa é de todos a culpa não é de ninguém
por aqui, têm passadio algumas das canções, alguns dos poetas, alguns dos músicos, alguns dos cantores, que nos ajudaram a ir ao encontro da manhã clara.
os que foram protagonistas duma grande esperança e são hoje figurantes dum grande desencanto

Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-toupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.

Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos de Santo Amaro. 

No livro “Viagens”,  o poema “Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei”, Mário Castrim assinala  esses últimos momentos de vida de José Dias Coelho:

Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã

e eu perguntei-lhe

se queria comer alguma coisa.

Disse que sim. Mas que

estava com muita pressa.

 

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe

uma sanduíche de fiambre

um copo de vinho

uma fatia de bolo-rei.

Estava de pé

comia como se fosse a primeira vez

desde a infância.

 

- Há quantos anos

deixa cá ver

há quantos anos é que eu não comia

bolo-rei?

Este é bom, sabe a erva-doce

e a ovos.

(Caíam-lhe migalhas

aparava-as com a outra mão

em concha)

 

- Comes outra fatia, camarada?

 

- Isso não.

Estou atrasado já.

Mas se ma embrulhasses...

 

Através da janela

do quarto às escuras

fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche

seguir pela Rua dos Lusíadas.

 

Nenhum de nós sabia

que estava já erguida a pirâmide do silêncio

à espera dele

num breve prazo.

 

Quando talvez o gosto do bolo-rei

mais forte do que nunca

tivesse ainda na boca.