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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

OLHAR AS CAPAS


Alcateia

Carlos de Oliveira
Capa: Vitor Palla
Colecção Novos Prosadores nº 7
Coimbra Editora, Coimbra, Outubro de 1944

A sua voz baixa mal quebrou o silêncio, aquêle silêncio que nascia da terra, dos covais, da coruja perdida, que vestia a altura imóvel dos ciprestes e a sua sombra longa enregelando o chão dos mortos. A mesma ideo avassalava a cabeça de Venâncio. Na perdição em que estava a tombar a sua vida [Venâncio], via-se agora como nunca, para lá do vinho que o turvava, desgraçado e só. Capula ajudara-o a mergulhar mais no abismo, tinha que se vingar de Capula. Mesmo morto, sentia-o ainda a pesar no seu destino. Não podia perdoar. E a ideia súbita que tivera continuava a avolumar-se mais e mais. Não podia, que nunca lhe haviam perdoado de si. Querendo vingar-se de Capula, Venâncio nem pensava que se queria vingar afinal da vida, de tudo, da gente que lhe dera apenas fome e desprezo. Que não era Capula que pesava no seu destino: eram èsses, um formigueiro de homens entre escombros dum mundo velho, apunhalando-se pra subsistir, cada um esmagando, antes que os outros o esmagassem. O doutor Carmo, Cosme Sapo, tantos! Êsses, que verdadeiramente talhavam a sua sina.

sábado, 28 de outubro de 2017

OLHAR AS CAPAS


Trabalho Poético
2º Volume

Carlos de Oliveira
Capa: Sebastião Rodrigues
Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa s/d

O Acender das luzes

Quem ordena estes sonhos
coordena, conduz
os tractores cuidadosos
do ocaso; êmbolos
com frio; quando lavram
o seu frágil fio de fogo
nas árvores, na memória.

E mais lentas ainda
as turbinas: turbilhão
que perturba vagarosamente
a ordem interior das coisas
que se deixam sonhar. Com
a polpa dos dedos
colhe-se a demora
para ver melhor. Nenhuma
colagem subliminar;
nem linhas de lume,
chispas, flechas.

Adormece talvez
quem ordena; se as lâmpadas
vagueiam e explodem
entre ramagens excessivas;
estes sonhos.

sábado, 22 de julho de 2017

OLHAR AS CAPAS


Relâmpago

Nº 11
Número dedicado a Carlos de Oliveira
Colaborações:
José Ricardo Nunes, Manuel Gusmão, Pedro Eiras, Rosa Maria Martelo, Armando Silva carvalho, Augusto Abelaira, Eduarda Dionísio, Eduardo Prado Coelho, Fernando Lopes, Fernando Pinto do Amaral, Gastão Cruz, José Manuel Mendes, Margarida Gil, Nuno Júdice, Urbano Tavares Rodrigues
Capa: Nuno Marques Mendes
Assírio Alvim, Lisboa, Outubro de 2002

De súbito, o Carlos de Oliveira pediu-me:
- Você por acaso tem aí um lápis?
Aquele “por acaso” impressionou-me, era indicativo de que, para ele, só por acidente um escritor usaria lápis (então eu ainda não publicara nenhum livro). E fui perguntando:
- Você esqueceu-se?
Para meu espanto, revelou-me que nunca, por nunca ser, trazia um lápis (ou caneta) na algibeira. O seu lápis era a memória, construía as poesias “na cabeça”. Alinhava e desalinhava as palavras na memória durante o dia, durante as horas do dia, e quando chegava a casa, era somente escrevê-las. Somente? Escrevê-las, reescrevê-las, quem conhece o Carlos sabe como é.
Então, com o lápis, para depois a Ângela as passar à máquina. Quantas vezes?

(Do texto de Augusto Abelaira)

sábado, 10 de junho de 2017

OLHAR AS CAPAS


Micropaisagem

Carlos de Oliveira
Capa: Fernando Felgueiras
Colecção de Poesia nº 1
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1968

assim
se cumpre
o eclipse
gradual
sobre o centímetro
quadrado que
os líquenes
cobrem
na memória,
assim
a luz e a neve
se ocultam
pouco a pouco, assim
se esquece

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

OLHAR AS CAPAS


O Aprendiz de Feiticeiro

Carlos de Oliveira
Publicações Dom Quixote
Capa: Lima de Freitas
Fotografias: Augusto Cabrita
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 1971

Aceito a ordem
das coisas, a geometria
imposta do quarto?
Os objectos no
seu lugar de sempre,
a distância exacta
da cadeira à mesa,
do meiple à janela?
O sono do tapete?
O universo diário
do quarto alugado,
as molduras que
cercam, resguardam
naturezas mortas,
paisagens imóveis?
Aceito a minha vida?
Ou mexo no candeeiro,
desvio-o alguns centímetros
na mesa, altero
as relações das coisas,
afinal tão frágeis
que o simples desvio
dum objecto pode
romper o equilíbrio?
Pego no telefone
e grito ao primeiro
desconhecido: ouves-me?
Ou deixo tudo
tal como está,
medido, quieto
no rigor do quarto,
e eu hesitante
entre o soalho e o tecto?
Desloco o cinzeiro
sabendo que posso
matar mandarins,
provocar cataclismos,
fracturas, amores,
eclipses, sonhos,
com a ponta dum dedo?
Ou apago a lâmpada
eléctrica e entro
no mesmo torpor
que as flores do tapete,
a fruta dos quadros,
o frio, o bolor,
no chão, nas paredes,
o poema na mesa,
a mesa no espaço
do quarto comprado
mês a mês? Confundo
o aluguer e o tempo,
deixo-me ser
em cada milímetro,
em cada segundo,
do quarto, da vida,
o outro objecto
chamado inquilino?
Ou desencadeio
a insurreição
mudando de sítio
o meiple, a cadeira,
Mudando-me a mim?

sábado, 30 de janeiro de 2016

OLHAR AS CAPAS


Poesias

Carlos de Oliveira
Colecção Poetas de Hoje nº 3
Portugália Editora, Lisboa, Abril de 1962

Vilancete Castelhano de Gil Vicente Passado ao Portguês

Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.

domingo, 6 de dezembro de 2015

OLHAR AS CAPAS


Trabalho Poético
1º Volume

Carlos de Oliveira
Capa: Sebastião Rodrigues
Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa s/d

Insónia

Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabitual.
Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.
Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.
Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?

quarta-feira, 27 de maio de 2015

OLHAR AS CAPAS


Pequenos Burgueses

Carlos de Oliveira
Capa: Lima de Freitas
Fotografias: Augusto cabrita
Publicações Dom quixote, Lisboa, Abril de 1970

Nos começos do estio, uma dessas veredas da gândara é um enovelado fiar e desfiar de pegadas. Não faltam sinais de pés descalços, tamancos, cascos, ferraduras, na poeira grossa e ainda húmida das últimas chuvas da primavera. O calor, contudo, aperta dia a dia, o chão começa a esboroar-se e há-de criar o pó amarelado e solto de agosto. Então, adeus pegadas. Não é preciso vento, basta o sopro dum pássaro para as levar. Por agora, a humidade molda-as e conserva-as Nada que se compare a um atalho quase barrento de abril ou maio, longe disso, mas também não se pode existir tanto em julho, que demais a mais principiou bastante quente.

sábado, 18 de abril de 2015

OLHAR AS CAPAS


Finisterra

Carlos de Oliveira
Capa: Sebastião Rodrigues
Livraria S´da Costa Lisboa, 1978

Quer dizer: não pões de lado a esperança…
O modelo copia o real, sem deturpar. E ela tem esperança; pelo menos, em parte.
Mas tu duvidas.
Não confundo esperança e ilusão.
Estéreis, uma e outra. Como distingui-las?
Pela intensidade.
Lérias. Vocês os dois representam (no plano que sabemos) a maquete estéril, para usar (repetir) a palavra exacta. Esta artimanha não altera nada.
Altera. Transfere o problema (do particular em geral), integra-o na natureza das coisasa. Se não me engano, o teu adjectivo identifica todos os termos: ela, eu, a maquete e o resto. Afinal, passando através da aparência, concordas comigo.
Ninguém diria…

sexta-feira, 17 de abril de 2015

OLHAR AS CAPAS


Entre Duas Memórias

Carlos de Oliveira
Capa: Fernando Felgueiras
Cadernos de Poesia nº 21
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Novembro de 1971

Noite de Verão

I
De súbito, a lua japonesa
desenha na janela
as três colinas dum hai-kai;
e vê-se então
que a sua luz, o círculo
cortado ao meio
no horizonte de cimento,
basta para tornar o ar oxidado
quase cor de rosa;
assim se aprende,
ao anoitecer, como o verão
escreve cidades mais legíveis;
embora breves; sobre
alicerces que flutuam
em torno do leitor nocturno,
e talvez a imagem
do meio círculo que falta
à lua, no horizonte.

II
Tágides trazendo,
do alto mar à água doce,
a escama, o fósforo, da espuma;
e o sal saturado de vento
a explodir no rio,
nas suas rugas;
com a luz eléctrica baixando
às páginas fac-similadas
do pelicano para a esquerda:
círculo completo
que as centrais, as redes,
mantêm tenso e branco
como a lua; já reconstituída;
a desprender-se do horizonte;
tágides, por fim sobre cavalos
claros; nuas; inventando
um som diferente
aos decassílabos.

III
O electrocardiograma lido
como um horóscopo;
o sândalo; as colunas de ouro;
sem esquecer o lírio mosto
a abrir-se, a exalação
do cedro; ou antes:
o amor relido noutros corpos;
no gráfico tão simples,
onde a vertigem surge
com a lentidão quadriculada
dos erros, dos desvios: mais nitidamente
que um bólido fotografado
em Indianápolis; enfim,
no cântico dos cânticos,
há um corpo a corromper-se;
estático; só de se expor ao ar,
a agulha mede-lhe o declínio
a cada pulsação.
(excerto)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

OLHAR AS CAPAS



Uma Abelha na Chuva

Carlos de Oliveira
Capa: Victor Palla
Coimbra Editora, 1953

A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo. Os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a amachucarem-lhe o voo; sacolejões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra. A chuva espezinhou-a, arrastou-se no saibro, debateu-se ainda. Mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas.

sábado, 28 de abril de 2012

OLHAR AS CAPAS



Casa na Duna

Carlos de Oliveira
Prefácio: Mário Dionísio
Capa: João da Câmara Leme
Portugália Editora, Lisboa, Maio de 1964

Hilário encosta-se ao coreto. Quer saber quanto pesa a coragem. Uma situação nova para ele, que fugiu sempre a tudo, à vida aos próprios sonhos. Lá Custar, custa. Um, suor miúdo corre-lhe na espinha e gela-o. Treme a cada olhar que lhe deitam. Cerca-o a festa, o mundo rude dos bêbados, das fêmeas, do cio, caldeado num pobre temor religiosos. A ternura não existe de graça, é preciso consegui-la à força, magoar, bater. Mas valerá a pena? A primeira gota de abandono. Lentamente, o veneno encharca-o e o simples facto de viver transforma-se em repugnância física. Está nu diante de si mesmo. Escusa de fingir. E antes que o suor o petrifique ou o medo lhe dê a volta ao estômago e o faça vomitar, abala para casa.
As luzes do largo ocultas pelas árvores, o céu já sem estrelas, a madrugada ainda distante, rodeiam-no de treva. Apressa o passo, transpõe o portão. E nunca mais saberá como a água turva de que é efeito se perdeu no mar. Uma dor fulgurante de tém-no por segundos; e oscila, ajoelha, sem consciência de nada.
De manhã, os trabalhadores da quinta encontram-no ainda com a enxada que o matou enterrada de alto a baixo na cabeça.


Nota do editor:
Durante o mês de Abril, irei apresentando uma série de livros que me acompanharam durante os tempos da ditadura.
Livros que, por isto ou por aquilo, ajudaram a formar uma consciência cultural e política. A sua aparição não obedece a algum critério, e, naturalmente, muitos livros e autores irão ficar de fora. 

quinta-feira, 14 de abril de 2011

OLHAR AS CAPAS


Sobre o Lado Esquerdo

Carlos de Oliveira
Iniciativas Editoriais, Lisboa, Janeiro de 1968

CINEMA

I

O écran petrificado,
muros, ossos,
o movimento áspero da câmara
mergulhando nos poços
das leis universais,
o rigoroso cálculo da luz
em que a matéria já cansada,
autómatos, metais,
se envolve pouco a pouco
no vagaroso amor
que é o trabalho quase imperceptível
das manchas de bolor,
a ferrugem, o espaço rarefeito,
e um relógio apressado no meu peito.

II

A lentidão da imagem
faz lembrar
o automóvel na garagem,
o suicídio com o gás do escape,
quer dizer,
o coração vertiginoso
e a lentidão do mundo
a escurecer
nas bobines veladas
dos suaves motores crepusculares
ou, por outras palavras,
flashes, combustões,
entregues ao acaso das artérias,
melhor, das pulsações.

III

Radioscopia incerta
como nós,
mas provável, exacta
na dosagem da sombra com o cálcio
da sua arquitectura
milimetricamente interior,
transforma-se o espectáculo
por fim
no próprio espectador
e habita agora
a fluidez do sangue:
cada imagem de fora,
presa ao fotograma que já foi,
de glóbulo em glóbulo se destrói.