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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 
É bom voltar a Mário Scaramento.

Foram os autores do neo-realismo português e italiano que me abriram os caminhos dos dias no mundo atribulado em que os li. Não foi o pouco que li de Karl Marx que me levaram a esses caminhos. Junto-lhes Albert Camus, Roger Vailland, Roger Marin do Gard, autores americanos, foram eles que me deram, sela lá o que isso for, a visão marxista do mundo.

Num livrinho de Mário Sacramento, Há Uma Estética Neo-Realismo?, lido  pr’aí em 1968, o autor coloca uma epígrafe de Almeida Garrett: «A história do mundo não é senão uma série de reacções e contra-reacções. A da literatura é o mesmo. O que unicamente fica imutável são os eternos princípios da verdade, do gosto e da razão em tudo.»

Mário Dionísio, dos mais inteligentes e claros intérpretes do neo-realismo, mas não se pode esquecer Alexandre Pinheiro Torres, lembrou Fernando Namora que já escrevera que não se pode escrever sobre camponeses que só se tinham visto da janela do comboio.

O Neo-Realismo teve entre nós imensos detractores, provavelmente o mais incompreendido dos movimentos literários do século passado. Tão adulterado, tão vilipendiado pelos que nunca puderam sentir-lhe as raízes e o significado. Ainda por aí andam uns jovens que, sem terem lido nada de nada, bolsam disparates aterradores.

Claro que a expressão neo-realismo tem hoje uma expressão nitidamente datada. Mas foi ali que aprendi parte importante dos parcos conhecimentos que tenho. Foram aqueles autores que intentaram a literatura como instrumento de luta política e ideológica, num tempo de trevas colocado em cena por um botas vindo de Santa Comba, e acolitado por uma série de gente sem escrúpulos, profundamente analfabetos, de baixíssima moral e maus. Talvez, escreveu Alves Redol, «o embalar da esperança valha mais do que o desespero da realidade desesperada»

E não esqueço uma frase do poeta Joaquim Namorado: «Nós dizíamos que éramos neo-realistas porque não podíamos dizer que éramos comunistas.»

sábado, 22 de fevereiro de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS

Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram publicados.


A FOTOGRAFIA É UM OLHAR NATURAL

Nos finais das tardes de segunda-feira, terminado o alinhamento do Juvenil, os passos do Mário Castrim, estendiam-se para a Pastelaria Orion, ali no cimo da Calçada do Combro: um copo de leite, torrada, a que se seguia uma bica escaldada.

Ali ficávamos à conversa.

                                             Chamava-se

                                             Orion o café
                                             onde encontrava à tardinha
                                             A minha última namorada. (1)

Numa dessas tardes de segunda-feira, já com um pé na Rua Luz Soriano:

- O Augusto Cabrita está à nossa espera.

A ideia era fazer um dos Encontros do Juvenil com a exibição do Belarmino do Fernando Lopes.

Foi a única vez que privei com Augusto Cabrita.

Fiquei com a sensação estranha que há homens que não são deste mundo.

Uma humildade desconcertante, um rosto quase a pedir desculpa do que tem para dizer e admite que o que diz não tem importância para quem ouve.

Não se consegue desviar o olhar, face a um rosto daqueles.

Assim como o Carlos Paredes, lembram-se?

Também o Artul Bual, alguns outros, não muitos, com essa arte de, apenas, quererem mostrar as maravilhosas obras que faziam, nunca se colocando em bicos dos pés, um horror a holofotes que, de imediato, lhes provocavam aceleradas fugas.




Não foi longa a conversa.

O Mário Castrim tinha – sempre! - de ir a correr para a casa, esperava-o a televisão a preto e branco da ditadura, para que no dia seguinte, no Diário de Lisboa, pudesse sair o Canal da Crítica, sistematicamente com cortes, por vezes, totalmente cortado, pelos lápis azuis manejado pelos coronéis da censura, analfabetos, crápulas sem nome, às ordens de Salazar, depois Marcelo Caetano.

As fotografias do Augusto Cabrita reflectem o homem que sempre foi: atento, sensível, aquele perfume a neo-realismo, que tantos e tantos não gostam - nunca gostaram! -  de cheirar.

Uma verdade frontal em cada fotografia tirada ao quotidiano do povo, a dureza da vida das gentes do seu Barreiro.

Uma ternura desarmante, um olhar único e tocante.

A retrospectiva da obra de Augusto Cabrita continua patente, no Auditório que no Barreiro tem o seu nome, até ao dia 2 de Maio.

(1) - Versos do poema Ali se Via o Mar em  Poemas do Avante de Mário Castrim.

Texto publicado no dia 28 de Abril de 2013 

Legenda: o título é uma frase de Augusto Cabrita.
Arriflex IIB 35mm, com tripé Arriflex IIB, que se vê na imagem, foi utilizada nas filmagens de Belarmino.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

OLHAR AS CAPAS



Há Uma Estética Neo-Realista?

Mário Sacramento
Capa; Fernando Felgueiras
Cadernos de Literatura nº 1
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Maio de 1968

Está dito e redito que onde a arte se remete à expressão dum impasse, pingueponga em espelhos paralelos o ar rarefeito duma agonia. Em contrapartida, onde o realismo parte do conhecimento objectivo para a expressão directa do factual, é linguagem híbrida. O neo-realismo português tem kmuito disso, expressão circunstancial que é. Ao procurar-lhe, nas páginas que vão ler-se, uma matriz estética, abstraí desse caduco e procurei delimitar o que nele reascende do impacte científico à especificidade literária.
Processo em marcha ainda, deixo o seu encadeamento para o estudo histórico que um dia terá de fazer-se. Concebido como depoimento pessoal para um livro de colaboração colectiva que não chegou a sair, o presente ensaio é o que é e nada mais. Aos que fiquem decepcionados só há que dizer: tirem dos seus tinteiros o que aqui não coube.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

OLHAR AS CAPAS


Soeiro Pereira Gomes: Na Esteira da Liberdade
Catálogo da Exposição do Centenário
7 de Novembro de 2009 a 14 de Março de 2010

Coordenador: David Santos
Textos:
Marta da Luz Rosinha
David Santos
Luísa Duarte Santos
Manuel Gusmão
Capa: Júlio Miguel Rodrigues
Edição da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira/Museu do Neo-Realismo
Vila Franca de Xira, Novembro de 2009

Precisamente três meses antes de morrer, escreve as suas disposições testamentárias que entrega ao seu irmão Jaime Pereira Gomes:

«As minhas últimas disposições
Prevendo que pouco tempo terei de vida, expresso aqui as minhas últimas disposições. Peço ao meu querido irmão Jaime que as ponha em prática.
1 -  Os direitos de autor do meu romance Esteiros, assim como de quaisquer outras publicações minhas, ficarão a pertencer ao meu partido – o Partido Comunista Português.
2 - O manuscrito e as cópias do meu romance inédito Engrenagem ou Embate serão destruídas, por não lhe achar mérito bastante para ser publicado.
3 - Aos meus sobrinhos João Paulo e José Pedro será dada metade da minha
 corrente de ouro. A medalha da mesma ficará para a minha mulher.
4 - O meu irmão Jaime ficará com a minha cigarreira de prata, e os meus    
outros irmãos e irmãs poderão escolher, entre os meus fracos trastes,
 qualquer lembrança.
 5 - Ao meu afilhado (o filho do escritor Alves Redol) será entregue um pequeno talher de prata que está num estojo, e também a minha caneta e lapiseira.
 6 - Os meus botões de punho serão entregues à camarada Carlota. À camarada Margarida será dado o meu relógio de pulso, se, antes, não lhe tiver oferecido um novo.
7 - Os meus livros serão entregues, em partes equivalentes, às bibliotecas do Alhandra Sporting Club e Sociedade Euterpe Alhandrense, excepto os livros de técnica agrícola, a que o Partido dará o destino que entender,
                                               Em 5 de Setembro de 1949

                                       Joaquim Soeiro Pereira Gomes»

domingo, 3 de março de 2019

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Uma sinistra e insignificante criatura, ao tempo funcionário da censura salazarista, assina, como Capitão Borges Ferreira, o despacho que determinou que o livro Vagão “J”, da autoria de Vergílio Ferreira, não poderia ser lido..

As ditas «razões» do militar Ferreira, são estas:

«Parece que o autor esteve em qualquer vila ou aldeia, e escolheu para protagonista do seu romance a família mais asquerosa do povoado – a família Borralho.
É uma família de degenerados, sem escrúpulos, sem caracter, sem dignidade, constituida por pae, mãe e muitos filhos, dormindo todos no mesmo quarto, em que os pais têm relações sexuais deante dos filhos, sem o mais leve pudor de parte a parte.
A filha mais velha, que a certa altura foi servir para uma casa rica, era induzida pela mãe a roubar a patroa e a ter relações sexuais com o filho da casa, para obter recompensas.
De vez em quando o autor salienta a questão social, pondo em destaque a diferença entre ricos e pobres e mostrando bem o rancor que se apodera dos segundos pelos primeiros, quando postos em presença uns dos outros.
O romance gira todo em volta destas misérias sociais, como se pode ver com facilidade em diferentes paginas que vão assinaladas.
Em vista do exposto, sou de opinião que o livro não deve ser publicado.»

Vagão “J" é uma das poucas incursões de Vergílio Ferreira pelo neo-realismo antes de encetar os caminhos do existencialismo.

No findar do romance Gorra desafia:

«- Vocês vêm todos pra Lisboa, sempre tenho a família ao pé. Trabalho sempre se há-de arranjar.
Não Gorra, Lisboa é longe.
- Aldemenos lá ninguém nos conhece, porque isto é mesmo uma porcaria de terra, a gente não pode dar um traque que se não saiba logo.
Calhau também tinha muitos projectos na cabeça e pô-los pràli todos, Gorra foi-os examinando um por um e Joaquina transbordava de alegria. Nunca saíra daqueles sítios e que espanto quando entrou na carruagem de terceira!,  Calhau ainda inquiriu se não haveria lugar mais barato, só se fores no Vagão Jota, disse o Gorra e riu.
- Atão vamos nesse, canudo, sempre se forra alguma coisa.
- Homem, isso é pràs bestas.»

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

QUE ME DEIXOU UM POUCO PERPLEXO


Em Amsterdão, Outubro de 1970, António José Saraiva escreve a Óscar Lopes e a dado ponto anda às bicadas ao neo-realismo português:

Provisoriamente a minha conclusão (ainda há autores para ler ou reler) é esta. À excepção do Manuel Alegre (e do O’Neill, se teimarmos em o considerar neo-realista, o que me parece impróprio) não há um ínico grande escritor neo-realista, não há sobretudo um único grande criador literário que tenha inventado alguma coisa de novo em Literatura. Em prosa não há ninguém comparável ao Aquilino, à Agustina, ou mesmo ao Miguéis, ou mesmo ao Torga, ou mesmo à Irene Lisboa, que, sem ser propriamente uma águia, inventou uma maneira nova de fazer prosa. O que não quer dizer que não haja entre eles alguns bons poetas e prosadores: O Manuel da Fonseca, o Mário Dionísio, o Cardoso Pires, o Namora por exemplo (excluo o Carlos de Oliveira, que li agora pela primeira vez, e que me pareceu profundamente inautêntico, a não ser na amargura envenenada). Parece-me que a teoria estética neo-realista não tem culpa disto, porque quando um autor tem génio não há teorias que o limitem.
E não há só uma invenção. Há talvez até recuo em relação a aquisições já feitas. Há um classicismo inquietante no Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, etc. (sem falar na simples ignorância do ofício do redol e outros.
(…)
Para resumir, para o conhecimento do nosso povo rural os neo-realistas nada acrescentaram ao Camilo e ao Aquilino; para o conhecimento da nossa burguesia citadina, nada acrescentaram ao Eça e ao Teixeira de Queiroz, e ficam muito abaixo do Paço d’Arcos.
Há a excepção do Ferreira de Castro, que me deixa um pouco perplexo. Ele não sabe escrever, tem diálogos horrorosos e é muito provável que a obra dele caia no esquecimento por lhe faltar a factura artística que dá perdurabilidade a uma obra. Mas abriu horizontes, chamou à literatura outra temática, e por esse lado tem um grande papel histórico. Mas tenho o palpite que, à excepção do Redol e do Soeiro, os neo-realistas voltaram a fechar o horizonte.


Legenda: Ferreira de Castro

segunda-feira, 7 de maio de 2018

CAMPONESES QUE SÓ SE TINHAM VISTO DA JANELA DO COMBOIO


Creio ter contribuído alguma coisa para dotar o neo-realismo de uma nova dimensão, outra lingua­gem, na poesia, na ficção, na teoria (a ordem é arbitrária), como os pesquisadores, se os houver e forem capazes de, talvez confirmem. Que não es­queçam as datas por favor.
 O problema principal, para mim, seria nunca escrever sobre camponeses que só se tinham visto da janela do comboio, de acordo com o que o Na­mora dissera na nota introdutória do seu livro do «Novo Cancioneiro»: «Este é um livro da Terra: da Terra que não foi vista da janela do comboio». Nunca escrever, portanto, sobre camponeses mol­dados nos de romances de alheias literaturas, mas só sobre gente e meios que o autor directamente conhecesse. E tão de dentro quanto possível. Nu­ma entrevista posterior (a tal dada a O Primeiro de Janeiro), tornaria isto bem claro. Era muito natural que, na relação camponeses/operários, os campone­ses fossem os preferidos e bem se entenderá por­quê. A censura tinha os olhos muito mais abertos para o que se referisse àqueles. Os problemas que os operários suscitavam tornavam-nos mais difíceis (perigosos) de tratar. A explosão no campo (a ve­lha pobreza do camponês) era um tema sabido e de algum modo consentido, tinha uma longa tradição que ajudava a ocultar os novos propósitos com que o abordavam, enquanto a exploração na cidade, sobretudo nas fábricas, era inevitavelmente explosiva.
 Mas não havia só camponeses e operários. Ha­via a sociedade inteira: tudo dependia do «ponto de vista» (ver outra vez a citada entrevista). Havia, nomeadamente, a pequena-burguesia a que todos pertencíamos, que conhecíamos de dentro e que tinha (teria), quanto a mim, um papel importante na situação política portuguesa. Não inventada, mas observada e pessoalmente vivida, a pequena-burguesia permitiria trazer a nossa ficção para a cidade. E foi o que fiz em quase todo O Dia Cin­zento. Por isso terá sido tão mal compreendido quando apareceu. Mas a actividade clandestina lá está, e na cidade. Bastou o pequeno truque de dar nomes estrangeiros às personagens (na 1ª edição), simulando, para a censura, tratar-se duma história da Resistência francesa. As pessoas, contudo, as ruas, os recintos descritos no «Nevoeiro na cida­de» são de Lisboa. A casa da personagem principal é na Calçada dos Cavaleiros, o café é em frente da estação do Rossio. Aí os via, escrevendo.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda; desenho de Lima de Freitas

segunda-feira, 30 de abril de 2018

NÓS AMÁVAMOS MUITO E SABÍAMOS POUCO


A guerra de Espanha, aqui ao lado, vivida dia a dia e hora a hora com o ouvido colado aos apare­lhos de TSF, por causa das interferências meticulo­samente provocadas, por causa dos vizinhos (fos­sem eles quem fossem), com projectos ansiosos de ir lá ter («Partir./Partir para a pátria instável onde o grito salta das veias», versos meus de 38) e o re­morso de ficar. As notícias diárias dos bombardea­mentos, dos fuzilamentos, das aldeias destruídas, sem pão, sem armas. E o «no pasarón!». O não passarão vibrando no nosso desespero, ainda antes de gritado nas barricadas de Madrid, sentido em silêncio e lágrimas, neste país agrilhoado, esvaziado, com os amigos perseguidos, presos, torturados, muitos deles mortos não se sabia onde. Houve um tempo em que nem saber onde estavam se podia.
 Tudo isso foi raiz (e corpo) do neo-realismo. Do neo-realismo de que participei desde a hora antes do amanhecer, com o Joaquim Namorado, o Re­dol, o Namora, o Fonseca, o Carlos de Oliveira, muitos mais. Do neo-realismo que rapidamente se propagou e diferenciou. Que era e continua a ser motivo de confusões intencionais, involuntárias, talvez inevitáveis. Apesar de tudo o que, também eu, sobre ele escrevi e repeti. Dos estudos que al­guns lhe têm dedicado.
 Nós amávamos muito e sabíamos pouco. «A re­forma social» (e estética) «esbarrava na própria so­ciedade néscia que havia sido o caldo de cultura dos neo-realistas e também o [de mim] próprio», como bem diz um estudioso do movimento, ele próprio neo-realista, embora não da primeira va­ga. Líamos Barbusse, Gorki e Gladkov, os brasi­leiros, misturando Romain Rolland, Oscar Wilde, Tolstoi e Erich Maria Remarque, Panait Istrati e Malraux. Vagamente conhecíamos o Orpheu, pou­co melhor a própria Presença que tão juvenilmente combatíamos. Moralmente, estavam-nos vedadas grandes paixões futuras: o Proust, o Gide, Katherine Mansfield, tantos e tantos mais. Muitas vezes me espanta como, com tão pouca bagagem, podía­mos viajar até tão longe.
 A luta entre neo-realismo e surrealismo foi em parte um equívoco a que o nosso gueto forçosa­mente nos levou. Ao contrário do que aconteceu em França, o surrealismo em Portugal é posterior ao neo-realismo. Lá, muitos surrealistas, a começar por Aragon e Éluard, se tornaram comunistas e deram então à sua obra um cunho directamente social e político. Aqui, pelo contrário, foram os neo-realistas, não muitos na verdade, que se torna­ram surrealistas e se afastaram duma frente de combate que não lhes oferecia o espírito de renova­ção estética a que aspiravam. Aqui, ao contrário do que aconteceu em França, é a poesia de carácter directamente social que adoptará métodos criati­vos que só o surrealismo poderia fornecer-lhes. Não foi o que eu próprio fiz n' O Riso Dissonante, por exemplo, ou no Feu qui dort: «une pluie de taureaux est tombée sur la ville»? Dizer a verdade é bom.
 Entretanto, valerá a pena ao menos insistir em que: primeiro, nunca concordei com a designação de neo-realismo, que se deve a uma infeliz inspira­ção de momento do Joaquim Namorado, meu grande amigo até à morte; segundo, para mim, «neo-realismo» não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer «realismo socialista»; terceiro, para mim ainda, o neo-realismo deveria ser a expressão estética duma vi­são marxista do mundo e, sendo esta tão complexa como se sabe (quem o sabe), aquele movimento — nunca «escola» — teria de desdobrar-se em diver­sas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis — o que efectivamente aconteceu. O seu domínio seria o do «extremamente complexo conhecimento dia­léctico do homem» (Lenine). Complexo e dialécti­co, façam favor de tomar nota. Seria a voz duma classe em ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de in­tegrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí estava a utopia.

Mário Dionísio em Autobiografia

sexta-feira, 29 de maio de 2015

OLHAR AS CAPAS


Helena Vaz da Silva Com Júlio Pomar

Helena Vaz da Silva/Júlio Pomar
Capa: Auto-retrato (design gráfico José Cândido
Edições António Ramos, Lisboa, Novembro de 1980

Quando se formou o Mud Juvenil, eu fiz parte da primeira comissão central, onde estavam entre outros, Mário Soares e Octávio Pato, que assinava na circunstância Octávio Rodrigues…
Em 1946-47 pintei um fresco com mais de 100 metros quadrados no Cinema Batalho, do Porto, encomenda particular que haviam tido a audácia de me confiar e eu a audácia assim destemperada em propor-me e aceitar. Tinha vinte anos. Casara-me. E no intervalo dos andaimes, num quarto minúsculo onde dormia, pintei o «Almoço do Trolha» que anda para a frente e para trás quando se trata de evocar o neo-realismo. A Pide prendeu-me antes do mural estar pronto. Como utilizava a técnica tradicional do fresco, em que cada fragmento tem de ser pintado de uma só vez antes da secagem da parede, o canto inferior direito (cerca de 4 metros quadrados) ficara nu. Assim abriu o cinema e o público acorreu e indagou e soube o porquê. Quando saí da prisão acabei o fresco rapidamente, nas horas em que o cinema não funcionava. Depois a Pide mandou que ele desaparecesse e ele foi tapado. O «Almoço do Trolha» não teve destas desgraçadas honras. Mas quando o expus, o quadro que lhe estava ao lado e se chamava «Resistência» foi apreendido no assalto da Pide à Sociedade de Belas Artes durante a segunda Exposição Geral de Artes, estava eu preso. 

AS CABEÇAS CORTADAS: A RECUSA DE SER CONTIDO


A notícia:

O quadro "O Almoço do Trolha", obra icónica do movimento neorrealista português, foi vendido em leilão, em Lisboa, por 350 mil euros.

Vitor Dias escreveu no seu O Tempo das Cerejas: 

Eu e o pessoal de esquerda da minha geração levámos talvez metade das nossas vidas (ou mais) a ler e ouvir babosices, preconceitos, caricaturas e sobrancerias sobre o neorealismo. Agora uma das mais emblemáticas obras do neorealismo na pintura é vendida por 350 mil euros. Estamos vingados.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

SOU DE TODA A PARTE ONDE TRABALHO


Quando morre no dia 5 de Dezembro de 1949, Soeiro Pereira Gomes tem 40 anos.

Soeiro Pereira Gomes morreu em Lisboa e, por vontade da família, foi a enterrar no cemitério de Espinho.

O povo exigiu a passagem do cortejo fúnebre por Alhandra.

Nesse dia, aquele papel anónimo lançado para as flores do caixão, que dizia:

Ao nosso querido e inesquecível amigo, Joaquim Soeiro Pereira Gomes, lhe rendemos, neste momento, em nome de todo o povo honrado e trabalhador de Alhandra, a última e derradeira homenagem àquele que soube, perto ou longe, contribuir para a liberdade do Povo de Portugal
Nós te juramos, querido e saudoso camarada, que, sejam quais forem os obstáculos que os responsáveis da tua morte nos levantarem, levantaremos sempre bem alto, mas enfrentando a morte, a bandeira da democracia pela qual sempre honradamente sonhaste lutar e morrer.
Nós te juramos, saudoso amigo, pelo amor dos nossos filhos.

Esteiros de Soeiro Pereira Gomes é um daqueles livros que nos marcam para uma vida.

Na biblioteca do meu pai estava lá o livro, edição da Sírius, com os belíssimos desenhos de Álvaro Cunhal e aquela dedicatória:

Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro.

Uma dedicatória como esta não pode enganar qualquer leitor.

Aliás, são lindíssimas as dedicatórias dos livros de Soeiro Pereira Gomes.


Para os trabalhadores sem trabalho – rodas paradas duma engrenagem caduca.

De Contos Vermelhos:

Aos meus companheiros que, na noite fascista, ateiam clarões duma alvorada.

Do conto Mais Um Herói, incluído em Refúgio Perdido:

À memória de Ferreira Marquês e de quantos, nas masmorras fascistas, foram mártires e heróis.

Manuel Gusmão em Soeiro Pereira Gomes tomar a palavra: dedicatórias e promessa:

Quando o lemos, percebemos que quem dedica aqueles contos e romances é alguém que assim estava a dedicar a sua vida.

Em Janeiro de 1972 a Editora Europa-América publicou as, possíveis, Obras Completas de Soeiro Pereira Gomes.

Dela não fazem parte os Contos Vermelhos e o que de Refúgio Perdido se publica, não consta, entre outros, o conto Mais um Herói.

Para Refúgio Perdido, as Publicações Europa-América, seguem o volume editado, em Junho de 1950, pelas Edições SEN, do Porto, com prefácio do jornalista Manuel de Azevedo.

Recentemente, o jornal Público, na sua colecção Livros Proibidos, publicou uma edição fac-símile em que reproduz os ofícios trocados entre a Censura salazarista e a editora.




A versão completa de Refúgio Perdido é publicada, em Fevereiro de 1975, pelas Edições Avante.

Soeiro Pereira Gomes nasceu em Gestaçô, concelho de Baião, distrito do Porto, no dia 14 de Abril de 1909.

Com 22 anos fixou-se em Alhandra e, por intervenção do pai de sua mulher, Manuela Câncio Reis, empregou-se nos escritórios da Fábrica de Cimento Tejo.

Em Alhandra, foi o grande impulsionador do movimento cultural entre os trabalhadores e o povo. Montou bibliotecas, nas colectividades de cultura e recreio, realizou conferências sobre temas culturais, de desporto, promoveu cursos de alfabetização e de ginástica, a construção de uma piscina – A Charca – em que trabalhou como operário e, juntamente, com Alves Redol e Dias Lourenço, organizou os célebres passeis de fragata que mais não eram que uma subtil maneira de proporcionar encontros entre intelectuais e quadros do Partido, longe dos olhos e ouvidos das polícias.

Conta quem com ele conviveu, que Soeiro Pereira Gomes não se limitava a escrever livros: vivia-os.

Os seus contactos pessoais, os laços humanos que construiu, a fraternidade que respirava cada uma das suas palavras, forneciam-lhe os materiais com que organizava a luta, dia e noite, sem qualquer ponta de desfalecimento. Na luta por um país sem fome nem miséria, Soeiro Pereira Gomes, juntamente com outros intelectuais, esteve na linha da frente.

A tua alegria é a minha alegria. A tua tristeza é a minha tristeza. Na vitória final estaremos todos, e até mortos vão ao nosso lado como escreveu José Gomes Ferreira.

Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos nas margens do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama que só o rio afaga.

Um livro a que volto sempre com o mesmo gosto ternurento de quando o li pela primeira vez.

Você, este ano, só trouxe novatos, ó mestre!
Mas dão conta do recado, patrão. Valem por homes.

Adolfo Casais Monteiro:

O seu romance foi recebido pela crítica de todas as tendências com o maior aplauso. Isto se deve, sem dúvida, a ser Esteiros uma obra que se impõe pela veracidade ao mesmo tempo que pela poesia, dos sucessivos quadros em que nos apresenta essas inesquecíveis figuras de crianças miseráveis, o pessoal mártir dos esteiros da margem do Tejo, na época do ano em que se fabrica o tijolo; mártires também, durante o resto do ano, em que nem o sofrimento do trabalho bárbaro os ajuda a subsistir condenados à vagabundagem e à fome.

O sonho do Gineto na prisão, por andar a roubar carvão e fruta: que os amigos, o Gaitinhas, o Sagui, virão para o libertar e  mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos.

 Gente que Soeiro Pereira Gomes conheceu bem e soube amar como ninguém.

E só se fala bem daquilo que se ama.

Ou, como diria, Paul Éluard: o poeta deve ser mais útil do que qualquer outro cidadão da sua tribo.

Nota do Editor: o título é retirado de um diálogo de Engrenagem.

Legenda: ampliação dos desenhos de Álvaro Cunhal que ilustravam o início de cada capítulo d 1ª edição de Esteiros, tirada de Soeiro Pereira Gomes: Na Esteira da Liberdade, edição do Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira, Novembro de 2099.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

OLHAR AS CAPAS

Novo Cancioneiro

Prefácio, Organização e Notas: Alexandre Pinheiro Torres
Capa: Mário Caeiro sobre ilustração de Carlos Marques
Editorial Caminho, Lisboa, Dezembro de 1989

Perguntamos agora: teria havido factores externos que levaram o neo-realismo a uma tomada de consciência que fosse nova ou diferente da que caracterizava a geração anterior? Ouçamos o diagnóstico de um dos escritores históricos do movimento: José Marmelo e Silva:
«Que era o mundo para um jovem nos anos 35-39? Que era a Europa? Que era o país? Que era cada um de nós?
Em 35 surge o primeiro grande sinal da loucura de Hitler, pondo dentes de aço nas insaciadas bocas alemãs (E queda-se o pacato mundo a ver)… A nós portugueses, a guerra civil aqui ao lado bem nos mostrara, atroz, o odor acre da carnificina (…)
Olhando, enfim, as nossas culpas ao espelho, - o que era Portugal? Portugal era mais uma vez o país das grandes crises absolutistas, do Santo Ofício, dos Mártires da Pátria, do Pina Manique, do António Oliveira Salazar (Salazar, Salazar) E custa a crer (…) Onde os direitos humanos no Portugal de 36-39? Onde o trabalho e a justa remuneração? Quantos desempregados (em estatísticas que se não faziam)? Tudo pesado, sombrio, asfixiante. A literatura política, que por eufemia se houve de chamar Neo-Realismo, germinou sob a temperatura fria de estufas policiais. Poderá dizer-se que a invocação a Marx, ignorado pelo realismo queirosiano, rompeu do anonimato e das grades (ou subterrâneos) das prisões.»

terça-feira, 9 de setembro de 2014

OLHAR AS CAPAS


Prazo de Validade

Luiz Pacheco
Ilustrações: Manuel João Ramos
Contraponto, Palmela, Setembro de 1998

Anoto, com algum pesar, que fomos (eu, o Cesariny, O’Neill, António Domingues) muito injustos com certos nomes do melhor neo-realismo, a quem acusávamos de sectarismo incurável, Nunca tive convivência com João José Cochofel, que conheci nos concertos da Sonata. Mas com Mário Dionísio, sim. E uma enorme admiração, Ainda agora me enraiva o esquecimento a que está votado o livro de contos “O Dia Cinzento”.

domingo, 28 de abril de 2013

A FOTOGRAFIA É UM OLHAR NATURAL


Nos finais das tardes de segundas-feiras, terminado o alinhamento do Juvenil, os passos do Mário Castrim, estendiam-se para a Pastelaria Orion, ali no cimo da Calçada do Combro: um copo de leite, torrada, a que se seguia uma bica escaldada.

Ali ficávamos à conversa.

                                             Chamava-se

                                             Orion o café
                                             onde encontrava à tardinha
                                             A minha última namorada. (1)

Numa dessas tardes de segunda-feira, já com um pé na Rua Luz Soriano:

- O Augusto Cabrita está à nossa espera.

A ideia era fazer um dos Encontros do Juvenil com a exibição do Belarmino do Fernando Lopes.


Foi a única vez que privei com Augusto Cabrita.


Fiquei com a sensação estranha que há homens que não são deste mundo.

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Uma humildade desconcertante, um rosto quase a pedir desculpa do que tem para dizer e admite que o que diz não tem importância para quem ouve.

Não se consegue desviar o olhar, face a um rosto daqueles.

Assim como o Carlos Paredes, lembram-se?

Também o Artul Bual, alguns outros, não muitos, com essa arte de, apenas, quererem mostrar as maravilhosas obras que faziam, nunca se colocando em bicos dos pés, um horror a holofotes que, de imediato, lhes provocavam aceleradas fugas.


Não foi longa a conversa.

O Mário Castrim tinha – sempre! - de ir a correr para a casa, esperava-o a televisão a preto e branco da ditadura, para que no dia seguinte, no Diário de Lisboa, pudesse sair o Canal da Crítica, sistematicamente com cortes, por vezes, totalmente cortado, pelos lápis azuis manejado pelos coronéis da censura, analfabetos, crápulas sem nome, às ordens de Salazar, depois Marcelo Caetano.

As fotografias do Augusto Cabrita reflectem o homem que sempre foi: atento, sensível, aquele perfume a neo-realismo, que tantos e tantos não gostam - nunca gostaram! -  de cheirar.

Uma verdade frontal em cada fotografia tirada ao quotidiano do povo, a dureza da vida das gentes do seu Barreiro.

Uma ternura desarmante, um olhar único e tocante.


A retrospectiva da obra de Augusto Cabrita continua patente, no Auditório que no Barreiro tem o seu nome, até ao dia 2 de Maio.

Legenda: o título é uma frase de Augusto Cabrita.
A Arriflex IIB 35mm, com tripé Arriflex IIB, que se vê na imagem, foi utilizada nas filmagens de
Bernardino.

(1) - Versos do poema Ali se Via o Mar em  Poemas do Avante de Mário Castrim, Edições Avante, Lisboa Agosto 1998.