Alcateia
Carlos de Oliveira
Capa: Vitor Palla
Colecção Novos Prosadores
nº 7
Coimbra Editora,
Coimbra, Outubro de 1944
A sua voz baixa mal quebrou o silêncio, aquêle silêncio que nascia da
terra, dos covais, da coruja perdida, que vestia a altura imóvel dos ciprestes
e a sua sombra longa enregelando o chão dos mortos. A mesma ideo avassalava a
cabeça de Venâncio. Na perdição em que estava a tombar a sua vida [Venâncio],
via-se agora como nunca, para lá do vinho que o turvava, desgraçado e só.
Capula ajudara-o a mergulhar mais no abismo, tinha que se vingar de Capula.
Mesmo morto, sentia-o ainda a pesar no seu destino. Não podia perdoar. E a
ideia súbita que tivera continuava a avolumar-se mais e mais. Não podia, que
nunca lhe haviam perdoado de si. Querendo vingar-se de Capula, Venâncio nem
pensava que se queria vingar afinal da vida, de tudo, da gente que lhe dera
apenas fome e desprezo. Que não era Capula que pesava no seu destino: eram èsses,
um formigueiro de homens entre escombros dum mundo velho, apunhalando-se pra
subsistir, cada um esmagando, antes que os outros o esmagassem. O doutor Carmo,
Cosme Sapo, tantos! Êsses, que verdadeiramente talhavam a sua sina.