Vivemos tempos em que precisamos de mais contemplação
e o chá convida a isso.
Nina Gruntkowski
O Fernando Pessoa
dizia que vivemos da memória, o Álvaro Guerra perguntava «que outra coisa se pode fazer numa terra de poetas senão navegar
inseguramente com as palavras e com a memória da memória das palavras?»
quando nasci, ouvi contar muitas vezes, que ao cair no mundo, a minha avó tinha
ao lume, uma esplêndida galinha, a canja para a minha mãe comer após os trabalhos
de parto, o cheiro delicioso que naquela casa da Mestre António Martins devia
acariciar as paredes, ainda mais porque a minha avó acrescentava sempre à canja
um robusto ramo de hortelã e, mais tarde, dizia-me para nunca me esquecer da
hortelã na canja. O meu pai, esse acrescentava um bom golo de vinho tinto e a
isso nunca me consegui habituar.
Disso de nascer em
casa, contei aos netos mais velhos e eles espantaram-se, «como é que se nasce
em casa?», donde talvez o mesmo espanto no dia em que passaram a saber que o
leite vinha das vacas e não dos pacotes TetraPak.
Tempo de
confinamento.
Dois seres arrastam-se pela casa, trocam umas palavras, quase sempre as mesmas, não há os gritos nem as gargalhadas dos netos, ouve-se música, olham-se os livros, mais ou menos de três em três dias, o cheiro do bolo de laranja, outras vezes limão, a Aida diz que vai colocar aqui no Cais a receita simples de um bolo delicioso, que acompanha o chá depois dos filmes da sessão da meia-noite e lá em cima, a fotografia do pôr-do-sol de quinta-feira que conseguiu furar as nuvens, que há uns quinze dias navegam pelo céu de Lisboa.