Existem dois livros de Bocage na Biblioteca da Casa.
Em nenhum deles se encontra este seu poema.
Os
primeiros versos do soneto, li-os como epígrafe do texto «35 Anos de
Opressão Fascista» de José Dias Coelho, que consta do livro A
Resistência em Portugal, que hoje se apresenta em Olhar as Capas,
livro que comprei nos primeiros meses, após o 25 de Abril.
O
caminho das pedras trouxe-me até aqui.
Cheguei
aos 80 anos.
Nunca
esperei viver tanto!
Senti
que era tempo de lembrar os escritores, os poetas, os cantores, os músicos, os
actores, os realizadores, os pintores, tanta gente, tanta gente, que me
ajudaram a fazer o caminho.
É
um difícil passo, provavelmente, não terei tempo para os apresentar todos.
A abertura da secção cabe a José Dias Coelho, morto pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, acontecimento denunciado num poema de António Quadros(pintor), para o qual José Afonso fez música, palavras e canção que muitos, nem todos, conhecem, e que nos grita que a morte saiu à rua num dia assim.
Palavras
de Margarida Tengarrinha, sua mulher, no prefácio de «A Resistência em
Portugal»:
«Quando podia, e era muito raro poder, fazia pequenas esculturas, desenhos e gravuras, muitas das quais foram publicadas na imprensa clandestina do Partido. A sua última gravura, feita em Novembro de 1961 para o «Avante», representava o operário Cândido Martins assassinado na frente da manifestação do Barreiro contra a burla eleitoral.»
houve um tempo antes de
abril.
um tempo monstruoso
calados amordaçados
sitiados vigiados
o medo sobretudo o medo
era de noite e levaram quem nesta cama dormia, perseguições prisões mortes
silêncios lutas
também um tempo de canções quem deu a cara as palavras as músicas as vozes
um dia foi a tal madrugada por que esperámos tanto tempo
depois os que entraram na barca para a afundar.
um retrato de desencanto, de impotência franjas de uma esperança apenas sonhada
e no entanto era possível
mas algum erro os filhos da madrugada cometeram
a culpa é de todos a culpa não é de ninguém
por aqui, têm passadio algumas das canções, alguns dos poetas, alguns dos
músicos, alguns dos cantores, que nos ajudaram a ir ao encontro da manhã clara.
os que foram protagonistas duma grande esperança e são hoje figurantes dum
grande desencanto
Funcionário clandestino do Partido Comunista, José Dias Coelho seguia pela Rua dos Lusíadas, quando cinco agentes da PIDE, saltaram de um automóvel e alvejaram-no, à queima-toupa, com um tiro no peito, e dispararam outro tiro quando já se encontrava por terra.
Antes de ser assassinado, José Dias Coelho estivera em casa de Mário Castrim que, na altura, morava na Rua Luís de Camões, perto da estação dos carros eléctricos de Santo Amaro.
No livro “Viagens”,
o poema “Viagem Através de Uma Fatia de Bolo-Rei”, Mário
Castrim assinala esses últimos momentos de vida de José Dias
Coelho:
Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma
coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita
pressa.
Enquanto vestia a
gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de
fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a
primeira vez
desde a infância.
- Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que
eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a
erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra
mão
em concha)
- Comes outra fatia,
camarada?
- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma
embrulhasses...
Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar
a Rua da Creche
seguir pela Rua dos
Lusíadas.
Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a
pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.
Quando talvez o gosto
do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.