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terça-feira, 31 de maio de 2022

SACANICES JORNALISTICAS


Quando há dias, quis completar a resposta a um comentário de Luís Eme sobre o indecente despedimento da Visão, da escritora e jornalista Ana Margarida de Carvalho, tive necessidade de consultar o livro «Memórias Vivas do Jornalismo» de Fernando Correia e Carla Baptista.

Fiquei depois a refrescar-me com a releitura de algumas páginas do livro, um vício gratificante que utilizo constantemente, e fui cair numa história contada pelo jornalista Roby Amorim, falecido em Dezembro de 2013, que refere a filha-da-putice  feita ao escritor Carlos Eurico da Costa, então jornalista do Diário Ilustrado.

O Diário Ilustrado era propriedade da Sociedade Abel Pereira da Fonseca, que vivia do lucrativo comércio, entre outros, de vinhos, azeites e bacalhau, um jornal  recheado de bons jornalistas e colaboradores, o mais possível contra a ditadura salazarenta, mas os proprietários sempre se borrifaram para o jornal. 

Só que um dia mostraram-se interessados num grande projecto que era fazer alumínio em Angola, isso necessitava da intervenção governamental e para isso era preciso estar bem com o governo e tiveram a necessidade de controlar o jornal começando por dar uma varridela nos jornalistas da casa, todos, ou quase, gente da oposição.

Um desses casos foi o despedimento de Carlos Eurico da Costa com um pretexto perfeitamente absurdo. Ele tinha tirado duas ou três linhas de chumbo (os jornais ainda se faziam a chumbo) porque era pescador, para fazer lá uns apetrechos para a pesca, duas ou três linhas de chumbo que custavam dez centavos ou qualquer coisa assim. Foi despedido por roubo. 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

VELHOS RECORTES


 A escritora Ana Margarida de Carvalho, em Dezembro de 2016, ao fim de 24 anos, foi despedida, da revista Visão e deixou esse despedimento retratado num depoimento que espelha no que se tornou o jornalismo português. «Sem uma única palavra de explicação», a jornalista considerou-se «destratada e desconsiderada e humilhada», para além de ser «coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável».

Ana Margarida de Carvalho assinou reportagens que lhe valeram sete dos mais prestigiados prémios do jornalismo português, entre os quais o Prémio Gazeta Revelação do Clube de Jornalistas de Lisboa, do Clube de Jornalistas do Porto ou da Casa da Imprensa. Publicou artigos na revista Ler, no Jornal de Letras, na Marie Claie e ocupava o cargo de Grande Repórter na Visão. Também passou pela redacção da SIC. Foi vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela APE com o seu romance de estreia, «Que Importa a Fúria do Mar» e «Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato».

«Havia um autor famoso que dizia “fala sobre o que quiseres, mas não escrevas sobre a vidinha”. Pois venho desobedecer-lhe, é justamente da vidinha que eu venho aqui tratar. Da minha. E quero, antes de tudo, agradecer a tantos e tantos amigos e colegas (alguns distantes) que se interessaram e quiseram saber e me telefonaram e mandaram mensagens. Nem imaginam como foi importante para mim. Não vou esquecer. Os que não me falaram, não se preocupem, eu já esqueci.
1º- Não deve haver nada mais inglório do que acabar uma carreira de 24 de jornalismo num gabinete de um director de recursos humanos.
2º- Não deve haver nada mais inglório do que ter de enfrentar sozinha um destes seres anónimos e transitórios, sem uma única palavra de explicação, de apoio e de solidariedade de quem devia e podia.
3º- Não deve haver nada mais inglório do que ser destratada e desconsiderada e humilhada e coagida a assinar um contrato de rescisão, tudo menos amigável.
4º- Este meu despedimento não foi a pior coisa que me aconteceu naquela redacção. Foi apenas a última.
5º- Não guardo qualquer ressentimento em relação a esta direcção. É tão má como qualquer outra anterior (sem contar obviamente com a do Carlos Cáceres Monteiro, o único director, grande-repórter, líder que conheci). Estes apenas fazem o que lhes mandam- e mal. São outros seres anónimos e transitórios. E estão assustados (no sentido brechtiano do termo)
6º- Cometi um erro: foi levar o jornalismo demasiado a sério, quando ele não queria ser levado a sério.
7º- Não, cometi, dois erros: o de a certa altura da minha vida ter colocado o jornalismo à frente de tudo. Da literatura, sim (comecei a escrever muito tarde), dos meus próprios filhos, quando eram pequenos - e isto dói.
8º- Terceiro erro (há sempre um terceiro): estava sempre tão atolada em trabalho, tão concentrada nas reportagens, nas entrevistas, numa correria, cheia de entusiasmos - o que não faz mal nenhum porque era muito nova, tinha muita energia, mas tinha muita ingenuidade também. Resultado: nunca dei conta, a tempo, de como a incompetência e falta de talento estão associadas, por sua vez, a um talento desmesurado para a intriga e para o 'mau coleguismo'. Palavra que não fazia ideia de que a inveja podia ser uma força tão mobilizadora.
9º- No jornalismo conheci as piores pessoas, as mais cobardes, as mais desleais, as mais mesquinhas, as mais medíocres, as mais desinteressantes, as mais incompetentes, as mais desonestas, algumas nem sabia que podiam existir (achava que era só nos livros, enfim)... Mas depois conheci pessoas maravilhosas que se tornaram amigas de infância. E isso vale tudo e apaga o resto.
10º- Por causa do jornalismo contactei de perto com personalidades admiráveis, fui a sítios onde jamais iria, conheci mundos outros. Nunca cometi nenhum erro grosseiro, nunca falhei um prazo, nunca me atrasei na entrega de algum trabalho... Devo-lhe muito, mas não farei as pazes com o jornalismo tão cedo. Talvez um dia. Porque o trabalho é um direito, não apenas um dever, a minha vontade é, juro, ir-me embora, sair do país, ir fazer voluntariado para um sítio longínquo e perigoso, onde não me considerem «dispensável». . Bom... depois do Natal logo vejo...
Obrigada a todos os que chegaram até aqui.

 

Ana Margarida de Carvalho

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

AS FOTOGRAFIAS DO VIAJANTE


Num dos inquéritos de Verão que o Público andou a publicar, perguntaram à escritora Ana Margarida Carvalho: «Qual a sua maior extravagância?»

A resposta saiu assim:

«Atirei ao Rio Gilão uma anel valiosos, porque estava irritada com a pessoa que mo ofereceu. Gosto de pensar que talvez um peixe o tenha engolido e sido pescado, e ido parar de alguém que hoje ainda o conserve e estime o anel. Devia tê-lo vendido numa casa de penhores, mas não teria o mesmo dramatismo.»

sábado, 9 de março de 2019

TER PACIÊNCIA


Na carta que te escrevo, pergunto-te se posso morrer antes de ter vivido. Ou se posso ressuscitar sem ter morrido primeiro. O tempo arrasta-me e aquele em que te não escrevo já está longe demais. Tu tens a sabedoria da paciência. Agora sei, agora aprendi. Para se saber é preciso ter paciência. Esperar e ver.

Ana Margarida de Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

E SE EU FOSSE MÚSICA, MÃE?


Não, nunca escolheria uma canção de amor, nem uma canção que se pudesse cantar. Se ela fosse música, gostaria de ser A Chang is Gonna Comne, de Sam Cooke.
«I was born by the river in little tent…»
Não tanto pelas conotações da luta Americana anti-racista, essas só as aprendeu mais tarde, mas porque falava em rio e também ela tinha nascido junto a um rio.
«And just like that river, I’ve been runnin’ ever since.
Só que ela nasceu junto a um rio de ocaso, onde as águas já perderam a pureza alcalina das origens e vêm corrompidas de sais, sódios, resíduos e outras metástases de poluição.

Ana Margarida de Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

quarta-feira, 21 de março de 2018

POSTAIS SEM SELO


Nunca sabemos o que sabemos, onde começa a nossa recordação e acaba a dos outros, o que lembramos hoje é sempre o que da última vez lembrámos, são falsas todas as memórias.
E tudo se mistura, um sonho, um facto, uma recordação, vários pontos acrescentados que formam uma constelação defeituosa – tudo feito da mesma matéria, uma esponja, cheia de lapsos e interstícios, e às vezes quando se espreme sai uma gota a custo, outras, um jorro torrencial.

Ana Margarida Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

Legenda: fotografia de Eric Vance

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Os velhos deitam-se antes da hora de deitar, e acordam antes da hora de acordar.

Ana Margarida de Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Quando há um prego que se destaca, martela-se. E no entanto, mesmo amolgado e enterrado, continua lá.  

Ana Margarida de Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Tanta terra no mundo para morrer, tão pouca para viver.

Ana Margarida de Carvalho em Que Importa a Fúria do Mar

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

OLHAR AS CAPAS


Que Importa a Fúria do Mar

Ana Margarida de Carvalho
Capa: Rui Garrido
Teorema, Lisboa, Maio de 2013

Tersa gente esta, de almas baldias, vontades torcidas pelo frio que aperta, amolecidas pelo sol que expande. Ando aqui a ganhar a morte. Nestes campos de giesta, engatadas raízes no chão, tão presas de seiva e vontade que não as pode a força de um homem arrancar. Ervas daninhas mais difíceis de vergar do que um pinheiro bravo à machadada. O pinheiro deixa o coto apodrecido, vã ruína orgânica, mas as raízes das giestas mantêm-se sorrateiras, infiltrantes, debaixo da terra, a aguardar melhor ocasião para levantar haste. E, mal um homem vira costas, lá estão elas, sob os pés, soturnas, insinuantes, sôfregas de todas as pingas de água, a saciarem-se, a exaurirem as lavouras, sem sequer a gentileza de uma sombra, só pasto de insetos, refúgio de furões, conspiração do matagal. Assim ando eu. Entre mato rasteiro e bravio. Que a vida sempre me foi um ferro de engomar. Quando há um prego que se destaca, martela-se. E no entanto, mesmo amolgado e enterrado, continua lá.  
De quem é o carvalhal?
Ando aqui a ganhar a morte. A vergar-me a cada passo, nesta rabugem vegetal, com involuções de ouriço-cacheiro. Se me tocam, eu abro pico em todas as frentes. Que eu nunca pedi nada. Nunca encomendei sermão. Nunca enclavinhei a mão par dar um murro na mesa. Nem me caberia esmurrar a mais dilecta peça de mobiliário da casa. Onde os manjares eram pousados de mansinho  e arrebatados em silêncio, aspirares de estagnação e respeito – e, no final, as migalhas ajuntadas e receosamente pinçadas entre o indicador e o polegar.
Graças vos dou, meu Deus, por me teres dado de comer e beber sem o merecer, dai-me o céu quando morrer.
Rogávamos-Lhe o céu, ambicionávamos-Lhe a terra. Não a leveza dela em cima de caixão, que esses póstumos torrões não aconchegam, mas afrontam quem nunca teve terra em vida à mão de semear, e agora conquistava sete palmos dela, abençoada, quando os dedos gélidos e descarnados repousavam, entrelaçados, sobre o peito. Inúteis até para arrancar raízes. Tanta terra no mundo para morrer, tão pouca para viver.
Leva-me devagar. Que não fui tido mas fiz achado.
A alma é do criador e da santíssima virgem. E da terra também.
O achado é meu.
E de quem é o carvalhal?

sábado, 21 de outubro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Deixa-me dizer-te os meus silêncios, sei que um dia os vais conseguir ouvir.

Ana Margarida de Carvalho em Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato

Legenda: Fotografia de Jonathan Rauch

terça-feira, 26 de setembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Os velhos mentem estupendamente bem.

Ana Margarida de Carvalho em Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato

quinta-feira, 27 de abril de 2017

POSTAIS SEM SELO


Os mortos ao menos não sonham, são sonhados.

Ana Margarida de Carvalho em Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato

segunda-feira, 27 de março de 2017

OLHAR AS CAPAS


Não Se Pode Morar Nos Olhos De Um Gato

Ana Margarida Carvalho
Capa: Rui Garrido
Teorema, Lisboa, Abril de 2016

Nunzio queria ir consolar Emina, aconchegar-lhe os pensamentos, ensaiou mil maneiras de a abordar, todas lhe pareceram forçadas e profundamente ridículas. Não vinha nos livros, não constava dos manuais, quais as primeiras palavras que um náufrago apaixonado deve dirigir à sua amada numa praia exígua, rodeada de penhascos inescaláveis, sem víveres, ânimo ou escapatória. E tantas foram as oportunidades a bordo, sempre goradas, sempre boicotadas pelas inconveniências e mal propícios, sempre atravancadas de timidez, de desajeito e do mais acutilante sentido do ridículo. Gestos contidos, olhares dissimulados, um brilho que sempre se obscurecia no último pestanejar, as palavras morriam-lhe debaixo da língua.