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domingo, 3 de novembro de 2024

DEIXAR RASTOS PELO CAMINHAR DOS DIAS


Quando os meus filhos nasceram, o fumo do meu cachimbo recebeu-os um a um, como uma nuvem de boas vindas. Uma nuvem feita de imaginação e de sonho. Todas as minhas casas ficaram impregnadas desses odores – a cada um o seu perfume…
Mais tarde, quando me separei, os meus filhos confessavam-me que sentiam a falta do cheiro do meu cachimbo. Pelo menos ficou-lhes o meu rasto… Efémero, como qualquer fumo.

António Carvalho, Diário de Notícias s/d 


domingo, 12 de maio de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


A minha vida de leitor está repleta de grandes livros, de grandes começos.

Há dias, reparei que Moby Dick ainda não tinha entrado em Olhar as Capas.

Espanto dos espantos.

Já lá mora e agora entra nos Começos de Livros.

Lamentavelmente perdeu-se – onde? Como? - a velha edição, comprada pelo meu pai, da Moby Dick da Estúdios Cor. A que hoje faz parte da Biblioteca da Casa é uma edição da Unibolso, mas mantém a tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves.

É um enorme começo de livro de um fascinante livro, um clássico da literatura.

«Tratem-me por Ismael. Há alguns anos – não interessa quantos – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.»

Sempre guardei – está devidamente sublinhado -  aquele:

«Sempre que sinto na boca uma amargura crescente, sempre que sinto na minha alma a humidade e a chuva de Novembro, sempre que minha hipocondria me domina de tal modo que é necessário um forte princípio moral para me impedir de sair deliberadamente para a rua e socar metodicamente o chapéu das pessoas - … então considero que é a altura de fazer-me ao mar e o mais depressa possível.»

Um grande livro e não poderá ser esquecido o filme que John Huston realizou em 1956. Uma daquelas tarefas julgadas quase impossíveis mas de que o velho John Huston, se sai mito bem, tal como Gregory Peck no papel do capitão Ahad, para nunca se deixasse de ouvir a perna de pau a bater no convés do navio Pequod.

Também não se pode esquecer, logo a abrir o livro, a Etimologia fornecida pelo defunto contínuo de uma escola elementar:

«O pálido contínuo! Bem me recordo dele, com a roupa, o coração, o corpo e o cérebro a largar o último fio… Sacudia sem cessar o pó dos seus velhos léxicos e das suas velhas gramáticas, com um lenço bizarro, cujo padrão, como por escárnio, representava as joviais bandeiras de todas as nações do mundo. Adorava espanar a poeira dos velhos calhamaços; aquilo era uma maneira subtil de não esquecer que também se havia de transformar em pó.»

O capitão Ahab impõe à sua tripulação a concretização do seu maior desejo – destruir a grande baleia branca. Sob o seu rígido comando a missão comercial do Pequod é alterada tornando-se uma missão de vingança.
Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma criatura, mas sim o símbolo de algo desconhecido.
Sem medo das catástrofes naturais, dos maus presságios ou mesmo da morte, Ahab impele o seu navio em direcção ao perigo.

O capitão Ahab, lembra à sua tripulação que o objectivo da viagem comercial vai ser alterada e passa a ser uma demanda vingativa, a caça à baleia branca que o tinha deixado sem uma perna e que agora era uma perna que tinha sido confecionada a bordo com um pedaço de osso polido da queixada de um cachalote.

Mais à frente, páginas 310 surge-nos o avisos:

Não há portanto nenhum meio de saber-se como é a baleia sem irmos cacá-la. Simplesmente isso corresponde ao risco de uma pessoa ser esmagada pelo peso da sua curiosidade e depois arrastada para o fundo do mar. Portanto, aconselho ao leitor que modere a sua curiosidade a respeito das baleias.»

O livro está largamente sublinhado. Numa das margens a observação: ler o Sermão de Jonas na baleia. «O Senhor fez com que um grande peixe engolisse Jonas, e ele ficou dentro do peixe três dias e três noites».

Mas fiquemo-nos com o capitão Ahab monologando, páginas 167, com o seu cachimbo, recordando eu velhas frases lidas aqui e ali: «um fumador de cachimbo nunca está só», ou este pedaço de prosa do jornalista António Carvalho: «Quando os meus filhos nasceram, o fumo do meu cachimbo recebeu-os uma a um, como uma nuvem de boas vindas. Uma nuvem feita de imaginação e de sonho. Todas as minhas casas ficaram impregnadas desses odores – a cada um o seu perfume. Mais tarde quando me separei, os meus filhos confessavam-me que sentiam a falta do cheiro do meu cachimbo. Pelo menos ficou-lhes o meu rasto… Efémero, como qualquer fumo…»

Mas regressemos ao monólogo do capitão:

«Ahab ficou por um momento debruçado sobre a amurada, e depois, como já era seu costume recente, chamou um dos marinheiros de quarto e mandou-o buscar ao camarote o cachimbo e o banco de marfim. Acendendo o cachimbo na lâmpada da bitácula e colocando o banco a barlavento, sentou-se a fumar.

Duranta alguns momentos saíram da sua boca constantes e densas baforadas de fumo que o vento lhe arrojava à face.

«Porque será – monologou ele – que este fumo perdeo condão de ma calmar? Oh! meu cachimbo, triste vida a minha se os teus encantos se perderam! Aqui tenho estado eu a fumegar sem prazer – a fumar sem dar por isso, contra o vento; e soltando fumaças nervosas como uma baleia moribunda, cujos derradeiros jacto são mais violentos e cheios de agonia. Que se passa contigo, meu cachimbo? Foste criado para tranquilizar, para lnçar suaves vapores brancos para o meio de tranquilos cabelos brancos e não para as ásperas madeixas cor de ferro do teu amo. Não mais fumarei…

Lançou ao mar o cachimbo ainda aceso; o lume silvou nas ondas e no mesmo instante a ressaca do navio lançou para o largo a bolha que assinalava o ponto onde o cachimbo se tinha afundado.»

Legenda: Gregory Peck no filme Moby Dick de John Huston

terça-feira, 22 de novembro de 2022

CONVERSANDO


 O que ele gostava de fumar cachimbo.

Lembrou-se de Raymond Chandler:

«Não respondi. Voltei a acender o cachimbo. Faz-nos parecer pensativos quando não estamos a pensar em nada».

Raymond Chandler em Perdeu-se Uma Mulher

domingo, 9 de outubro de 2022

UM CACHIMBO ABANDONADO


Cachimbo.

Perdi-o e gostei tanto desse cisne negro, companheiro Leal dos bons e maus momentos. Não foi a primeira vez que perdi um cachimbo, mas a última é sempre mais dolorosa.

Perdi, não sei onde.


Dir-se-á que o facto não interessa a ninguém. De acordo.


Todavia, noite alta, tento relembrar os lugares onde o podia ter deixado. No transporte? No café? No jornal onde deixei o meu escrito numa correria para o emprego? No emprego? Em que andar de que reunião? Ou foi depois, ao almoço de peixe grelhado naquela tasca (que o pretende ser), ou quando dei um salto ao correio? Teria sido na sala de montagem onde estive a trabalhar, cheia de filmes, de coladeiras, entradas, saídas? No Conservatório, à noite? Talvez na Secretaria onde tive de preencher um papel selado? Na leitaria do bairro Alto onde bebi uma coca entre duas aulas? No cinema da meia-noite, para não perder enfim o filme tantas vezes perdido?


Tanta gente, tantos lugares; e eu em todos imagino o meu gesto com o cachimbo na mão. Imagino e vejo. E vejo o cachimbo, abandonado. Como se em todos os lados tivesse deixado o meu cisne negro, companheiro leal.


Ninguém tem nada com isto, bem sei.


Todavia, agora, noite alta, cismo quantos e diferentes lugares e espaços frequentei num dia banal, frequentei, estive, vivi, existi, para estar, existir. Odisseia em ponto pequeno. Sobre isso James Joyce escreveu um grande romance. Em vez de Lisboa, Dublin. Tanto faz.


Ele, um grande romance. Eu, esta pobre nota; na origem, porém, a mesma violenta vertigem da vida inominável.

Jorge Listopad em Fruta Tocada por Falta de Jardineiro

domingo, 27 de fevereiro de 2022

POSTAIS SEM SELO


 Um fumador de cachimbo nunca está só.

sábado, 28 de março de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS



Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram publicados.

IRISH OAK


Tanto quanto me lembro comecei a fumar cachimbo pelos meus quinze anos.

Por curiosidade, por uma qualquer maneira de querer ser diferente, diferente dos que fumavam cigarros. Hoje fumo cachimbo por prazer. Fumar cachimbo é uma maneira de estar, filosófica, assim como acariciar gatos. Cada vez que pego num cachimbo para o fumar, sinto sempre a tal diferença.

As minhas primeiras marcas de tabaco foram os incontornáveis “Mayflower”, o “Clan” o “Gama”. Mais tarde fixei-me no “Revelation”, um agradável “Smoking Mixture” da Philip Morris e que nos pacotes em lugar do estúpido “Fumar Mata” tinha “it’s mild and mellow”. Nos finais dos anos 70 deixaram de o fabricar e mais tarde descobri o “Captain Black”.

Conheci-o através do agente da "Aminter" em Ponta Delgada. Na primeira vez que apareceu no escritório deixou um inebriante perfume, que mais tarde o Paulo Rodrigues definiu como sabor a caramelo. Na altura não se vendia em Lisboa, mas o Nascimento lembrou-se que tinha um cunhado a trabalhar da Base aérea das Lajes e passei a receber latas de meio quilo de “Captain Black” a um preço “five Stars”. Entretanto passou a vender-se em Lisboa.

Um dia ao ler um livro do Jorge Listopad dei com uma marca de tabaco de cachimbo que ele achava muito bom, mas, lamentava-se, que só se vendia nos "free shops "dos aeroportos.

Como o Miguel viaja muito, pedi-lhe que me tentasse arranjar uma embalagem.

Nunca o encontrou, nem em Paris, nem nas "free shops” dos diversos aeroportos por onde passava.

Mas um dia surpreendeu-me com um saquinho com três latas de “Irish Oak”.

Tinha-o descoberto numa pequena loja de tabacos em Bruxelas, junto à estação de caminhos de ferro.

Pode ser que ele, um dia, se disponibilize, para nos contar, aqui, os pormenores.

Há um bom par de anos, em conversa com o Miguel Alves, lamentava-se das suas cada vez maiores dificuldades em comprar “Captian Black” em Lisboa. Disse-lhe que, depois do encerramento das tabacarias no Rossio, passei a comprá-lo numa loja do Centro Comercial Vasco da Gama.

Aproveitei para lhe contar a história com o “Irish Oak” e falar do Jorge Listopad.

A história chama-se “Pernoitar” e encontra-se no livro Em Chinatown com a Rosa:

É esta a história:

«Emergiu da noite, não, eram dois, sim, emergiram da noite, mas como se ela não existisse, até àquele momento eu estava sentado sozinho na esplanada com as cadeiras empilhadas e arrumadas, a noite e ninguém, estava sentado numa cadeira branca de abrir e fechar, a única que não fora presa pela corrente, fumava cachimbo, “Irish Oak”, o tabaco que outrora Graham Greene me mandara com um cachimbo “Peterson”, uma oferta por tê-lo acompanhado, eu ou a Clara ou nós os dois, pela cidade ainda alvoroçada, por tê-lo apresentado às novas personalidades, ter-lhe aberto as portas das instituições e dos clubes revolucionários, habituei-me ao “Irish Oak” nem sempre fácil de arranjar, nem mesmo no “free shop” dos aeroportos, estou sentado e penso tabaco, tabaco, o fumar divino, paz e sossego, stop, Virgem Maria, arco do céu, se eu quisesse ouviria o mar, as gaivotas estão a dormir, eis senão quando emergiu da noite à noite, mas afinal eram dois, ele sentou-se no muro e disse boa noite, o que em Portugal não significa que se vá dormir já, mas algo como noite acordada e que seja boa, que a vida continue na escuridão.
Interromperam o meu fluxo silencioso de palavras e o navegar em ideias aproximadamente formadas pelas palavras, tal como agora interrompi a frase anterior que não tinha fim. Cumprimentei-o, pois, com essa mesma boa noite à portuguesa, procurei e no bolso encontro o isqueiro e esperei, esperei enquanto aguardava. Sentou-se no muro. Ela ficou ao pé, afastou-se. O cachimbo era excelente, embora seja evidente que um cachimbo aceso pela segunda vez deixa de ser tão cheiroso e saboroso. “Irish Oak”. Na tampa da caixinha redonda de lata um carvalho verde, um quadro que no escuro tem de ser imaginado. Ao longe as luzes baças de um barco de pescadores. A oscilarem no ar incerto. Como numa narrativa.
- Rouba-se muito por aqui, aventurou ele.
- Onde, aqui?
- Em Portugal.
Era uma frase muito sintética. Inusitadamente sintética. Eu não estava acostumado a isso.
- Fui seu aluno, senhor professor, disse depois.
No dia anterior eu tinha estado com os pescadores. Tinha percebido que toda a pesca é um conflito. Com o mar, com as redes, com a organização do próprio trabalho, com o sistema da entreajuda.
- Professor de quê? Perguntei baixinho, devagar, sem quase ter perguntado. Algures, alguém pôs uma motocicleta em marcha.
- Foi há muito tempo.
Ninguém me dirá nada de novo, afirmou Zaratustra. Não quero ouvir nada de novo, eu. Mas quem é o eu?. Quem é Zaratustra? Cada dia nos aproxima mais. Mas aproxima de quem? De quê?
Não tinham onde dormir. Dormiram no meu quartinho. Coisas que se curam, que não se curam. Eu tinha tempo. O tempo ainda me pertencia.»

Texto publicado em 28 de Fevereiro de 2010

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

NÃO PENSAR EM NADA


Não respondi. Voltei a acender o cachimbo. Faz-nos parecer pensativos quando não estamos a pensar em nada.

Raymond Chandler em Perdeu-se Uma Mulher

Legenda: Greta Garbo

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

CACHIMBO


Perdi-o. E gostei tanto desse cisne negro, companheiro Leal dos bons e maus momentos. Não foi a primeira vez que perdi um cachimbo, mas a última é sempre mais dolorosa.

Perdi, não sei onde.


Dir-se-á que o facto não interessa a ninguém. De acordo.


Todavia, noite alta, tento relembrar os lugares onde o podia ter deixado. No transporte? No café? No jornal onde deixei o meu escrito numa correria para o emprego? No emprego? Em que andar de que reunião? Ou foi depois, ao almoço de peixe grelhado naquela tasca (que o pretende ser), ou quando dei um salto ao correio? Teria sido na sala de montagem onde estive a trabalhar, cheia de filmes, de coladeiras, entradas, saídas? No Conservatório, à noite? Talvez na Secretaria onde tive de preencher um papel selado? Na leitaria do bairro Alto onde bebi uma coca entre duas aulas? No cinema da meia-noite, para não perder enfim o filme tantas vezes perdido?


Tanta gente, tantos lugares; e eu em todos imagino o meu gesto com o cachimbo na mão. Imagino e vejo. E vejo o cachimbo, abandonado. Como se em todos os lados tivesse deixado o meu cisne negro, companheiro leal.


Ninguém tem nada com isto, bem sei.


Todavia, agora, noite alta, cismo quantos e diferentes lugares e espaços frequentei num dia banal, frequentei, estive, vivi, existi, para estar, existir. Odisseia em ponto pequeno. Sobre isso James Joyce escreveu um grande romance. Em vez de Lisboa, Dublin. Tanto faz.


Ele, um grande romance. Eu, esta pobre nota; na origem, porém, a mesma violenta vertigem da vida inominável.

Jorge Listopad de Secos &Molhados em Fruta Tocada por Falta de Jardineiro

sexta-feira, 24 de maio de 2019

DA MEMÓRIA DE UM LARGO E DOS FUMOS QUE DEIXOU DE FREQUENTAR...


Na meia dúzia de blogues em que, com mais assiduidade, vai viajando, há um que frequenta desde tempos bem recuados: o Largo da Memória de Luís Eme, jornalista, escritor e guardador das margens do Tejo.

Começou pelo agrado das fotografias e acabou a gostar do que lá por se escrevia.

Quando fumava cachimbo, cigarrilhas e charutos, gostou de ter lido no Largo esta pérola. 

Não por picuinhice, mas por um certo rigor, lamenta ter perdido a data em que foi escrita:

«Nunca tinha ouvido um elogio tão forte e sentido, a um não fumador activo, pelos frequentadores do seu escritório.

Embora ele nunca fumasse, nunca proibiu ninguém de fumar no seu espaço de trabalho e local de abrigo e de escrita, nem mesmo depois das proibições oficiais e da "publicidade assassina" nos maços de cigarro.


Depois de escutar os amigos, quase sem jeito, desculpou-se que sempre gostou do cheiro do tabaco.


Mas do que ele gosta muito, muito mais do que do cheiro do tabaco, é da liberdade.»

Esse inebriante cheiro da liberdade.

Os fumos, os gins...

Rigorosas instruções médicas, não lhe permitem fumar o cachimbo, as cigarrilhas, os charutos. 

Tem dias, não muitos, em que não consegue resistir…

O Gainsbourg tem uma canção em que diz que Deus é um fumador de Havanos e o Eça de Queiroz em AIlustre Casa de Ramires tem esta tirada:

«Mas reparando que escolhera um charuto, distraidamente o trincara:
- Oh! Perdão, minha senhora… ia fumar sem saber se V. Exª…
Ela saudou descendo as longas pestanas:
- O cavalheiro pode fumar; o Sanches não fuma, mas eu até aprecio o cheiro»

O cheiro do charuto incomodava a mulher de Groucho Marx.
Um dia disse-lhe:
- Ou eu os charutos!...
- Então ficamos bons amigos!

Legenda: Edward G. Robinson no filme Key Largo, um delicioso filme negro de John Huston

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

SE EU AINDA FUMASSE...


Terei de dizer uma vez mais, hei-de dizê-lo sempre, que nenhum partido de Esquerda percebeu (ou terá querido perceber), para além dos discur­sos, dos comícios, das entrevistas à Imprensa, não me interessa isso agora, que uma nação secular­mente mergulhada na mais completa ignorância das suas próprias carências (que não são só pão e casa, e mesmo para ter o pão, para ter a casa), exi­gia, antes de tudo, sabem o quê?, ensino. Ensino, no sentido mais vasto e profundo da palavra. Tão vasto e tão profundo que a tarefa imensa de pôr milhões a saber ler e escrever (mas que é ler?, mas que é escrever?) mais não seria que um ponto de partida. Em todas as idades. Em todos os recantos desta terra de milagres, crenças e crendices, de faz como vires fazer. Ensino para que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos, a entender também que nunca é por acaso que se volta a falar, com redobrada insistência, nas suas glórias passadas — no largo Oceano ou nos palcos de revista —, como manda a receita dos bons tempos. Que os funâmbulos estão aí. À espe­ra. As ordens. Não é outra a sua profissão.
 Se eu ainda fumasse. Carregava um cachimbo como os sabia carregar depois de tantos anos de experiência, com pressões diferentes consoante a fundura a que o tabaco vai ficando. Um desses de fornilho alto, boca estreita, boquilha bem compri­da, o fumo chega assim mais frio, mais leve, des­perta o pensamento, dá-lhe asas. Estou olhando à minha volta e em mim mesmo. Que é isto, rapa­zinho? Desconforto? Apreensão?
 Caminhamos para onde? Para a destruição total, aqui e no Planeta inteiro? Ou, computadorizadamente, para um mundo inteiramente novo (novas linguagens, novos sentimentos) que não posso, e isso me desespera, prever sequer como será?
 Desprezível, entretanto, me parece o sorriso fe­liz dos que, no meio da tempestade e das matas em chamas, fingem não dar por elas. Há os que igno­ram (a fome, a poluição, a droga, a sida, o trabalho de menores à vista de toda a gente, a subversão da democracia democraticamente feita por dentro em nome dela, a agressividade, a ameaça nuclear), há os que simulam ignorar. Em qualquer dos casos: desprezível. Nisto insisto. É preciso insistir. Um antiquíssimo espelho põe-se-me na frente: É preci­so? Essa é boa! É preciso? Ou serás mesmo incu­rável?
 E, no entanto, tímidas esperanças se aproximam (sou incurável, sim, não deixarei de sê-lo!): certos aspectos do poder local, um alegre formigar de ac­tividades culturais de jovens que se alarga, de den­tro, por esse país fora e que era impossível antes, não esquecer: e que era impossível antes.
Tem de existir um grande desencontro entre o que escrevo e o que escrevem muitos dos meus contemporâneos. Gosto pouco, em geral, do que eles escrevem. Eles não devem gostar nada do que escrevo. Estamos quites, assim. Boa viagem. Sem ressentimentos.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: fotografia tirada de Autobiografia

domingo, 4 de março de 2018

NÃO ME CONTES ONDE ESTÁ O MEU CACHIMBO...



Ainda pelo Brasil, a 30 de Abril de 1963, Mário-Henrique escreve à «distante Maruska, doce como o olhar das gazelas do Volga»:

Fazes o favor de não me escreveres mais como escreveste na tua última carta, sim? Já viste um cão vadio e magro que rosna e morde constantemente, quando lhe fazem uma festa na cabeça? Fica com uns olhos muito humildes e encosta-se à perna de quem, finalmente, lhe deu um pouco de ternura. Pois é Isabel, foi como eu fiquei quando recebi a tua carta… só me faltou dar ao rabo. E olha, Isabelinha querida, ternura e amizade são coisas dolorosas demais quando se está totalmente só. por favor, não tenhas mais palavras de ternura para mim, não digas outra vez que eu sou o amigo que te resta, não me contes onde está o meu cachimbo e o teu isqueiro (e foi tão doce saber que alguma coisa resta de mim numa casa onde há amor e felicidade!...) Desculpa isto, mas estou quase estoirado e não quero ter que ficar com os olhos com uma nuvem de água ao sentir o teu carinho distante. É uma vergonha, Beliska, é uma vergonha chorar de saudade. Não pode ser… Isabel, é tão difícil continuar assim, vivo e vazio, com tudo perdido, cada vez mais perdido! Tenho que acreditar furiosamente no Partido, no meu Partido, para poder continuar. Um comunista não se mata, não pode matar-se, senão é um traidor. Mas passar os dias agarrado a uma ideia, só a uma ideia, para poder continuar vivo, é difícil, muito difícil. Há sempre o recurso do whisky e do brandy, que isso o Partido não proíbe. Quase todos os dias (isto é, todas as noites) apanho a minha sólida bebedeira, assim, às vezes até consigo dormir.

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

Legenda: imagem de René Magritte

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

POSTAIS SEM SELO


Começou a encher o cachimbo com aquele vagar metódico que era já parte do prazer duma cachimbada.

Nuno Bragança em Do Fim do Mundo

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

OLHARES


Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo.

David Mourão-Ferreira 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

IRISH OAK


Tanto quanto me lembro comecei a fumar cachimbo pelos meus quinze anos.

Por curiosidade, por uma qualquer maneira de querer ser diferente, diferente dos que fumavam cigarros. Hoje fumo cachimbo por prazer. Fumar cachimbo é uma maneira de estar, filosófica, assim como acariciar gatos. Cada vez que pego num cachimbo para o fumar sinto sempre a tal diferença.

As minhas primeiras marcas de tabaco foram os incontornáveis “Mayflower”, o “Clan” o “Gama”. Mais tarde fixei-me no “Revelation”, um agradável “Smoking Mixture” da Philip Morris e que nos pacotes em lugar do estúpido “Fumar Mata” tinha “it’s mild and mellow”. Nos finais dos anos 70 deixaram de o fabricar e mais tarde descobri o “Captain Black”.

Conheci-o através do agente da "Aminter" em Ponta Delgada. Na primeira vez que apareceu no escritório deixou um inebriante perfume, que mais tarde o Paulo Rodrigues definiu como sabor a caramelo. Na altura não se vendia em Lisboa, mas o Nascimento lembrou-se que tinha um cunhado a trabalhar da Base aérea das Lajes e passei a receber latas de meio quilo de “Captain Black” a um preço “five Stars”. Entretanto passou a vender-se em Lisboa.

Um dia ao ler um livro do Jorge Listopad dei com uma marca de tabaco de cachimbo que ele achava muito bom, mas , lamentava-se, que só se vendia nos "free shops "dos aeroportos.

Como o Miguel viaja muito, pedi-lhe que me tentasse arranjar uma embalagem.

Nunca o encontrou, nem em Paris, nem nas "free shops dos" diversos aeroportos por onde passava.

Mas um dia surpreendeu-me com um saquinho com três latas de “Irish Oak”.

Tinha-o descoberto numa pequena loja de tabacos em Bruxelas, junto à estação de caminhos de ferro.

Pode ser que ele, um dia, se disponibilze, para nos contar, aqui, os pormenores.

Há um bom par de anos, em conversa com o Miguel Alves, lamentava-se das suas cada vez maiores dificuldades em comprar “Captian Black” em Lisboa. Disse-lhe que, depois do encerramento das tabacarias no Rossio, passei a comprá-lo numa loja do Centro Comercial Vasco da Gama.

Aproveitei para lhe contar a história com o “Irish Oak” e falar do Jorge Listopad.

A história chama-se “Pernoitar” e encontra-se no livro “Em Chinatown com a Rosa"

É esta a história:

“Emergiu da noite, não, eram dois, sim, emergiram da noite, mas como se ela não existisse, até àquele momento eu estava sentado sozinho na esplanada com as cadeiras empilhadas e arrumadas, a noite e ninguém, estava sentado numa cadeira branca de abrir e fechar, a única que não fora presa pela corrente, fumava cachimbo, “Irish Oak”, o tabaco que outrora Graham Greene me mandara com um cachimbo “Peterson”, uma oferta por tê-lo acompanhado, eu ou a Clara ou nós os dois, pela cidade ainda alvoroçada, por tê-lo apresentado às novas personalidades, ter-lhe aberto as portas das instituições e dos clubes revolucionários, habituei-me ao “Irish Oak” nem sempre fácil de arranjar, nem mesmo no “free shop” dos aeroportos, estou sentado e penso tabaco, tabaco, o fumar divino, paz e sossego, stop, Virgem Maria, arco do céu, se eu quisesse ouviria o mar, as gaivotas estão a dormir, eis senão quando emergiu da noite à noite, mas afinal eram dois, ele sentou-se no muro e disse boa noite, o que em Portugal não significa que se vá dormir já, mas algo como noite acordada e que seja boa, que a vida continue na escuridão.
Interromperam o meu fluxo silencioso de palavras e o navegar em ideias aproximadamente formadas pelas palavras, tal como agora interrompi a frase anterior que não tinha fim. Cumprimentei-o, pois, com essa mesma boa noite à portuguesa, procurei e no bolso encontro o isqueiro e esperei, esperei enquanto aguardava. Sentou-se no muro. Ela ficou ao pé, afastou-se. O cachimbo era excelente, embora seja evidente que um cachimbo aceso pela segunda vez deixa de ser tão cheiroso e saboroso. “Irish Oak”. Na tampa da caixinha redonda de lata um carvalho verde, um quadro que no escuro tem de ser imaginado. Ao longe as luzes baças de um barco de pescadores. A oscilarem no ar incerto. Como numa narrativa.
- Rouba-se muito por aqui, aventurou ele.
- Onde, aqui?
- Em Portugal.
Era uma frase muito sintética. Inusitadamente sintética. Eu não estava acostumado a isso.
- Fui seu aluno, senhor professor, disse depois.
No dia anterior eu tinha estado com os pescadores. Tinha percebido que toda a pesca é um conflito. Com o mar, com as redes, com a organização do próprio trabalho, com o sistema da entreajuda.
- Professor de quê? Perguntei baixinho, devagar, sem quase ter perguntado. Algures, alguém pôs uma motocicleta em marcha.
- Foi há muito tempo.
Ninguém me dirá nada de novo, afirmou Zaratustra. Não quero ouvir nada de novo, eu. Mas quem é o eu?. Quem é Zaratustra? Cada dia nos aproxima mais. Mas aproxima de quem? De quê?
Não tinham onde dormir. Dormiram no meu quartinho. Coisas que se curam, que não se curam. Eu tinha tempo. O tempo ainda me pertencia.”