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terça-feira, 3 de janeiro de 2023

POSTAIS SEM SELO


 Há memórias que só interessam pelo que inventamos delas.

Jorge Reis-Sá em Campo de Bargos

O OUTRO LADO DAS CAPAS

Só em caso de extrema necessidade recorro ao Pingo Doce das Olaias.

Antigo que sou, prefiro o comércio tradicional e pelo bairro ainda vou tendo uma drogaria, um café dos antigos, com uma esplanada extraordinária onde, no tempo da bica e do bagacinho, se discute tudo, desde plítica ao futebol e muito má língua,  e o Chiva simpático comerciante napalês, para frutas, legumes e o que quer que esteja a faltar para completar o almoço.

O Pingo Doce, até Junho do passado ano, viu  os lucros cresceram para 261 milhões de euros e pagam os impostos em paraísos fiscais. O país que se lixe! Os lucros da Galp, mais ou menos no mesmo período saltaram para 608 milhões de euros e à volta disto o governo de António Costa continua a ter imensas dificuldades em construir uma lei que taxe os lucros excessivos das grandes empresas.

Mas no tal Pingo Doce das Olaiais nem todas as caixas estão abertas, procura-se um assistente para se saber onde posso encontrar algo que os olhos não encontram no imediato e não se vê  nenhum, para além de  pagarem miseravelmente aos trabalhadores e imporem horários de autêntica escravatura.

Num tempo em que estava no Pingo Doce, frente à peixaria, a aguardar vez para que me cortassem  bacalhau, ao lado uma estantezeca de livros, fui olhando os títulos e chamou-me a atenção CampoDe Bargos, o futebol ou a recuperaçãoda infância.

O autor, nascido junto ao campo de futebol, conta a história dos seus domingos no Campo dos Bargos. Memórias futeboleiras da infância, as minhas começaram no Campo Grande, a velha estância de madeira onde ia com o meu avô ver os jogos do Benfica, tudo muito longe do que o futebol, infelizmente, hoje é.

Um livro muito curioso, interessante mesmo. Não deixem de o ler.

Deixo-vos estas passagens:

«O professor Reis-Sá morreu nos meus 17 anos. Por isso, as melhores memórias que tenho do meu pai são as que ficaram por acontecer. Ainda há muitas antes, serei justo. Mas todas elas perspectivavam mais. E o tempo não deixou que acontecessem. A ficção é a melhor memória que existe.»

 «Tenho muito a agradecer ao futebol. Ter sabido de mim no banco de suplentes do campo dos Bargos ou, como tantos mais, ter vivido momentos de enorme felicidade e ter percebido que a tristeza não nos mata – entristece-nos.»

 «Enquanto escrevia este livro, o meu avô perdeu-se na velhice. Enquanto escrevo estas linhas, o hospital chamou-o para estabilizar uma mente levada pelos 84 anos. De Gaulle definiu bem essa terceira idade: «a velhice é um naufrágio». O meu avô naufragou e nós não o podemos salvar.»

 «Há memórias que só interessam pelo que inventamos delas.»

quarta-feira, 19 de março de 2014

A DEFINIÇÃO DO AMOR


Escrevi tantas vezes a palavra pai que lhe gastei todo
o significado. Quando agora escrevo pai, já não sinto
as barbas a roçarem a minha mão macia, as rugas que
os anos transportaram para a sua face, os óculos, os
dedos, a voz com que me chamava filho como se eu

me escrevesse pai. Gastei tudo o que uma palavra pode
dizer porque esqueci a sua memória. Gastei-a em maus
poemas e em maus romances, poemas e romances com
a foz ao fundo e a mãe segurando-me o corpo pequeno
sobre o muro que ladeava a praia. Gastei-a

definindo-lhe as letras, alargando-lhe o significado.
Gastei-a tirando-lhe a dízima infinita e não periódica
e colocando-lhe, depois da letra que se salvou, o mar
fechado no seu interior. Gastei-a a tentar definir o amor.

Jorge Reis-Sá na Antologia, Em Nome do Pai, organizada por José da Cruz Santos, Modo de Ler Editores, Porto Março de 2008.

Legenda: S. José e o Menino, pintura de Josefa d’Óbidos, tirada da antologia Em Nome do Pai.