Mostrar mensagens com a etiqueta Ana Salomé. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Ana Salomé. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 26 de junho de 2024

GRANDES POETAS

Agora talvez entendas porque não escrevo
entretida com a arquitectura volátil dos dias
com os afazeres esponsais e profissionais
a apanhar eléctricos em curto-circuitos
às voltas com este tumulto manso que abafo
porque, sejamos sinceros, só grandes tumultos
dão grandes poetas, de resto há a frieza
dos que se mentem a si próprios
e vão chamando a si os pássaros
quando o que deveriam era libertar os seus
numa torrente que não acompanham ortografias
nem radiografias sentimentais.

Desculpa se me tornei naquilo que queria ser
quando escrevia: amante e amada
de tal forma que se tocar em flores elas se multiplicam
se beber água nasce um caudal por entre milhares de minérios
se falar de estrelas um segundo demora anos-luz a passar.
À antiga pergunta se antes a vida que a escrita
melhor a primeira quando pior é a segunda
porque, mais uma vez a sinceridade,
só grandes vidas dão grandes escritas,
grandezas díspares, com certeza, mas grandezas, sem dúvida.

Assim chego eu a casa e faço o jantar
e lavo a loiça – quando não a acumulo em pilhas –
e leio livros – quando não me lembro da televisão –
e sou feliz quando enlaço as mãos na maresia
e vou ao cinema com amigos
e passeio de braço dado com a mamã.

Se isto dá uma grande poeta?
tenho-me perguntado, todos os dias,
e à noite uma cavalgada inquieta
dirige-se à região desamparada do cérebro
à côncava existência do corpo ainda insatisfeito
a essa solidão sublime que me levou em certos dias
aos Himalaias e noutros ao farol de Brest.
Nesses segundos que se dirigem a mim
Von Hofmannsthal volta ao esperma para não nascer
e tudo é possível desde amar mulheres até matar
e sobreviver ao crime limpidamente.

Nesses segundos os meus poemas poderiam ser grandes
e ser eu uma grande poeta
apascentando-me de folhinhas de louro
e para mim ter metros infindos de mundo por explorar.


Ana Salomé

segunda-feira, 29 de abril de 2024

POSTAIS SEM SELO


A memória tem esses risos, essas lágrimas dos tempos em que as lareiras faziam sentido e subiam pelas paredes à sombra nocturna da janela.

Ana Salomé

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

FERRO


É óbvio que podia deixar de respirar,

fechar os pulmões como os portões da avó

para o Fequinha Meu não sujar os lencóis.

Porque é isso, quando respiro sujo uma espécie

de pureza que me pensava destinada,

dou mais uma colherada na infelicidade

que todos os meus antepassados ferveram para mim.

Sei que é uma visão doentia,

mas penso em todas as vezes que se foram deitando

por amor, por fastio, por falta de luz,

até eu nascer nas camas de ferro.

A memória tem esses risos, essas lágrimas

dos tempos em que as lareiras faziam sentido

e subiam pelas paredes à sombra nocturna da janela.

O meu corpo é essa memória e um tanto de futuro.

Talvez amanhã feche os portões do meloal

 e me estenda sobre a última alegria da aldeia,

veja o avô e a avó a fiarem-se as mãos

e me demore no pêlo dourado do cão

que, como todos nós, chorou porque viu

a ternura erguer a casa de todas as manhãs.

É óbvio que será esse o ar das minhas últimas palavras.

 

Ana Salomé em Resumo: a poesia em 2009

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

LUME


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.



Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.
Ana Salomé em Resumo: a Poesia em 2009, Assírio &Alvim, Lisboa Março 2010.

Legenda: pintura de Raymond Leech