Mostrar mensagens com a etiqueta Cabral do Nascimento. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cabral do Nascimento. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

NATAL

Se alguém por mim passou,
O seu caminho foi.
Nenhuma dor me dói;
Neste canto me isolo;
Dá-me tanto consolo
Saber que apenas sou!

Reduz-se tudo a isto:
Suavíssimo perfume
De heliotrópio morto.
Traz-me tanto conforto
Saber que só existo
Aqui, junto do lume!

E o vento que, lá fora,
Deita as folhas em terra,
Não me abala sequer.
Ah, quanto bem encerra
A minha ideia, agora,
De estar num canto, e ser?


Cabral do Nascimento em Natal... Natais

terça-feira, 29 de agosto de 2023

OLHAR AS CAPAS


O Exílio e o Reino

Albert Camus

Tradução: Cabral do Nascimento

Capa: Bernardo Marques

Colecção Miniatura nº 85

Livros do Brasil, Lisboa s/d

Pequenina mas insistente, havia já uns instantes que a mosca voava no autocarro, cujas janelas estavam todavia fechadas. Ia e vinha sem ruído, num voo fatigado. Era frio o ar, e o insecto parecia sentir arrepios a cada rajada de areia que estalava nas vidraças. O veículo, na luz débil da manhã de Inverno, rolava e avançava a custo, num estardalhaço de eixos e de latas. Janine olhou para o marido. Marcel tinha o aspecto de um fauno amuado, com o seu redemoinho de cabelos grisalhos a descer-lhe sobre a testa estreita, o seu nariz achatado, a sua boca irregular.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

NATAL AFRICANO

Não há pinheiros nem há neve,

Nada do que é convencional,

Nada daquilo que se escreve

Ou que se diz... Mas é Natal.

 

Que ar abafado! A chuva banha

A terra, morna e vertical.

Plantas da flora mais estranha,

Aves da fauna tropical.

 

Nem luz, nem cores, nem lembranças

Da hora única e imortal.

Somente o riso das crianças

Que em toda a parte é sempre igual.

 

Não há pastores nem ovelhas,

Nada do que é tradicional.

As orações, porém, são velhas

E a noite é Noite de Natal.

 

Cabral do Nascimento poema tirado da antologia Natal… Natais 

sábado, 7 de dezembro de 2019

NATAL...NATAIS...


Tu, grande Ser,
Voltas pequeno ao mundo.
Não deixas nunca de nascer!
Com braços, pernas, mãos, olhos, semblante,
Voz de menino.
Humano o corpo e o coração divino.

Natal... Natais...
Tantos vieram e se foram!
Quantos ainda verei mais?

Em cada estrela sempre pomos a esperança
De que ela seja a mensageira,
E a sua chama azul encha de luz a terra inteira.
Em cada vela acesa, em cada casa, pressentimos
Como um anúncio de alvorada;
E ein cada árvore da estrada
Um ramo de oliveira;
E em cada gruta o abrigo da criança omnipotente;

E no fragor do vento falas de anjos, e no vácuo
De silêncio da noite
Estriada de súbitos clarões,
A presença de Alguém cuja forma é precária
E a sua essência, eterna.
Natal... Natais...
Tantos vieram e se foram!
Quantos ainda verei mais?

Cabral do Nascimento Natais… Natais…

Legenda: pintura de David Jaconson

domingo, 20 de janeiro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Terna é a Noite

F. Scott Fitzgerald
Tradução: Cabral do Nascimento
Capa: João da Câmara Leme
Colecção Contemporânea nº 31
Portugália Editora, Lisboa, Março de 1962

Na costa aprazível da Riviera francesa, a cerca de meio caminho entre Marselha e a fronteira italiana, fica um vasto hotel imponente, pintado de cor-de-rosa. Várias palmeiras lhe refrescam a frontaria pesada, e diante dele estende-se uma praiazinha deliciosa. Ainda há dez anos era pouco frequentado, depois da debandada da clientela inglesa, mas há pouco tempo tornou-se ponto de reunião de banhistas ilustres e elegantes, e já o rodeiam inúmeros bangalós. Quando, porém, se inicia esta história há apenas uma dúzia de vivendas antigas, e os seus telhados jazem como nenúfares apodrecidos no meio do pinhal denso que vai do Hotel Gausse ou dos Estrangeiros até Cannes, a cinco milhas de distância.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

OLHAR AS CAPAS


O Livro de Cesário Verde
Seguido de Algumas Poesias Dispersas

Cesário Verde
Edição revista por Cabral do Nascimento
Editorial Minerv, Lisboa s/d

Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos «mignonnes» e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

OLHAR AS CAPAS


Reflexos Nuns Olhos de Oiro

Carson McCullers
Prefácio Tennessee Williams
Tradução: Cabral do Nascimento
Capa: Augusto T. Dias
Relógio d’Água, Lisboa s/d

Em tempo de paz uma guarnição avançada é um lugar triste. As coisas que aí acontecem repetem-se vezes sem conta. Concorre para esta monotonia o próprio plano da fortaleza: enorme quartel de cimento armado, filas de casas para oficiais, todas semelhantes, ginásio, capela, campo de golfe e piscinas – tudo isto delineado segundo um modelo certo e rígido. Mas talvez a taciturnidade que se nota provenha mais do isolamento, do excesso de ócios e da nímia segurança, pois quando se entra na tropa é em geral para seguir os calcanhares dos que nos procedem. Ao mesmo tempo, porém, sucedem no exército eventos que não será provável renovarem-se. Existe um forte no Sul onde há poucos anos se cometeu um crime: dois oficiais, um soldado, duas mulheres, um filipino e um cavalo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

CANTIGA


Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.

Cabral do Nascimento em 366 Poemas Que Falam de Amor

Legenda: pintura de Chris Pointer