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quinta-feira, 27 de outubro de 2022

SEM VERGONHA DE O ADMITIR


 Além disso – não tenho vergonha de o admitir – não gostava de ler. Ao contrário da minha irmã, que gostava, eu era um rapaz preguiçosos que não sentia qualquer prazer em agarrar-se a um livro. E porque haveria de sentir? A rádio e os filmes eram muito mais entusiasmantes. Eram menos exigentes e mais vivos. Na escola, nunca souberam a apresentar-nos a leitura de modo a que aprendêssemos a gostar dela. Os livros e histórias escolhidos eram aborrecidos, imbecis, antisséticos. Ninguém naquelas histórias cuidadosamente escolhidas para jovens rapazes e raparigas se comparava ao Homem-Elástico ou ao Capitão Marved. Seria de esperar que um rapaz sexualmente ativo (mais uma vez desafiando Freud, nunca tive um período de latência) que gosta de filmes de gangsters com Bogart e Carey e de louras baratas e sensuais se preocupasse minimamente com «O Presente dos Magos»? Portanto, ela vende o cabelo para lhe comprar um relógio e ele vende o relágio para lhe comprar pentes. A moral que daí retirei foi foi que é sempre mais seguro dar dinheiro.

Woody Allen em A Propósito de Nada

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

PAUSA EM RELAÇÃO AO IMAGINAR DA MORTE

«Tive sempre um fraquinho pelos jornalistas. Juntamente com cowboys, músicos de jazz, agentes do FBI, detectives privados, jogadores e mágicos, alimentei a fantasia de ser um homem dos jornais, um repórter duro, na senda do crime, cujas investigações implacáveis desvendavam a história da corrupção da câmara municipal ou salvavam um homem inocente do cadafalso. Era isso ou jornalista desportivo, onde poderia documentar a poesia do atletismo, tal como o meu ídolo, Jimmy Cannon.

Infelizmente, o destino tinha outros planos para mim, mas uma das melhores memórias que tenho foi a noite em que fiz as rondas da Broadway com o jornalista Leonard Lyons. Lyons era um colunista de Nova Iorque que não dependia das esmolas dos assessores de imprensa, antes cobrindo a vida nocturna da cidade pessoalmente e acumulando centenas de histórias excelentes sobre as celebridades da cidade. Ele e a mulher convidaram-me para jantar, certa noite, no seu apartamento em Beresford, quando eu era um comediante em ascensão. Por volta das dez da noite começava o seu dia de trabalho. Despediu-se da mulher com um beijo e descemos às ruas escuras de Manhattan. Levou-me ao Sardi’s, ao Oak Room do Plaza, ao Toots Shor’s, depois ao Watford e ao Lindy’s, tudo isto enquanto conversava e ouvia autores e atores, atrizes e produtores. Foi uma noite com a qual apenas podia ter sonhado em miúdo, na Avenue J, em Brooklyn. Por vezes, estou deitado na cama, à noite, incapaz de dormir e tenho uma rara pausa em relação ao imaginar da morte, esmagado numa prensa de carros ou engolido por uma píton, penso nostalgicamente nessa noite, na cidade, com Leonar Lyons.»

Woody Allem em A Propósito de Nada.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

NÃO GOSTO DE APARELHÓMETROS


Ficou dito que haveria um retorno à autobiografia deWoody Allen.

E aqui estamos na página 97:

«Harlene e eu vivíamos com os nossos pais e eu telefonava-lhe todas as noites. Fazíamos o que fazem os casais de namorados. Já agora, por essa altura, tinha carro. Adquirira um descapotável Plymouth de 1951 por seiscentos dólares. Tinha alimentado fantasias grandiosas de como um carro iria mudar a minha vida. Libertar-me-ia; poderia conduzir sobre a ponte para Manhattan sempre que quisesse, escapar para Long Beach para visitar velhos poisos nostálgicos, ir até Connecticut numa manhã de primavera para comungar com a natureza. Não faço ideia em que raio estaria eu a pensar; odiava a natureza e, mais do que a natureza, odiava ser dono de um carro. Como todos os objectos mecânicos, tornámo-nos imediatamente arqui-inimigos. Não gosto de aparelhómetros. Não tenho relógios, não ando de chapéu de chuva, não sou dono de câmaras ou gravadores e até hoje preciso da minha mulher para me ajustar o aparelho de televisão. Não tenho computador, nunca me aproximei de um processador de texto, nunca mudei um fusível, enviei um e-mail a alguém ou lavei um prato.

Sou um desses velhos baralhados que neceessitam que lhe inutilizem todos os botões da televisão com fita-cola para que possa usar apenas o botão de ligar e desligar, e os do volume.»

Woody Allen em A Propósito de Nada

segunda-feira, 16 de maio de 2022

AS VIDAS TRISTES DE ALMAS TORTURADAS


Face ao quotidiano massacrante, tenho tentado aligeirar a situação relendo gente de que gosto muito. Já vos falei do Manuel António Pina, do Eduardo Guerra Cerneiro, do José Saramago, tenho`também andado às voltas com a Autobiografia do Woody Allen, mas gosto mais do cineasta do que do biógrafo de si próprio.

Hoje é domingo, os dias de quase autêntico Verão que têm feito, foram substituídos por fortes ventanias e chuva.

Parei na página 338 de A Propósito de Nada, com Allen a escrever sobre um dos seus filmes-assim-assim Setembro e em que volta a encaixotar a Farrow:

 

«A versatilidade de Mia era incrível. Ela era capaz de desempenhar a alheada miúda dos cigarros em Os Dias da Rádio, passar para a afetada colunista de sociedade e, depois, apresentar um desempenho extraordinário no filme seguinte, Setembro, um drama que põe a questão: poderá um grupo de almas torturadas fazer as pazes com as suas vidas tristes, quando dirigido por um tipo que ainda devia estar a escrever piadas fáceis para colunistas da Broadway?

Aqui, como já disse, queria fazer algo tchekhoviano; um set, pessoas numa casa de campo. Emoções em conflito e baralhadas. Estruturei-o de forma a poder ser filmado no interior de uma casa no set construído por Santo, com atores espantosos, todos eles presos a emoções ansiosas. Deveria evocar o estado de espírito de fim de verão, melancólico, e eu seria louvado como um poeta trágico e talvez pudessem batizar uma sandes do Carnegie Deli com o meu nome. Para m dos papéis masculinos contratei Chris Walken, com quem já tinha trabalhado antes em Annie Hall. Ele desempenhava o papel do irmão louco. Chris é um dos nossos melhores actores, e quando as coisas não estavam a funcionar procurei o motivo no lugar errado. Estudei o seu desempenho para tentar perceber o seu problema, mas deveria ter examinado a escrita. Deve-se olhar sempre primeiro para a escrita quando algo não está a funcionar. À medida que os dias iam passando, Chris foi ficando cada vez mais desconfortável no papel. Por fim, da forma mais simpática e digna de um cavalheiro, desistiu, garantindo-me, contudo, que eu era um realizador brilhante, que tinha um grande futuro, uma vez ultrapassado o problema da idolatria delirante. Separámo-nos em bons termos, amigáveis, mas sempre lamentei ter desiludido este grande ator. Substituí Chris por Sam Shepard, de quem gostava muito. Sam nunca se sentiu confortável a dizer o meu texto e, sendo um bom escritor, preferia alterar constantemente os meus diálogos. Nunca me importei e, até este dia, não me importo quando um ator prefere colocar as coisas nas suas próprias palavras, desde que a ideia da cena passe.

De qualquer maneira, dei-me bem com Sam, conversávamos muito sobre jazz, dado que o pai dele tocava bateria. Sam tinha uma fraca opinião de mim enquanto realizador e afirmou publicamente que Robert Altman e eu nada sabíamos sobre direção de atores. Cruzei-me com ele e falámos sobre isso, sempre em termos amigáveis, sempre francos, sempre em bons termos. Quando o pai de Sam faleceu, deixou várias caixas de discos de jazz e Sam enviou-mos todos de presente. Era um tipo espantoso e mais um ator que desiludi. Perguntei-me se seria o drama o meu métier, talvez a minha praia fossem as personagens físicas, que envergassem bulbosos narizes de borracha e brandissem bexigas de porco».

Segundo o próprio Woody Allen, Setembro foi um flop.

Houve mesmo necessidade de a história ser reescrita e muito do material voltar a ser filmado, porque alguns actores foram saindo, inclusive o Sam Shepard que  não se entendeu mesmo com os diálogos de Allen deixou aquela deliciosa observação de que Altman e Allen não sabiam nada sobre direcção de actores.

quarta-feira, 4 de maio de 2022

SIBELIUS COMO ERRO FATAL


Woody Allen costumava dizer que o melhor de cada filme é o momento em que me fecho numa sala a seleccionar clássicos do jazz para o “scores” e ainda existem várias american great songs que gostaria de usar».

A sua enorme colecção de discos permite-lhe colocar nos seus filmes a música de que realmente gosta.

Quem vê os filmes de Woody Allen sabe o quanto são verdadeiras estas palavras.

A páginas 356 da sua Autobiografia Allen volta aos dias exasperantes com Mia:

«Lembro-me de uma ocasião semelhante quando, no início da nossa relação, Mia me arrastou até à sua casa em Martha’s Vineyard num maravilhosos dia de outono. Só e isolado, olhei pela janela para o lago Tashmoo, enquanto ela cometia o erro fatal de colocar o segundo movimento do Concerto para Violino de Sibelius. Enquanto eu escutava, na calma beleza de outono das vinhas, os acordes insuportáveis de Sibelius transportaram-me para a Finlândia, Suécia, Noruega, os fiordes, os vastos bancos de gelo e os longos e escuros invernos, e senti um intenso desejo por uma sandes de fígado de galinha, que só se pode obter nas redondezas de Fifty-Fourth Street.»

Os desconfortos com Mia Farrow desenrolam-se em muitos e variados campos, e já vêm desde o início da relação ao ponto de chegarmos à infelicidade de Mia, de autêntico  bradar aos céus, colocar  Woody Allen às voltas exasperantes com Sibelius. 

Pode-se não gostar mesmo de Mia Farrow, mas a minha esmagadora ignorância musical  não encontra razão mínima para Allen detestar Sibelius, mas só ele o saberá. 

Outra ignorância minha – são tantas e tantas as ignorâncias - é não conseguir sentir  o deslumbre de uma sandes de fígado de galinha.

quinta-feira, 21 de abril de 2022

SE NÃO TIVERES SAÚDE NÃO TENS NADA


Já vos disse que a autobiografia de Woody Allen me tem ajudado nestes dias conturbados, o mesmo acontece com a biografia de Manuel António Pina e os Sublinhados Saramaguianos.

A autobiografia de Woody Allen teve um único fim, o de arregimentar uns tostões para cobrir despesas com advogados,  mas, acima de tudo, publicamente, contar a sua versão das loucuras perversas da «bela» e velhaca Mia Farrow, também do oportunismo irresponsável da Amazon Studios que  cancelou contratos com o cineasta por causa das acusações de abusos sexual lançadas sobre Allen: «o retomar das alegações contra o sr. Allen, as suas declarações controversas, e a recusa de um crescente número de talentos de topo em trabalhar ou estar associados com eles seja no que for», disse um porta-voz da Amazon Studios que, quando assinou os contratos com Allen já sabiam, das alegações infundadas sobre Allen que são públicas para cima de 25 anos.

Hoje, coloco-vos Woody Allen a falar dos seus pais:

«Em defesa da minha mãe, devo dizer que Nettie Cherry era uma mulher maravilhosa; inteligente, trabalhadora, abnegada. Era fiel e carinhosa e decente, mas não era, digamos, fisicamente cativante. Quando disse, anos mais tarde, que a minha mãe parecia Groucho Marx, as pessoas pensavam que eu estava a brincar. Nos seus últimos anos padeceu de demência e morreu aos noventa e seis. Por delirante que estivesse, mesmo no final nunca percebeu a sua capacidade de kvetch (pessoa que reclama de tudo, nota do editor), algo que transformara numa forma de arte. O meu pai, dinâmico até aos seus noventa e muitos, nunca permitiu que preocupação ou cuidado lhe perturbassem o sono. Nem pensamento algum as horas de vigília. A sua filosofia era a de que «Se não tiveres saúde não tens nada», uma sabedoria mais profunda do que toda a perplexidade do pensamento ocidental, tão sucinta quanto um biscoito da sorte. E manteve a sua saúde. «Nada me incomoda», gabava-se. «És demasiado estúpido para que alguma coisa te incomode», tentava explicar-lhe a minha mãe, pacientemente. A minha mãe tinha cinco irmãs, cada uma mais rústica que a outra, sendo a minha mãe, sem dúvida, a mais rústica de todas. Coloquemos as coisas desta maneira: a teoria edipian de Freud de que todos os homens querem, inconscientemente, matar os pais para casarem com as mães choca contra uma parede de tijolo no que diz respeito à minha mãe.»

(Página 11)

sexta-feira, 8 de abril de 2022

A IDEIA DE PROGRESSO DE MIA FARROW

Estou cansado, ou como diria o Mário-Henrique Leiria: «realmente estou muito chateado».

Voltei a pegar na biografia do Woody Allen.

Ao acaso.

Páginas em que ele anda às voltas com Mia Farrow, o amor de uma vida, também o seu pesadelo, o seu inferno.

Nunca entendi – estas coisas também não são para entender, porque não há explicações possíveis, – aquela pancada pela Mia Farrow, muito mais quando ele adorou andar com a Diane Keaton, teve «um breve romance» com a irmã Robin, «teve um curto caso» com a outra irmã, Dory, para concluir que «as três irmãs Keaton eram mulheres belas e maravilhosas, bons genes naquela família, protoplasma digno de um prémio».

A página onde desaguei é a 253:

 «Num restaurante chinês, sugeriu subitamente que nos casássemos. A sugestão apanhou-me a meio de um crepe e pensei que ela talvez não tivesse posto as lentes de contacto e me tivesse confundido com outra pessoa. Quando me apercebi de que estava a falar a sério, disse-lhe que, além de estarmos a sair há pouco tempo, via o casamento como um ritual desnecessário. Já tinha sido casado duas vezes, tal como ela, e tinha aprendido com o passar dos anos que, se a relação funciona, funciona, mas que um pedaço de papel vinculativo não ajuda nada a reforçar o amor nem a rectificar uma situação que tenha azedado. Tinha todo o gosto em estar numa relação com ela, mas não sendo pessoal, simplesmente não me entusiasmava a ideia de a registar. Depois acho que caí no discurso das damas de Nixon e cantei «Old Man River» de o Barco das Ilusões. Como é óbvio, ficou visivelmente irritada por ouvir a minha recusa. Retirou a oferta em tom petulante e fez alguns comentários sobre eu estragar as coisas, pelo que imaginei que ela queria dizer que nos tínhamos conhecido, namorado, gostado um do outro, e que de repente eu não estava disponível para avançar. A sua ideia de progresso era ir a correr casar. Mas a rapidez do seu pedido, tal como fora feito, e a sua reacção irritada quando eu não concordei imediatamente deviam ter-me dado uma pista de que estava a lidar com uma pessoa mais complicada do que uma supermãe frágil e bela.»

segunda-feira, 28 de março de 2022

O VERVADEIRO ARCO-IRÍS DA MINHA INFÂNCIA


Não é lamúria, mas ainda não consegui endireirar o esqueleto.

As ideias andam aos solavancos.

As palavras – as palavras? - recusam-se a dizer seja o que for, não saem e o que sai não tem qualquer jeito.

Neste baralhar confuso de cartas mais que viciadas, as leituras também não mostram vislumbres de endireitar o tal esqueleto e a cabeça que o encima.

Decidi neste dia de chuva – em que estação de caminho de ferro ficou a Primavera, esperará um recoveiro? – voltar a pegar na Autobiografia de  Woody Allen que foi lida assim um tanto a correr não sei para onde.

O Luís Miguel Mira já fez por aqui uns apanhados do livreco, chamando-lhes «Tiradas».

Irei fazer outros apanhados. Repetirei cenas? Admito que sim, mas…

Será um lugar, talvez de silêncio, perante um realizador que me habituei a gostar desde o primeiro filme, e ficava sempre à espera de quando chegava o tempo de novo filme, como em cada Outono esperava pelo último livro do António Lobo Antunes, até que o desencanto se instalou naquele lugar de silêncio, talvez de solidão…

Agora nem Allen – virou propagandista turístico – e Antunes virou um insuportável chato.

 

«Mas deixem-me voltar aos filmes, a paixão de Rita. Agora lembrem-se, eu tenho cinco anos, e ela tem dez. Para lá de cobrir as paredes com fotografias coloridas de todas as estrelas de Hollywood, ela ia frequentemente ao cinema, o que significava todos os sábados à tarde para a sessão dupla, normalmente no Midwood, e embora fosse com amigos, levava-me sempre. Eu via todos os filmes que Hollywood lançava. Todas as grandes produções, todos os filmes da série B. Eu sabia quem entrava nos filmes, reconhecia-os os intervenientes mais desconhecidos, os atores secundários, reconhecia as músicas, pois conhecia todas as músicas mais populares, dado que Rita e eu nos sentávamos e ouvíamos rádio juntos incessantemente. O Make Believe Ballroom, Your Hit Parade. Nestes dias, o rádio tocava desde o minuto em que acordávanos até àquele em que íamos dormir. Música, notícias, e mais música.»

 

Woody Allen em A Propósito de Nada

Legenda: Luís Miguel Mira «vendendo» bilhetes a Woody Allen no «Chaplin's World»

sábado, 17 de outubro de 2020

TIRADAS


 Está na altura de acabarmos com estas brincadeiras do W.A., que acabaram por ir bem mais longe do que eu inicialmente imaginara.

A partir de determinada altura o livro centra-se, exclusivamente, na ligação com Mia Farrow e nas nossas bem conhecidas alegações de pedofilia em relação à sua filha adotiva Dylan e a Soon- Yi, filha adotiva mais velha de Mia. Estranha pedofilia esta última, com uma rapariga de 23 anos, mas enfim, vindo de Mia tudo parece possível... 

Woody defende-se como pode e uma boa parte desta sua autobiografia é destinada a procurar desmontar essas acusações.

E se no início o pensei, depois de ler o livro tenho a certeza absoluta de que Woody Allen, um homem sempre tão cioso da sua privacidade, só avançou para esta obra como meio de defesa pessoal, numa altura em que, graças a fenómenos como o "MeToo", a sua história passada voltou à baila. E de que maneira: A Amazon rescindiu-lhe um contrato para realização de um filme; atores e atrizes que anteriormente filmaram com ele retrataram-se publicamente e ofereceram esses "cachets" a obras de caridade; novos atores recusaram-se a trabalhar com ele em novos filmes; à data da publicação do livro, o seu último e bonito filme, "Um Dia de Chuva em Nova Iorque", ainda não tinha sido estreado nos Estados Unidos; a publicação de "A Propósito de Nada" foi recusada por diversas editoras americanas importantes; a imprensa americana cravou-lhe os dentes o e não mais o deixou em paz; e por aí fora...

O livro torna-se, assim, um ajuste de contas com Mia Farrow, alguns dos seus filhos, o poder judicial, alguma Imprensa e outros responsáveis editoriais e da Indústria Cinematográfica.

Tenho a minha opinião pessoal acerca de todo este longuíssimo, processo, mas para fofoquices não contem comigo...

Acabaremos aqui, portanto,...

Para terminar, não resisto a uma última "Tirada". Será a mais extensa de todas, porque corresponde a mais de três páginas inteiras do livro, mas tem a vantagem de ser a última...

É acerca de W.A. na culinária.

Eu, que sei estrelar e mexer ovos e fiquei muito contente quando, muito recentemente, consegui fazer qualquer coisa que já se assemelha bastante a uma omelete, achei muita graça... 

".... num momento de loucura inexplicável, decidi fazer uma breve pausa na minha ascensão meteórica para alturas não merecidas e tornar-me um grande chefe de cozinha. Até então , as minhas aptidões culinárias eram iguais às de qualquer outro cidadão capaz de lidar com um abre-latas. Era um homem hábil no que dizia respeito a sandes de atum. Conseguia cozer ovos com algum aprumo, e posso dizer que o meu copo de água fresca era a inveja de qualquer finalista do Gordon Bleau. Sendo solteiro, e quando Jean Doumanian (Nota: amiga pessoal e produtora dos seus filmes) ou semelhante companhia não estivesse disponível para uma refeição no Elaine's, podia normalmente ser encontrado a encomendar e devorar comida chinesa, colado ao ecrã da televisão. Onde quero chegar é que, certo dia, decidi aprender a cozinhar. Mas não queria simplesmente aprender a aquecer carne enlatada ou a fazer um excelente arroz instantâneo. A minha fantasia digna de Coleridge era tornar-me um verdadeiro chef. Aprenderia os segredos da mestria culinária e jantaria hortulanas e línguas de pavão, mesmo que me fosse sentar sozinho á frente de Walter Cronkite.

E daqui resultariam algumas vantagens complementares. Possuindo claramente os dotes de um Escoffier ou de um Gordon Tramsey, tornaria a estrada de homem solteiro para a sedução mais livre de buracos. Para a voluptuosa CEO loura que eu convidaria para jantar, primeiro encantada pela minha inteligência e por uma nova poupa que apresentaria, seguindo o molde  de A Grande Onda, de Hokusai, chegaria ter de tolerar educadamente uma nova versão de toucinho e papas misturados por um solteiro solitário e inepto; talvez uma mistura de Bird's Eye descongelada ou uma sopa rala da variedade servida aos hóspedes do Arquipélago Goulap. Ela oferecer-se-ia para assumir o controlo e mostrar-me como, num instante, era possível a alguém que soubesse o que estava a fazer preparar um festim. Mas esperem, o que é isto? Como é que a surpreendi? Coquilles St. Jacques, talvez com um Chablis ou Sauvignon. Ou camembert assado com um Bordaux tinto.  Ou um blanquette de veau e, para sobremesa, um clafoutis, feito com cerejas. Ou, se ela preferir, a minha tarte Tatin. Será suficientemente impressionante? Acho que sim. A partir daí deverá ser uma viagem expresso até ao quarto para queimar algumas das calorias na cama.

Confiante de que nunca mais teria de me sujeitar ao meu spaghetti com almondegas, um prato cuja consistência rivalizava com a cola de papel, o meu primeiro passo foi pedir a minha assistente que telefonasse a Julia Child, dizendo que Mister Woody Allen quer a recomendação de um excelente professor de cozinha. Aulas privadas, claro. Madame Child, que eu nunca conhecera, foi suficientemente simpática para não transferir a chamada para o FBI e fez-me a vontade, sugerindo uma senhora encantadora, de seu nome Lydie Marshall. Foi marcado um encontro e Miss Marshall apareceu no meu apartamento. Avaliou os meus tachos e panelas, o meu fogão, o longo avental e touca brancos, que eu adquirira em antecipação, e pressentindo que tinha apanhado o seu peixe, telefonou ao contabilista dizendo-lhe que podia dar entrada para o casaco de zibelina que tanto queria.

Cada lição seria de três horas, e ela levaria consigo os diversos ingredientes. Não houve tempo para deixar crescer um bigode fino, gálico, antes de a nossa primeira lição ter começado. Iria fazer pasta caseira, carne com molho béarnaise, espargos, batatas lyonnaise, profiteroles, café e madalenas. Não me consigo lembrar de muito mais a não ser dizer-lhe que eram tudo coisas que eu já tinha visto em menús do Lutèce ou do Grenouille, ou sobre as quais lera em Proust. Dirigi-lhe um sorriso de orelha a orelha e, pronunciando erradamente "bon appetit", mergulhei. Bem, para irmos ao que interessa, aguentei-me três aulas e estava de tal modo tolhido pela exaustão que não me conseguia manter-me pé quando cada sessão terminava. Estava demasiado fraco para comer as refeições; arfava e salivava e, por duas vezes, ela perguntou-me se devia ligar para o 112 e se tinha família próxima. 

Eu sempre fora um tipo atlético, por essa altura jogava ténis com muita frequência e conseguia facilmente aguentar-me num jogo de singles durante três ou quatro horas sem quaisquer sinais de abrandamento. Mas a histeria e a tensão de cozinhar davam cabo de mim. Ando a correr pela cozinha toda, a massa de pasta pendurada nas costas da cadeira, a pingar como caramelo, enquanto o pato queima, eu a suar por causa do calor do fogão, a minha mão entorpecida de tanto bater. Já não consigo bater mais. O meu pulso começa a sentir os danos. Vai matar o meu serviço. E porque estou eu a bater? Odeio natas batidas. Entretanto, se paro de mexer, o molho béarnaisse não vai chegar a molho. Por alguma razão, o créme caramel ficou impossível de distinguir de um disco de hóquei, e ainda que nunca tivesse utilizado um extintor antes, consegui de alguma forma cobrir o robalo com uma camada de espuma branca. Foi nesse momento que, algures, Joël Robuchon e Damniel Boulus suspiraram de alívio, pressentindo que as suas reputações estavam em segurança e não cairiam nas mãos de um intruso de quatro olhos, cujo salmão fumado tinha implodido. Infelizmente, continuaria a comer moo goo gai pan de baldes de cartão e a reaquecer as pizzas entregues. As mulheres que convidava para jantar seriam aconselhadas a parar no Popeyes e a trazer consigo os seus próprios nutrientes. Poiderá ser uma transição menos elegante para a cama, onde continuo a tentar ganhar aquela estrela Michelin."

 

(Págs 241 a 244) 

Woody Allem A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

TIRADAS

Aqui vai a penúltima "Tirada".

A nostalgia do Group Theatre, ou W.A. a sonhar-se como um dos grandes dramaturgos americanos...  

"Uma agradável surpresa ocorreu quando Harold Vlurman, um ícone do Group Theatre que era parte do Actor's Studio e crítico, disse bem do meu espetáculo (Nota: "Don´t Drink the Water", comédia que se estreou na Broadway). Viu virtudes nele para além das piadas ou das personagens cartunísticas cómicas. Acho que não havia virtudes nenhumas. mas a sua avaliação significava muito para mim, porque sempre dissera que tinha nascido demasiado tarde para o Group Theatre, mas que me teria enquadrado. Sinto-me, por vezes, um dramaturgo dos anos 30 frustrado, fora do seu tempo, tendo perdido o barco, aparecido demasiado tarde, mas Elia Kazan gostava dos meus filmes e isso fazia-me sentir bem. Era na companhia desses tipos que eu de facto me via - O'Neill, Clifford Odets até Arthur Miller, depois Tennessee Williams. Eu não tinha o talento deles, mas se precisassem de alguém que lhe fosse buscar o café..."

(Pág. 189)

 Woody Allen em A Propósito de Nada

 Colaboraçõa de Luís Miguel Mira 

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

TIRADAS


Vou dar um giro pelo Minho e, quando regressar, não quero ouvir mais falar de Cuba nem do Woody Allen. E tenho a certeza de que vocês também não...

Por isso até lá peço desculpa de vos sobrecarregar com o envio daquilo que já tinha em esboço.

A boa notícia é que durante 15 dias não ouvirão falar de mim...!

Esta é curtinha e é sobre W.A. e o drama das gorjetas.

Confesso que também o tenho... Mas a mim sucede-me o contrário, com uma Mulher a puxar-me sistematicamente o braço a dizer para não dar nada ou dar qualquer coisa que, a mim, me parece demasiado mixuruca... !  

"Uma ocasião senti-me inseguro quanto a dar gorjeta à rapariga do bengaleiro, por me ter emprestado uma gravata. Nesses dias, uma gorjeta era um dólar, e a questão não era o dinheiro, eu só não sabia ao certo qual seria o protocolo. Perguntei a Phil Foster: "Dou-lhe uma gorjeta?" Ele respondeu: "Tens dez dólares?" Eu disse que sim. "Dá-mos", disse ele. Assim fiz. Phil entregou o dinheiro à menina. "Meu Deus!", disse eu. "Dez dólares? Nunca dei dez dólares a uma rapariga do bengaleiro". "Vais lembrar-te sempre deste momento", disse ele, "E lembrar-te-ás sempre de dar gorjeta. Se ela te emprestar uma gravata, um casaco, dás gorjeta. Não mais te vais esquecer". Já agora, não era uma questão de ser forreta quanto a gorjetas. Simplesmente não percebia as questões mais delicadas, de tal forma que, certa vez, dei gorjeta a um oficial de justiça que entregou uma intimação." 

(Pág. 129)  

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

TIRADAS

Esta "Tirada"  é sobre W.A. e as suas fobias.

 Confesso que, embora longe de ser um "animal social",  problemas destes nunca os tive, desde que a bebida fosse boa e estivesse bem à mão de semear...

 "... foi dado um almoço no Toots Shor para homenagear os escritores e eu consegui chegar à porta, mas não entrar, fobia com a qual me debato até este dia - a fobia de entrar. Certa vez , fiquei sentado no exterior da encantadora casa de Sidney Lumet, na Lexington Avenue, enquanto todos os convidados chegavam para jantar; devia estar entre eles, mas não conseguia entrar; fiquei sentado, tentei ganhar coragem, vi aqueles de quem gostava e que gostavam de mim, Bob Fosse, Milos Forman, Paddy Chaefsky - mas não consegui entrar.

Quando tinha de ir a algum evento assegurava-me de que era o primeiro a chegar, porque, assim, talvez conseguisse entrar."

 (Págs. 119 e 120)

 " Já agora, anos mais tarde fui convidado para uma festa muito concorrida em casa do Sidney Lumet e, de alguma forma, consegui entrar; estava sentado num sofá que ficava de costas para uma parede envidraçada. O desvario social, como lhe chama Satchel Paige, estava a tornar-se demasiado para mim e, quando uma famosa cantora foi incitada a atuar, fiquei ultra-irrequieto. Enquanto alguém se sentava ao piano e começava a tocar uma canção com que a associavam, eu mais nada desejava no mundo do que desandar dali para fora. Porquê? Quem sabe ? Tudo o que sei é que tinha afrontamentos que me paralisavam de desconforto. O problema é que estava bastante longe da porta e não consegui abrir caminho graciosamente entre as pessoas, para me esgueirar dali, pois a convidada já iniciara o seu número. Não queria que me acusassem de ser grosseiro. Depois ocorreu-me: a janela mesmo atrás de mim estava meio aberta. Lumet residia numa vivenda e estávamos num piso térreo. A atenção de todos estava fixa no piano. Eu estava atrás dos foliões extasiados e, com alguma coreografia, poderia esgueirar-me pela janela e sair para a Ninety-First Street - quem é que se aperceberia? Rapidamente, abri um pouco mais a janela para poder sair. Só não queria que alguém se virasse para trás e me apanhasse a meio da fuga. Silenciosamente, iniciei a minha saída. A cantora cantou e eu deslizei - uma perna de cada vez para ser preciso. De repente, ocorreu-me que, se fosse visto pelas pessoas lá fora, a sair de uma janela, poderia parecer um ladrão. E se, Deus me livre, um polícia novato me visse e disparasse na minha direção? O pânico instalou-se e eu voltei para o interior, e regressei ao sofá. Fiquei sentado durante toda a canção, partindo quando todos o fizeram. Mas já está a ver o quanto a psicanálise me estava a ajudar. Embora eu só tivesse uns vinte e três anos dela quando fiz isto."

(Págs. 120 e 121)

Woody Allen em A Propósito de Nada

 Colaboração de Luís Miguel Mira

sábado, 10 de outubro de 2020

TIRADAS


 ... e mais uma "Tirada"...

Esta é sobre W.A. e o serviço militar.

"Algures durante este período (Nota: crise do casamento) chegou uma carta. Pressenti que poderia ser aquela oferta do Bob Hope que nunca se tinha materializado. Uma carta de uma fonte anónima é uma coisa entusiasmante e eu não podia esperar por abri-la. Afinal de contas, era um aviso para me apresentar ao serviço. Bem, podem imaginar a minha surpresa e o quanto fiquei encantado. Finalmente uma oportunidade de viver numa caserna com outros homens, tomar banho com duas dezenas de indivíduos estranhos, partilhar a casa de banho com tipos chamados Alabama e Texas, e eu seria Brooklyn. Ser despertado abruptamente às cinco e meia, fazer exercício todo o dia, acatar as ordens de um Neandertal de cabelo à escovinha e um cérebro com o comprimento de Plank. E a comida! Finalmente livre de uma dieta de lombo, lagosta, hambúrgueres no Twenty-One, e o meu Reuben's Special. Ia deixar de comer a galinha do general Tso, passando a comer o frango do general  McArthur. Ou o que quer que sirvam no exército. Naturalmente ansiava por ver ação. Por me sentar empilhado e enojado , enquanto a minha barcaça de desembarque oscilava junto à costa e eu emergia na praia sob uma saraivada de metralhadoras inimigas. As feridas, o hospital, Harold Russel. Aqui estava a minha oportunidade de ser um herói, para receber a Medalha de Honra, orgulhoso por servir o meu país.

Rapidamente contactei todos os médicos que conhecia e implorei por atestados, alegando que era fisicamente incapaz. No dia da inspeção médica apareci com toda uma variedade de álibis, que me declaravam um espécime inválido e prescreviam descanso. Pé chato, asma, visão fraca, a vesícula biliar, alergias, curvatura da coluna, hérnia do hiato, luxação no ombro, ombro enrijecido, vertigens, síndroma de Alice no País das Maravilhas. Tubo carimbado "Sem Provas" pelos médicos que me examinaram. Reduzido à derradeira entrevista com o psiquiatra, entreguei-lhe declarações que certificavam a minha psicopatologia, desde as do meu psiquiatra às do último taxista que me transportara. A situação parecia demonstrar que eu era, sem dúvida, um 1A. O médico que me examinava pediu-me que lhe estendesse a mão. Assim fiz, e estava firme e não tremia. Depois perguntou-me: "Rói sempre as unhas?". Eu não era um compulsivo roedor de unhas, mas confessei-lhe que tinha esse hábito. Ele observou-me as pontas dos dedos e, abruptamente, marcou-me como 4F. Rejeitado pelo exército por roer as unhas. Seria a primeira vez? E que sorte para os outros soldados que teriam partilhado a caserna comigo. Não teriam de dormir ao lado de um tipo que soluçaria até adormecer agarrado a um pequeno urso de pano."

 

(Pág. 111 e 112)    

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

TIRADAS

Esta é sobre W.A. e o drama do seu primeiro casamento.

 Garanto-vos que qualquer comparação entre isto e uma normal vida de casado é pura coincidência...

"Os pais de Harlene nunce deviam ter permitido que a filha casasse comigo. É verdade, estava a revelar-me uma promessa no meu campo, mas não a mostrar-me uma grande promessa como pessoa. Continuava estúpido (tal como conduzir - é algo que nunca se perde), incivilizado, neurótico, completamente impreparado para o casamento, uma confusão emocional que se aproveitava, desde os dezasseis anos, daquilo a que Noël Coward chamou "um talento para divertir".

Quando Harlene veio ter comigo e nos casámos, as palavras "aceito" soaram como se tivessem sido pronunciadas numa câmara de eco cavernoso, como os lábios de Orson Welles a dizer "Rosebud". Decorreu, contudo, na sala de estar de um qualquer rabino (uma cedência aos pais dela) , comigo a imaginar a porta de um jazigo a fechar-se sobre a minha vida."

(Pág. 108)

"Eu era rabugento, infeliz, desagradável para os pais dela, que eram muitíssimo simpáticos, sem qualquer outro motivo para além de ser um porco desagradável. Não suportava os amigos da minha mulher. Enervava-a com a minha infelicidade constante e carruncuda. Comecei a sentir náuseas frequentemente, em geral a meio da noite. Atribui-as a uma doença fatal ou aos cozinhados dela, mas os meus primeiros exames físicos revelaram que estava de boa saúde e as náuseas a meio da noite instalavam-se mesmo quando comíamos fora. Recordo-me como tudo era precário. Às três da manhã levantava-me com uns enjoos insuportáveis. Ligávamos para os serviços de urgência , que enviavam um daqueles médicos freelancer anónimos que estavam de serviço toda a noite. Um estranho chega. Injeta-me. As náuseas passam. Eu durmo. Esta sequência ocorria frequentemente. Só quando comecei a fazer psicanálise, como último recurso para a minha infindável infelicidade, é que as causas foram diagnosticadas como psicológicas e, pouco tempo depois de ter começado a análise, fiquei completamente curado destes ataques. Mesmo que a psicanálise de sofá nada fizesse por mim senão isso (e não fez), ainda assim teria valido a pena."

(Pág. 110 e 111)

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

TIRADAS

Esta tirada é sobre W.A face aos imprevistos...

Não vos enviarei muitas destas e, felizmente, no livro também não abundam...

 Mas macacos me mordam se não é uma cena acabadinha de sair de um dos seus filmes...!

 A segunda mulher de W.A., a atriz e candidata a cantora Louise Lasse,  era extremamente inconstante em tudo, e facilmente passava da extrema euforia para a profunda depressão. E vice-versa.

 No sexo, também...!

"Em relação à sensualidade irei dar apenas um exemplo, porque é embaraçoso. A ponta do iceberg. Estamos sentados num restaurante, tendo feito os nossos pedidos. Estou a aguardar ansiosamente pela minha suculenta entrada Nova Scotia. Ela é subitamente tomada pela luxúria. Nada fiz para o provocar, para além de ser, como habitualmente, carinhoso, divertido, efusivo. "Anda", diz ela, levantando-se.

"Onde?", pergunto eu , salivando perante a eminente chegada de um prato de salmão fumado. "Apetece-me fazer amor", diz ela. "Mas eu pedi a minha entrada", queixo-me. "Vamos", diz ela,  querendo aquilo que quer quando quer. "Onde?", guincho, sendo puxado e arrastado para a porta. "Voltamos já", diz ela ao empregado. "Mas onde vamos?", pergunto. "Vi uma viela ao virar da esquina", diz ela. "Mas estamos na baixa de Nova Iorque", digo eu, "estamos na Fifty-Four, entre a Broadway e a Seventh. Toda a cidade se estende á nossa frente". "É um espaço pequeno e escuro", diz ela, "descendo uns degraus, está negro como breu, ninguém nos vai ver".

Agora, sendo arrastado através de um emaranhado de caixotes do lixo, sou empurrado para um espaço exterior escuro e reservado na baixa de Manhattan. À nossa volta transito e peões praticamente visíveis. Por fim, a luxuria vence o salmão fumado e eu sucumbo. Fazemos amor e, pouco depois, estou sentado em frente a minha entrada, um sorriso beatifico no rosto, o rosto dela rubicundo de realização. Mulheres assim não crescem nas árvores".  

(pág. 149 e 150)

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

TIRADAS

Esta "Tirada" é  curtinha e é sobre W.A. e as novas tecnologias.

Embora não leve as coisas tão longe quanto ele, confesso que o compreendo bem...

"Fechos éclair", por exemplo, é coisa que não suporto, e fico maldisposto de cada vez que tenho de os usar...!

 "Como todos os objetos mecânicos, tornámo-nos (Nota: ele e o carro) imediatamente arqui-inimigos. Não gosto de aparelhómetros. Não tenho relógios, não ando de chapéu de chuva, não sou dono de gravadores e até hoje preciso da minha mulher para me ajudar a ajustar o aparelho da televisão. Não tenho computador, nunca me aproximei de um processador de texto, nunca mudei um fusível, enviei um email a alguém ou lavei um prato. Sou um desses velhos baralhados  que necessitam que lhes inutilizem todos os botões da televisão com fita-cola para que possa usar apenas o botão de ligar e desligar, e os do volume.

Aos dezasseis anos ofereci a mim mesmo uma nova máquina de escrever, uma máquina portátil Olympia. Datilografei nela tudo aquilo que alguma vez escrevi: os meus guiões, peças, histórias, casuals (é assim que se chamam aquelas peças engraçadas do New Yorker). Até hoje não sou capaz de mudar a fita. É a minha mulher que o faz por mim, mas, durante vários anos, enquanto era solteiro, tinha um conhecido que convidava para jantar sempre que precisava de mudar a fita."

(Pág. 97 e 98)  

 Woody Allen em A Propósito de Nada

 Colaboração de Luís Miguel Mira

terça-feira, 29 de setembro de 2020

TIRADAS

Como sabem, W.A. é músico nos seus tempos livres e toca, principalmente, clarinete.

No que respeita a atuações públicas, tudo começou quando se juntou a um grupo de amigos às segundas-feiras à noite, no Michael's Pub, de Nova Iorque. Desde 1996 a banda passou a tocar, regularmente, no Carlyle Hotel, também em Manhattan.

Entretanto a banda ganhou o nome de "New Orleans Jazz Band" e, como ele refere, deu várias vezes a volta ao Mundo, tendo passado em duas ocasiões pelo CCB de Lisboa, a última das quais muito recentemente, a 4 de Julho de 2017.

Não assisti a nenhum desses concertos. Os preços pareceram-me exorbitantes para uma banda de amadores...

Em 1996 a célebre realizadora americana Barbara Kopple acompanhou a banda numa digressão pela Europa, daí resultando o documentário "Wild Man Blues", lançado no ano seguinte.

Esta "tirada" é, pois, acerca de W.A. enquanto músico.

"O meu amigo Jerry comprou um gravador e apresentou-mo com orgulho.

"Que música é essa?", perguntei

"É um concerto de jazz que gravei", disse ele, da "rádio Ted Husing's Bandstand".

"É excelente", disse, atirando para o lado os meus livros da escola, na direção do caixote do lixo.

"Um concerto em França".

"Quem é esse?"

"Sidney Bechet."

"Quem é esse?"

"Um saxofonista soprano de Nova Orleães."

Foi a primeira vez que ouvi jazz de Nova Orleães. Porque me afetou tão profundamente nunca saberei. Ali estava eu, um judeu de Brooklyn, que nunca tinha saído de Nova Iorque, com o tipo de gosto cosmopolita, um grande apreço por Gershwin, Porter, Kern, compositores populares muito sofisticados, e ali estavam estes afro-americanos do sul profundo, que nada tinham em comum comigo e, no entanto, rapidamente se tornaram uma obsessão; em breve eu era aspirante a humorista, aspirante a mágico, aspirante a jogador de beisebol e aspirante a músico de jazz afro-americano. Comprei um saxofone soprano, aprendi a tocá-lo; comprei um clarinete e aprendi a tocá-lo. Comprei uma vitrola. Isso fui capaz de tocar sem lições"

(pág. 59)

"Ouvíamos todo o tipo de jazz, mas os nossos preferidos eram os discos antigos de Nova Orleães. Bunk Johnson, Jelly Roll Morton, Louis Armstrong e, claro, Sidney Bechet, que eu adorava e queria imitar enquanto tocava (e se isto não o fizer rir, nada fará). Sentava-me no meu quarto sozinho, a tocar, enquanto ouvia os discos de Bechet e, mais tarde, de George Lewis. Este foi outro ídolo meu; com ele e John Dodds, mais um génio do clarinete, sentia que me tinha, por fim, encontrado. O prazer era tão intenso que decidi dedicar a minha vida ao jazz. Mal sabia eu que Bechet, Armstrong, George Lewis, Johnny Dodds, Jelly Roll Morton e Jimmie Noone eram génios musicais. o idioma deles era primitivo, mas, nos parâmetros do jazz de Nova Orleães, tinham dentro deles algo verdadeiramente mágico, que jorrava a cada nota que tocavam. Eu, bronco ingénuo que era, não compreendia que não tinha essa genialidade, que estava destinado, apesar de todos o meu entusiasmo e amor pela música, a não ser mais do que uma nulidade musical, que seria escutada e tolerada com base numa carreira cinematográfica, e não por algo que valesse alguma coisa no que ao jazz diz respeito."

(pág. 59 e 60)

"Mas praticava, e ainda pratico. Toco todos os dias e com tal dedicação que, para ter a certeza de que não falho um dia, já toquei em praias geladas, em igrejas enquanto a minha equipa de filmagens se instalava, em quartos de hotel depois do trabalho, enfiando-me na cama e tapando-me com as cobertas para não acordar os outros hóspedes. Contudo, por muito que ouça música, que leia as histórias estimulantes das vidas dos músicos e que sopre, sopre, sopre, com diferentes bocais e palhetas, sempre em busca daquela combinação que me irá fazer soar melhor, continuo uma nulidade. Continuo a ser um jogador de ténis de fim de semana no meio de Federer e Nadal. Lamento dizê-lo, não o tenho em mim: o ouvido, o tom, o ritmo, o sentimento. No entanto, já toquei em público em clubes e salas de concerto, em casas de ópera por toda a Europa, em auditórios cheios nos Estados Unidos. Já toquei em paradas de Nova Orleães e bares da cidade, no Jazz Heritage Festival e no Preservation Hall, tudo porque a minha carreira cinematográfica o permite. Há vários anos, Dotson Rader, um homem espirituoso, perguntou-me durante um jantar: "Não tens vergonha?".

Entre o amor pela música e os meus limites enquanto músico, se quero tocar não me posso dar ao luxo de ter vergonha."

(pág. 60) 

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

TIRADAS

Esta nova Tirada é sobre Woddy Allen e a condução.

Também já vimos coisas deste estilo nos filmes dele...

Não vos quero massacrar com as "tiradas" de W.A. mas, enquanto estas já estão preparadas, tenho outros textos no forno que ainda vão precisar de um pouco mais de paciência para lhe pegar...

"... por essa altura tinha carro. Adquirira um descapotável Plymouth de 1951 por seiscentos dólares. Tinha alimentado fantasias gloriosas de como um carro iria mudar a minha vida. Libertar-me-ia; poderia conduzir sobre a ponte de Manhattan sempre que quisesse, escapar para Long Beach para visitar longos poisos nostálgicos, ir até Connecticut numa manhã de primavera para comungar com a natureza. Não faço ideia em que raio estaria eu a pensar; odiava a natureza e, mais do que a natureza, odiava ser dono de um carro."

(pág. 97)

"...um carro nas minhas mãos era como dar uma ICBM a uma criança de três anos. Conduzia demasiado depressa. Guinava e dobrava esquinas onde estas não existiam. Não conseguia estacionar de marcha atrás. Fazia peões descontrolados. Não tinha paciência para o trânsito e queria deixar o Plymouth e abandoná-lo para sempre no meio de uma rua engarrafada. Conduzia infidavelmente , incapaz de encontrar um sítio para estacionar e, depois, não era capaz de enfiar lá o carro. Parti muitos faróis traseiros e dianteiros de veículos estacionados, a tentar enfiar-me entre eles, depois arrancava e acelerava para longe, em pânico, abandonando a cena do crime. Estava continuamente a perder-me. Não tinha qualquer sentido de orientação. "

(pág. 99)

"Sim, o carro era, como muitas mães de raparigas temiam, um quarto de hotel sobre rodas; mas sempre que começava a trocar beijos, aparecia a luz de uma lanterna e um qualquer polícia mandava-me seguir viagem"

(pág 99)

"No entanto, conduzia porque toda a gente que conhecia parecia ser capaz de gerir um carro, assim, porque não haveria eu de conseguir? Mas nunca consegui e haveria de desistir pouco depois. Voltei a tentar conduzir mais uma ou duas vezes, anos mais tarde, com iguais resultados e, por fim, desisti para sempre.

Mal vendi o Plymouth foi como se me tivessem tirado um tumor."

(pág 99 e 100) 

Woody Allen em A Propósito de Nada

Colaboração de Luís Miguel Mira

Legenda: Fotograma do filme Annie Hall

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

TIRADAS


  As "Tiradas" de hoje serão dedicadas ao Cinema durante a meninice e a adolescência de W.A., bem como aos seus gostos pessoais.

 Sim, eu sei que são muito extensas, mas pareceu-me mais coerente juntar tudo o que tem a ver com o mesmo tema, em vez de vos enviar aos bochechos. E ainda deixei muita coisa de fora...

 Embora 18 anos mais novo do que ele, eu ainda fui a tempo de sentir um pouco da magia que ele aqui evoca, embora não tivesse tido a sorte de ter uma prima mais velha que me levasse todas as semanas ao cinema ver uma sessão dupla...

 Nos finais dos anos 50, ou seja, aí pelos meus 6/7 anos, já havia televisão em Portugal, mas só a preto e branco.

 Nada que se comparasse, portanto, com o espanto daquele ecrã gigante, com a sedução do "Technicolor" e da música e com todo aquele ritual pelo qual passávamos (o "foyer", a subida das escadas, a condução ao nosso lugar, o "Programa" para recordação, ...) até soarem as badaladas e o filme começar. E ainda me lembro que a primeira vez que fui ao Cinema foi para ver "A Bela Adormecida" no Monumental com a minha já falecida prima Lena, e dei um valente bate-cu porque a malvada da cadeira fugiu debaixo do meu rabo sem eu dar por isso...!

 Eram as noites que sonhávamos até a hora chegar, e as outras que levávamos a pensar quando é que teríamos a sorte de lá voltar. 

 As minhas filhas já nasceram com a televisão a cores, numa altura em que o Cinema começava a estar banalizado nas televisões e já havia VHS para se ver em casa.  E a ida ao Cinema era um ritual quase semanal...

 E os meus netos então, nem se fala... 

 Quanto a W.A., se, conhecendo-se a sua Obra, não se estranha muito alguns dos gostos e desgostos manifestados, já se estranha - e muito...! - que o cinéfilo Allen não tenha tido sequer a mínima "curiosidade cinéfila" para dedicar meia-dúzia de horas da sua vida a ver algumas das obras-primas que se gaba de não ter visto, tanto mais que as mesmas devem ter passado centenas de vezes nas televisões americanas...

 Mas se ele o diz...   

 Deixo-vos, então, com este nostálgico relato de outros tempos...


"Eu via todos os filmes que Hollywood lançava. Todas as grandes produções, todos os filmes de série B. Eu sabia quem entrava nos filmes, reconhecia-os, os intervenientes mais desconhecidos, os atores secundários, reconhecia as músicas, pois conhecia todas as músicas mais populares, dado que Rita (Nota: prima 5 anos mais velha que o acompanhava ao Cinema) e eu nos sentávamos e ouvíamos rádio juntos, incessantemente. O Make Believe Ballroom, Your Hit Parade. Nesses dias, a rádio tocava desde o minuto em que acordávamos até aquele em que íamos dormir. Música, notícias e mais música.

A música pop da altura era Cole Porter, Rodgers and Hart, Jerome Kern, George Gershwin, Benny Goodman, Billie Holiday, Artie Shaw, Tommy Dorsey. Assim, aqui estava eu, inundado com música e filmes lindíssimos. Primeiro, uma sessão dupla todas as semanas, depois á medida que os anos foram passando, ia cada vez mais. Era tão entusiasmante entrar no Mildwood ao sábado de manhã, enquanto as luzes ainda estavam acesas e a pequena multidão comprava os seus doces, e avançava em fila e ia tocando um disco pop para impedir que quem se ia sentando se amotinasse até as luzes descerem. Harry James - "I'll Get By". As luzes nos esconsos eram vermelhas. Por fim, as luzes apagavam-se, as cortinas abriam-se e o ecrã prateado iluminava-se com um logotipo que fazia salivar o coração, se é que posso misturar as metáforas, com uma antecipação pavloviana. Vi-os a todos, cada comédia, cada filme cowboys, cada história de amor, cada filme de piratas, cada filme de guerra."

(págs. 25 e 26)

"Os meus filmes preferidos, em jovem, eram aqueles que apelidei de "comédias de champanhe". Adorava histórias que se passavam nas penthouse onde o elevador se abria para o interior do apartamento e as rolhas saltavam, onde homens elegantes pronunciavam diálogos esperituosos e encantavam mulheres belas, percorriam as casas com as mesmas roupas que agora alguém poderia utilizar num casamento no Palácio de Buckingham. 

Estes apartamentos eram grandes, normalmente duplexes, com muito espaço branco. Ao entrar, a pessoa ou o seu convidado dirigia-se, invariavelmente, para um bar pequeno e acessível onde eram servidas bebidas decantadas. Na altura todos bebiam e ninguém vomitava. E ninguém tinha cancro e a penthouse não tinha fugas e, quando o telefone tocava a meio da noite, as pessoas que viviam nas alturas sobre Park Avenue ou Fifth Avenue não tinham, como a minha mãe, de sair da cama e bater com os joelhos no escuro em busca do instrumento negro para ouvir que um parente talvez tivesse acabado de morrer. Não. Hepburn, ou Tracy, ou Cary Grant, ou Myrna Loy estendiam a mão para a mesinha de cabeceira a poucos centímetros de onde dormiam, e o telefone era normalmente branco e as notícias não andavam em torno de células metastáticas e tromboses coronárias provocadas por anos a ingerir carnes mortíferas, mas de enigmas de mais provável resolução como "O quê...? Como assim não estarmos legalmente casados!?".

(págs. 26 e 27)

 "E assim, graças à minha prima Rita, fui apresentado ao cinema, às estrelas de cinema, à Hollywood da moralidade patriótica e aos seus filmes milagrosos; e embora ignorasse tudo o que todos me tentaram ensinar, dos meus pais aos meus professores de espanhol, quando já tinha dois anos de aprendizagem, Hollywood pegou. Modern Screen, Photoplay. Bogart, Cagney, Edward G. Robinson, Rita Hayworth - o seu mundo de celuloide, foi isso que aprendi. O maior do que a vida, o superficial, o falsamente glamoroso, mas não me arrependo de um fotograma que seja. Quando me perguntam que personagem dos meus filmes se parece mais comigo no ecrã, basta olhar para a Cecília em "A Rosa Púrpura do Cairo"."

(pág. 31)

 No que a filmes diz respeito, nunca vi "Charlot nas Trincheiras ou "O Circo" de Chaplin, nem "O Navegante" de Buster Keaton. Nunca vi qualquer versão de "Assim Nasce Uma Estrela". Apesar de todos os sábados passados no Midwood Theatre, nunca vi "O Vale Era Verde" ou "O Monte dos Vendavais" ou "Camille" ou "A Estranha Passageira" ou "Ben-Hur" ou muitos outros. "Vidas Nocturnas", "A Casa Assombrada","A Noiva de Frankenstein", nunca os vi. Não estou a menosprezar esses trabalhos; isto é sobre a minha ignorância e o porquê de os óculos não tornarem uma pessoa particularmente literata, muito menos intelectual. E estas são só pequenas amostras dos buracos da minha erudição. Até à data, nunca vi "Doido com Juízo ou "Peço a Palavra"."

(pág. 66)

 "Prefiro Chaplin a Keaton. Isto é algo que não cai bem à maior parte dos críticos e alunos de cinema, mas acho-o mais divertido, embora Keaton fosse melhor realizador.

Estou apenas a realçar alguns ícones que, surpreendentemente, não significaram tanto para mim quanto para o público em geral. Como "Quanto Mais Quente Melhor" e "Duas Feras" - para mim nenhum deles era divertido. Também não gostei de "Do Céu Caiu Uma Estrela". A bem da verdade, adoraria estrangular o belo anjo da guarda. "O Grande Amor da Minha Vida" nunca me convenceu. Adorei Hitchcock, mas não suporto "Vertigo". Sou louco por Lubitsch, mas nunca achei divertido "Ser Ou Não Ser. "Ladrão de Casaca", por outro lado, acho o máximo, um ovo Fabergé

Adoro musicais: "Serenata à Chuva", "Gigi", "Não há Como a Nossa Casa", "A Roda da Fortuna", "My Fair Lady". Nunca gostei de "Um Americano em Paris"

Por outro lado, nunca achei "O Grande Ditador" ou "O Barba Azul" minimamente divertidos. Não considero, de maneira nenhuma, que quando Chaplin faz saltitar pelo ar aquele balão com a forma de um globo seja um exemplo de genialidade cómica. Mas quem é que quer saber o que eu acho?".

(págs. 67 e 68)


Woody Allen em A Propósito de Nada

 Colaboração de Luís Miguel Mira

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

TIRADAS


De regresso aos textos, recomeçarei de mansinho, para não vos sobrecarregar.

TIRADAS foi o título que, em crise de imaginação, escolhi para vos enviar alguns trechos da autobiografia de Woody Allen recentemente publicada em Portugal, com a qual me entretive durante as férias.

A escolha é minha e, como é natural, altamente subjetiva...

Atenção que não estou deliberadamente a escolher trechos que vos levem a rir às gargalhadas, mas sim alguns que vos ajudarão a conhecer o personagem ou, melhor dizendo, conhecê-lo da maneira como, pelos vistos, ele quer ser conhecido nos dias de hoje...

Mas sigam o meu conselho e não acreditem em tudo o que ele vos diz...

Colaboração de Luís Miguel Mira

Brinco com os meus pais neste relato da minha vida, mas cada um deles partilhou comigo conhecimentos que me haviam de servir durante décadas. Do meu pai: Quando compras o jornal numa banca, nunca tires o de cima. Da minha mãe: a etiqueta fica sempre atrás.
(pág. 28)

Já agora, é impressionante a quantidade de vezes em que me descrevem como um "intelectual". Esta é uma noção tão falsa como o monstro do Lago Ness, dado que não tenho na cabeça nem um só neurónio intelectual. Iletrado e desinteressante em tudo o que diz respeito à educação, cresci sendo o protótipo do preguiçoso que se senta à frente da televisão, de cerveja na mão, com um jogo de futebol aos berros, a página central da Playboy presa à parede com fita cola, um bárbaro que exibe casacos de tweed com remendos nos cotovelos à la professor de Oxford. Não tenho conhecimentos profundos, pensamentos elevados, nem tão pouco compreendo a maioria dos poemas que não comecem por "As rosas são vermelhas, as violetas azuis". O que tenho, contudo, é um par de óculos de aros pretos, e argumento que a utilização destes óculos, combinada com a capacidade de retirar os adequados pedacinhos de fontes eruditas demasiado profundos para que eu os consiga compreender, mas que podem ser utilizados no meu trabalho para transmitir a impressão enganadora de saber mais do que sei, mantém este conto de fadas vivo
(pág. 23)

De qualquer maneira, não comecei a ler senão quando estava no final do secundário e as minhas hormonas tinham verdadeiramente acelerado, e comecei a aperceber-me daquelas jovens de longos cabelos lisos, que não usavam batom, tinham pouca maquilhagem, vestiam golas altas pretas e saias com collans escuros, e transportavam grandes malas de cabedal onde guardavam os exemplares de "A Metamorfose", que tinham coberto de notas pessoais à margem, onde diziam coisas como "Sim, muito verdadeiro!" ou "ver Kierkegard". Por uma singularidade carnal irracional, foram estas que captaram o meu coração, e quando lhes telefonava para irmos sair e lhes perguntava se queriam ir ao cinema ou ver um jogo de beisebol, e elas queriam antes ouvir Segovia ou assistir à peça do Ionesco na Broadway, havia uma pausa desajeitada e longa antes de eu lhes responder "Já voltamos a falar", correndo apressadamente para tentar descobrir quem eram Segovia e Ionesco. Escusado será dizer que estas mulheres não aguardavam ansiosamente pelo próximo volume do "Capitão América" ou mesmo o próximo Mickey Spillane, o único poeta que eu era capaz de citar.
(pág. 17)