Este não é o dia seguinte
do dia que foi ontem.
João Bénard da Costa
Será um desfilar de
histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
Ontem, em Olhar as Capas, apresentámos
Liberdade, Liberdade de Flávio Rangel e Millpr Fernandes, uma peça de
teatro estreada no dia 21 de Abril de 1965, no Rio de Janeiro, numa produção do
Grupo Opinião e do Teatro Arena de São Paulo, representada por Paulo Autran,
Nara Leão, Oduvaldo Vianna Filho e Tereza Rachel.
A terminar o prefácio do livro escreve Flávio
Rangel:
«Nas páginas
finais de Les Mots, Jeam-Paul Sartre diz qu durante muito tempo tomou sua pena
por uma espada, e que agora conhece sua importância – mas paresar de tudo
escreve livros. Eu também tenho minhas dúvidas que um palco seja uma trincheira
– mas faço o que posso.
A peça é uma
selecção de licros, de frases, de
canções, de acontecimentos, que preetende ser um louvor à Liberdade, como
escreveu Cecília Meireles, «essa palavra que o sonho humano alimenta, que não
há ninguém que explique e ninguém que não entenda
Logo nas primeiras cenas da peça, Paulo
Autran declama:
«Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre
serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a sua vida à humanidade
e à paixão existentes nestes metros de tablado, esse é um homem de
teatro.Nós achamos que é preciso cantar (Acordes da Marcha de Quarta-Feira de Cinzas) Agora, mais do que
nunca é preciso cantar. Por isso,
“Operário do Canto me apresento”».
Estes são versos
de Geir Campos, tirados do poema Da Profissão do Poeta, poeta comunista brasileiro,
falecido em Maio de 1999 e utilizados em Liberdade, Liberdade.
A Biblioteca da Casa não tem nenhum livro de Geir
Campos.
Uma pesquisa na internet deu para encontrar o poema na íntegra no blogue: https://vermelho.org.br/2015/04/30/geir-campos-da-profissao-do-poeta/
Sempre gostei deste poema, trazê-lo aqui é
uma feliz passagem das Viagens Por Abril de hoje.
Sim, é importante cantar.
Aqui fica íntegra o poema Da Profissão do
Poeta de Geir Campos, um poeta notável:
Da
identificação
profissional
Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e – expresso documento –
a palavra conforme o pensamento.
Do
contrato de
trabalho
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio do meu canto.
Embora a dor ilhada ou coletiva
me doa, antes celebro as coisas belas
que movem o sol e as demais estrelas
– antigos temas que parecem novos
de tão gratos ao meu e aos outros povos.
Da
relação com vários
ofícios
Meu verso tine como prata boa
pesando na confiança dos bancários;
os empregados no comércio bem
sabem como atender aos que encomendo
e recomendo mais do que ninguém;
aos que funcionam em telefonia
com ou sem fio, rádio, a esses também
sei dizer à distância ou de mais perto
a cifra e o texto no minuto certo;
para os músicos profissionais,
sem castigar o timbre das palavras
modulo frases quase musicais;
para os operadores de cinema
meu verso é filme bom que a luz não queima;
trilho também as estradas de ferro
e chego ao coração dos ferroviários
como um trem sempre exato nos horários;
às equipagens das embarcações
de mares ou de lagos ou de rios
meu verso fala doce e grave como
doce e grave é a taboca dos navios;
nos frigoríficos derrete o gelo
da apatia, se é para derretê-lo,
meu canto a circular nas serpentinas;
à boca da escotilha ou nas esquinas
do cais, o meu recado é força viva
guindando a atenção dos homens da estiva;
desço cantando aos subsolos e às minas
onde outros operários desenterram
o minério de suas artérias finas;
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
meu canto ajuda feito um sopro a mais
aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
aos colegas que lidam nos jornais
boas noticias dou e, mais do que isso,
jeito de as repetir e divulgar
quando o patrão quisera ser omisso;
à gente miúda, pronta a ser maior,
passo lições de um magistério puro
e o que é dever escrevo a giz no muro;
para os químicos sei fórmulas novas
que os mártires elaboram nas covas…
e a todos que trabalham vai assim
meu canto sugerindo meio e fim.
Do
horário do
trabalho
Marcadas as minhas horas de ofício,
de dia em sombras pelo chão e à noite
no rútilo diagrama das estrelas,
só quem ama o trabalho sabe vê-las.
Dos
Períodos de
descanso
Seja domingo ou dia de semana,
mais do que as horas neutras do repouso
confortam-me os encargos rotineiros;
meu descanso é confiar nos companheiros.
Do
direito a
férias
Nunca me participam por escrito
ou verbalmente os ócios que mereço,
mas sempre gozo bem o merecido:
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
É quando fio o verso; depois teço.
Da
remuneração das
férias
Em férias tenho a paga de saber
lembrado o verso meu por quem o inspira;
é como se outra mão tangesse a lira
Do
salário
mínimo
Laborando entro os pontos cardinais,
de norte a sul, de leste a oeste, vou
cobrando aqui e ali quanto me basta:
o privilégio de seguir cantando.
(Imposto é cuidar onde e como e quando.)
Do
expediente
noturno
Trabalho à noite e
sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Da
segurança do
trabalho
Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
canto. Perigo à vista, canto sempre;
e é clara luz e um ar nunca viciado
e sol no inverno e fresca no verão,
meu canto, e sabe a flores se é de flores
e a frutos se é de frutos a estação.
Só não me esforço à luz artificial
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
também quando o ar parece rarefeito
a lira engasga, o verso perde o jeito.
Da
higiene do
trabalho
Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto…
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.
Da
alteração de
contrato
etc.
Meu ofício é cantando revelar
a palavra que serve aos companheiros;
mas se preciso for calar o canto
e em fainas diferentes me aplicar
unindo a outros meu braço prevenido,
mais serviço que houver será servido.
Legenda: imagens de Paulo Autran, Tereza Rachel e Nara Leão na representação de «Liberdade. Liberdade» em Abril de 1965.