O Jogo das Contas de Vidro
Hermann Hesse
Tradução: Carlos
Leite
Colecção: Ficção
Universal nº 49
Publicações Dom
Quixote, Lisboa, Fevereiro de 2003
Ergueu-se, foi à janela e olhou para o céu: por entre as nuvens que
passavam, apareciam em todo o lado nesgas de céu profundo e límpido, semeado de
estrelas. Como não regressasse imediatamente, o seu convidado ergueu-se e
também foi ter com ele à janela. O Magister continuava de pé, a olhar para o
céu e saboreando em grandes haustos ritmados o ar fresco e leve daquela noite
de Outono. Apontou para o céu com a mão.
- Olha – disse – para esta paisagem de nuvens com os seus fiapos de
azul! À primeira vista poder-se-ia julgar que as profundezas são nos sítios
onde a noite é mais escura, mas vemos logo que esta escuridão sem resistência é
feita apenas de nuvens e que as grandes funduras do espaço cósmico começam
somente na borda e nos fiordes desses maciços de bruma… Aí, mergulham no
infinito, onde brilham solenemente as estrelas, símbolos supremos para nós,
humanos, da clareza e da ordem, As profundezas do mundo e dos seus segredos não
se encontram onde estão as nuvens e as trevas: o seu fundo está na clareza e na
serenidade. Permite-me que te faça um pedido: antes de ires deitar-te, olha por
um momento para aqueles golfos e aqueles estreitos com todas as suas estrelas,
e não expulses os pensamentos ou os sonhos que possam vir-te.
Plínio sentiu uma palpitação singular no coração, não soube se de dor
ou de alegria. Fora com palavras análogas, lembrava-se, que outrora, em tempos
infinitamente longínquos, na bela serenidade dos seus inícios de aluno em
Waldzell, o tinham exortado aos seus primeiros exercícios de meditação.
- E permite-me que acrescente uma palavra – prosseguiu o Mestre das Contas
de Vidro em voz baixa. – Gostaria de te dizer ainda alguma coisa sobre a
serenidade das estrelas e do espírito, e também da que nos é própria, em
Castália. Tens aversão à serenidade, provavelmente porque a via que tiveste de
seguir era a da tristeza.