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domingo, 18 de fevereiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


 Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

A Pátria não se discute: defende-se ,diziam os inqualificáveis, por tudo e mais alguma coisa, deputados da assembleia nacional  e todos os defensores da ratazana de Santa Comba.

Uma guerra colonial  sem sentido, cruel, inútil.

- 820 mil jovens terão sido mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique.

- 14 mil mortos.

- 40 mil estropiados e deficientes.

- 140 mil antigos combatentes sofrem de “stress” de guerra.

Sabemos destes números.

Estarão estes números correctos?

No seu livro Memórias das Guerras Coloniais, João Paulo Guerra escreveu: não há estatísticas para a solidão, a ansiedade, o medo, o sofrimento, a dor.

As dolorosas despedidas dos barcos na Rocha de Conde d’Óbidos.

«Ponho-me a pensar. Ou por outra, não penso peva: vou; e é chato.

Ir assim de charola é a cabronada mais miserável que se pode fazer»

Fernando Assis Pacheco em  Walt

Há feridas que custam a cicatrizar, mas não podemos admitir o silêncio.

«Adeus até ao meu regresso


Se se lembram, não nos obriguem a esquecer.

A imagem no topo mostra um anúncio que o ultra-salazarista  Francisco Casal-Ribeiro fez publicar no dia 5 de Agosto de 1967 no Jornal do Oeste:

«Tenho três filhos, qualquer deles a atingir o momento de servir a Pátria.

Um deles é alferes piloto aviador, em vésperas de partir para África. São os meus três filhos o meu único tesouro, e se é certo que sentirei, como qualquer outro pai, a sua ausência, orgulhar-me-ei de os ver no cumprimento da missão que lhes couber. Para eles, apenas pedirei a Deus que os proteja, os traga em boa hora e com a consciência do dever cumprido».

Este mesmo deputado, um verdadeiro escroque, ou ainda muito pior, da clique salazarista/caetanista, na assembleia nacional perguntava a Mota Amaral, integrante da ala liberal, que teria dito que Portugal estava numa guerra que pode perder e que a questão era política:

 «Eu bem sei que V. Exa. é muito novo. Ó Sr. Deputado, desculpe, que idade tem?
O Orador [Mota Amaral]: – Tenho trinta anos.
O Sr. Casal-Ribeiro: – O Sr. Deputado fez serviço militar?
O Orador: – Cumpri todas as minhas obrigações militares, Sr. Deputado.
O Sr. Casal-Ribeiro: – E o Sr. Deputado foi à África?
O Orador: – Não estive na África.
O Sr. Casal-Ribeiro: – Ai que pena! Ai que pena!»

Repito: Ai que pena! Ai que pena!»

Dramaticamente miserável!

Por hoje, nada mais se adianta.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL

 


  Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                 João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

O recorte de hoje pertence ao jornal República de 14 de Julho de 1972.

O poeta Fernando Assis Pacheco ofereceu ao autor um exemplar de Câu Kiên: um resumo e o autor demonstra a sua felicidade. 

Pela oferta e pela excelência da obra.

O mundo nunca deixou de viver sem a infernal presença da guerra.

Nunca.

Aquela guerra tinha nomes e lugares de outra parte do mundo.

O poeta era português, queria colocar os nomes das terras e das gentes,  mas existiam censores-analfabetos.

O poeta era Fernando Assis Pacheco.

Em Maio de 1972 chamou ao livrinho: «CÂU KIÊN: UM RESUMO».

Em Maio de 1976, finalmente, chamou ao livrinho: «CATALABANZA QUILOLO E VOLTA.»

Neste último livrinho, o poeta escreveu:

«Catalabalanza Quilolo e Volta é basicamente a versão original de um título que publiquei em Maio de 1972, Câu Kiên: um resumo, tirado a 500 exemplares para ofertas.

A toponímia vietnamita, e outros disfarces de circunstância, não têm razão de ser. Reposto o texto tal como era, junto agora alguns poemas, todas da mesma época e quase todos considerados para o Câu Kiên, mas então eliminados.

Catabalanza vai dedicado a João Cabral de Andrade, um amigo morto em Angola.

                                                                                                    F.A.P.»

Tanto em Cãu Kiên, como em Catabalanza, Quilolo as palavras são as mesmas.

 

Monólogo e Explicação.

 

Mas não puxei atrás a culatra,

não limpei o óleo do cano,

dizem que a guerra mata: a minha

desfez-me logo à chegada.

 

Não houve pois cercos, balas

que demovessem este forçado.

Viram-no à mesa com grandes livros,

com grandes copos, grandes mãos aterradas.

 

Viram-no mijar à noite nas tábuas

ou nas poucas ervas meio rapadas.

Olhar os morros, como se entendesse

o seu torpor de terra plácida.

 

Folheando uns papéis que sobraram

lembra-se agora de haver muito frio.

Dizem que a guerra passa: esta minha

passou-me para os ossos e não sai.


Fernando Assis Pacheco


 Os versos finais deste poema do Assis Pacheco são, mais ou menos, a frase de António Lobo Antunes deixada, ontem, no Postal Sem Selo:

«Pode esquecer-se a guerra, mas ela não nos esquece. Deu cabo da nossa juventude e há-de dar cabo da nossa velhice».

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

VIAGENS POR ABRIL


                                                  Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                          João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 

Pequena viagem por alguns livros que retratam a vida sombria que os portugueses viviam antes do 25 de Abril:

1.

«Entre 1904 e 1914, entre os vinte e os trinta anos, tinha viajado por toda a Europa, durante as férias universitárias, para completar a sua educação, segundo o desejo do seu pai. Um Verão, quando voltava de Londres, ao ir embarcar em Valência para Nápoles, tinha passado por Portugal. Tinha posto a si mesmo mil perguntas sobre o declínio dessa nação cujo império se tinha estendido à volta do Globo. Tinha conhecido escritores que não escreviam para ninguém; homens políticos que governavam para os Ingleses; homens de negócios que liquidavam os seus estabelecimentos do Brasil e viviam de pequenas rendas, em cidades de província, sem finalidade. Ele tinha pensado que era a pior das infelicidades nascer Português. Em Lisboa, pela primeira vez na vida, tinha-se encontrado com um povo que se tinha desinteressado.» 

Roger Vailland em A Lei

2.

«Não há mais que silêncio em toda esta cidade. Silêncio e fome. Acabo de percorrer toda a Rua do Ouro e a Rua Augusta e reparei que ninguém falava. As pessoas cruzam-se em silêncio, e mesmo que se conheçam não se cumprimentam.»

Reynaldo Arenas em O Mundo Alucinante

3.

«Estamos catalogados, estamos empalhados dentro de uma redoma de vidro, mergulhados num frasco com álcool, isolados de tudo e com um rótulo debaixo dos pés. O rótulo puseram-no os outros; nós consentimos, acomodámo-nos e vamos vivendo com ele. Mas tudo pode desfazer-se dum momento para o outro. Sei o que fui, sei ainda o que sou. Mas tal não contribui em nada para o que serei. Um só gesto e os outros vêm ao museu onde estamos embalsamados, arrancam-nos o rótulo, não querem mais saber de nós, dizem que traímos. O que fomos? O que ainda ontem fomos? Os gestos que fizemos? Não. Não querem saber, Podem ter sido gestos da mais espantosa pureza, que em nada contribuem para que os outros nos perdoem. Pelo contrário. Esses gestos, pela sua própria beleza, mais ainda nos condenam, mais ainda nos enterram.»

Augusto Abelaira em A Cidade das Flores

4.

«Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro, na minha carne e no meu espírito, o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem — físicas, económicas, profissionais, intelectuais, morais. Mas, que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo. O fascismo é o fim da pré-história do homem. E procede, por isso, como um gangster encurralado. Fiz o que pude para me libertar, e aos outros, dele. É essa a única herança que deixo aos meus Filhos e aos meus Companheiros. Acabem a obra! Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo, mas promovam-no cientificamente, sem dogmatismos sectários, sem radicalismos pequeno-burgueses! Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!»

Mário Sacramento em Carta-Testamento 

5. 

«Nesse mesmo dia o Tinoco deu ordem à mulher-pide que não me deixasse ir à casa de banho enquanto eu não falasse e que as minhas necessidades eram feitas ali mesmo na frente deles e limpas com a minha roupa.

Foi-me novamente perguntado de não falava. Garantiram-me que ia ficar nua e que depois iam entrar os cavalheiros e sair as senhoras. Perante a minha negativa a pide Madalena começou aos pontapés e a bater-me enquanto me despia. Surge então um pide com uma máquina fotográfica. O Serra dava-me murros no queixo para eu levantar a cabeça. Tinha alucinações, não conseguia manter-me de pé.

Maria da Conceição Matos Abrantes

6

Diz-lhes que se resiste na cidade desfigurada por feridas de granadas e enquanto a água e os víveres escasseiam aumenta a raiva e a esperança reproduz-se.»

Egito Gonçalves em Notícias do Bloqueio

7.

Como hei-de amar serenamente com tantos amigos na prisão.

Fernando Assis Pacheco

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

CONVERSANDO


O escritor André Gide escreveu:

«Quando já não me indignar terei começado a envelhecer».

Em 1963, quase clandestinamente, o poeta Fernando Assis Pacheco editou, ao cuidado da revista coimbrã Vértice, o livro de poemas a que chamou Cuidar dos Vivos.

No primeiro verso do poema Poeta no Supermercado, gritava:

«Indignar-me é o meu signo diário».

E quando o primeiro verso de um poema é um grito como este, estamos conversados e também tempo para recordar o poema:

1

Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.


Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte…
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2

Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.


Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.


Cheio de luz — como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.
Palavra, um homem tem que ser

 
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

LIVRARIA OPINIÃO


 Fernando Assis Pacheco, num velho artigo em O Jornal tem uma crónica-reportagem a que chamou. «Um porta-aviões chamado Opinião».

E adiantava:

«Quem chamou porta-aviões à Opinião foi o Hipólito Clemente, 33 anos, livreiro, poeta de livro publicado, pintor que do gosto em ler entende que ser vendedor de livros é tão ou mais bonito.»

 A livraria «Opinião» encontrava-se nas traseiras do edifício do «República», mais concretamente as janelas e porta da tipografia do jornal davam para a Livraria, e o que por lá acontecia, os amigos e clientes que recebia, a apresentação de livros, exposições, colóquios  era um dos desesperos diários da PIDE. Visitas constantes para «verem» os livros fora do mercado que por lá apareciam sem se saber bem como. No dia 25 de Abril, quando Salgueiro Maia colocou as chaimites e a tropa frente ao Quartel do Carmo, na «Opinião» podia ver-se uma exposição de desenhos de Renato Cruz, então exilado em França.

Oitenta personagens onde pontificavam escritores, jornalistas, pintores, advogados, etc., animados de tudo e mais alguma coisa, excepto cifrões, inventaram a «Opinião» -livraria, discoteca, bar, ponto de reunião.

No Jornalde Crítica de 22 de Outubro de 1971,  sai o primeiro aviso de que brevemente iríamos ter Opinião.


Outras partes do filme:



Os passos que marcam o nascimento da Livraia Opinião estão rodeados de diversas peripécias e dificuldades que foram atrasando a sua abertura. Uma delas regista que o engano nas medidas de algumas das estantes levaram a que essas estantes fossem, a um excelente preço, colocadas à venda. Sei do que falo. Comprei uma dessas estantes por mil escudos, excelente madeira, acabamentos de primor e após 52 anos, apesar do peso dos livros, as prateleiras mantÉm o mesmo nível. 


No dia de 3 Dezembro podia ler-se que finalmente iríamos ter Opinião.


Na  véspera de Natal o Jornal de Crítica colocava o anúncio que a Livraria Opinião, finalmente, abrira as suas portas na Rua Nova da Trindade nº 24. Um bar no topo do edifício era a cereja no topo do bolo.

E a Opinião que conseguira lutar contra a censura pidesca encontrou situações insustentáveis após o 25 de Abril.  O capital era reduzido, as dívidas foram-se acumulando, os livros tornaram-se objectos de luxo.  Houve meses em que o dinheiro não chegava sequer para os salários e eram necessários dois mil contos que não foram possíveis arranjar e a Banca só emprestava dinheiro a quem o tem ou possa oferecer uma garantia,  e Não havia.

Num dos seus bookcionários, Fernando Assis Pacheco resumia a situação:  

Corria o ano de 1980 quando deixámos de ter a Opinião. 

Mais tarde, no mesmo local, imagem no topo do texto, instalou-se a Editorial Cotovia. 

Em Novembro de 2020 a Cotovia fechou portas. 

Hoje, não sei o que está no espaço que foi da Opinião e da Cotovia.

Terei, um destes dias, de dar corda aos sapatos  e depois dar notícias.

domingo, 12 de fevereiro de 2023

VELHOS RECORTES


Tanto quanto possa saber, as crónicas que o Fernando Assis Pacheco escreveu nos anos 60 no Diário de Lisboa. Por esse tempo nesse jornal todos os redactores , na página 3, escreviam  uma crónica, crónicas lindíssimas de um quotidiano cinzento e triste.

A editora Prelo, em 1968, publicou O Homem Na Cidade, com um prefácio de Mário Sacramento, que reúne algumas crónicas do Diário de Lisboa escritas pelo Pedro Alvim, Manuel de Azevedo, Manuel Beça,  Mário Castrim, Félix Correia, Joaquim Letria, Torquato da Luz, Luís d’Oliveira Nunes, Fernando Assis Pacheco, José Carlos de Vasconcelos.

Esta do Assis Pacheco, que encontrei num velho e desconjuntado dossier, não está em O Homem Na Cidade.

Mas é bonita de ternurenta, daqueles quotidianos cinzentos e tristes. 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

O ACASO DE UNS VERSINHOS DO ASSIS PACHECO

Estes versos do Fernando Assis Pacheco, reencontrados no poema Bah! Da Respiração Assistida, poderiam ter sido escritos por mim se acaso o talento passeasse por aqui:

                               Fora os livros não vejo

                               muita outra coisa

                               que possa chamar

                               minha propriedade

Tanto o meu avô, como depois o meu pai, poderiam ter escrito estes mesmos versos.

Uma família sem nada de seu, sem um pontinho que seja de  simpatia pelos capitalismos.

Livros e mais livros. 

Como escreveu o Jorge Silva Melo:

«E é isso mesmo esta biblioteca simples, tanto livro onde ainda vejo as mãos ansiosas folheando, os olhos ávidos, as vozes contando. E não há nada mais lindo do que sentir as sombras da vida sobre as páginas amarelecidas, sombras de vida, de dor e luz.» 

sábado, 18 de junho de 2022

BABII YAR

Não há lápides sobre o Babii Iar.

Uma escarpa íngreme

                                   serve de rude sepultura.

Para mim é terrível.

                                   Tenho hoje tantos anos

como o próprio povo hebreu.

Parece-me até –

                                    Que sou judeu.

Eis-me a delirar pelo Egipto antigo.

Aí estou –

                                     pregado numa cruz,

                                                                        agonizante,

e ainda sinto no corpo a marca dos pregos.

Parece-me que Dreyfus –

                                     sou eu.

A pequena burguesia é o meu denunciador e juiz.

Fiquei desorientado.

                                     Caí no laço.

Perseguido,

                    escarrado,   

                                       caluniado.

E as donzelas de vestido de renda

gritam

                     e batem-me no rosto com as sombrinhas.

Parece-me que sou –

                                    um garoto de Bielostok.

O sangue corre, derrama-se pelo chão.

Enfurecem-se os donos das tabernas

e cheiram a vodka com cebola.

Corrido a pontapé, fico exangue.

Em vão

              suplico aos organizadores de «pogroms».

Com o grito «Dá aos judeus, salva a Rússia!»

um  tendeiro espanca minha mãe.

Parece-me que sou –

                                    Anne Frank,

transparente como um ramo em Abril.

E amo.

             E não precisos de grandes frases.

Preciso, sim, que olhemos um para o outro.

Como é difícil ver

                               e cheirar.

Não estão ao nosso alcance as folhas nem o céu.

Mas podemos realmente

                                          - e isso é terno –

abraçarmo-nos no quarto escuro.

Vem aí alguém?

                            Não tenhas medo –

                                                               é o murmúrio

da própria Primavera.

                                        Ei-la que chega.

Vem tu até mim.

                              Dá-me depressa os teus lábios.

Rebentam com a porta?

                                         Não, é o degelo.

As árvores olham ameaçadoras

                                                      como juízes.

Aqui tudo grita em silêncio.

                                                 Tiro o chapéu

e sinto-me encanecer lentamente.

E eu próprio sou

                             como um grito surdo e prolongado

por sobre milhares de mortos aqui enterrados.

Sou –

           cada velho aqui fuzilado.

Sou –

           Cada criança aqui fuzilada.

Oh, meu povo russo,

                                    eu sei que tu és

por essência internacional.

Mas muitas vezes aqueles

                                             que têm as mãos sujas

jogaram com o teu nome imaculado.

Eu conheço a bondade da minha terra.

Como é miserável

                 - e sem que lhes estremeça uma só fibra –

que os anti-semitas pomposamente se chamem

«União do Povo Russo».

Nada em mim se esquecerá disto.

Que atroe os ares

                               a «Internacional»

quando para sempre baixar à cova

o último anti-semita da Terra.

Não há sangue hebraico no meu sangue.

Mas sou odiado com endurecida maldade

por todos os anti-semitas –

                                               como se fosse hebreu.

E é por isso –

                       que sou um russo verdadeiro.

 

Evgueni Ievtuchenko em Ievtuchenko em Lisboa

 

NOTA DO EDITOR

Babii Iar, e outros poemas, foram recitados pelo autor no Teatro Capitólio em 17 de Maio de 1967.

Os poemas, constantes do livro, editado em Junho de 1967 pelas Publicações Dom Quixote, tiveram tradução directa do russo por J. Seabra-Dinis, com a colaboração de Fernando Assis Pacheco para a versão poética final.

Depois da recitação dos poemas por Ievtuchenko, Fernando Assis Pacheco leu a respectiva tradução.

Notas dos antologiadores/tradutores para o poema Babbi Iar:

A  palavra «Pogrom», que também aparece no poema, não tem nota dos editores,  é uma palavra russa que significa "causar estragos, destruir violentamente". Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população em geral contra os judeus, tanto no império russo como em outros países.                   

domingo, 12 de julho de 2020

ETECETERA


A pandemia alastra pelo mundo, ainda há quem efusivamente se divirta, mas a esmagadora maioria tem o seu viver feito em estilhaços, outros enfrentam o frágil jogo de equilíbrio entre não se sabe bem o quê, mas não está longe de se encaminhar para trágicos desfechos.

Em França, um motorista de autocarro morreu na sexta-feira, depois de ter ficado em morte cerebral na sequência de um violento ataque por parte de passageiros, isto depois de lhes ter pedido que utilizassem máscara como medida de prevenção contra o novo coronavírus.

1.

Neste domingo, Lisboa derreteu-se de calor.

Há dias, um tipo, que cheguei a pensar estar a fazer qualquer coisa por aí, chafurdar em dinheiro, por exemplo, menos ter que o ouvir dizer barbaridades, Durão Barroso de seu nome, um tempão decorrido, 100 mil mortos e tudo o resto que é muito, assumiu que a realização da Cimeira das Lages, e o apoio à invasão do Iraque pelos Estados Unidos, foi um erro, e ainda deu para nos dizer que não foi esse apoio que o levou a ser presidente da Europa.

O Expresso, numa das suas primeiras páginas, informava que a sociedade de advogados SRS, liderada por Pedro Rebelo de Sousa, vai juntar-se à AAA Sociedade, de que Dulce Franco, antiga secretária do governo de Durão Barroso, é socia fundadora. Juntos serão mais fortes, pois então.

O orçamento retificativo, o último documento preparado por Mário Centeno, indica uma previsão de recessão de 6,9% do PIB este ano, com retoma para um crescimento de 4,3% em 2021. Das 263 propostas que a Oposição apresentou só passaram 35.

2.

Continua o calor infernal.

António Costa olha os tempos difíceis: Tap, Efacec, Novo Banco, parte do Partido Socialista, grande parte mesmo, a não compreender porque não apresenta um candidato do partido às presidenciais, o que levou o ministro Pedro Nuno Santos a dizer que se isso não acontecer terá que votar no candidato do BE ou do PCP, enquano os incêndios que começam a rebentar com meio mundo a dizer que nada foi feito para os prevenir e combater.

3.

Sobre o que se passa no Brasil muito pouco se sabe,  mas é certo que o COVID-19 assaltou Bolsonaro e, à data, entrou nos  1.643.539 brasileiros atacado pela tal «gripezinha». O governo investiga agora o jornalista que desejou que Bolsonaro morresse.

4.

José António Saraiva foi condenado por devassa da vida privada.

A jornalista Fernanda Câncio é uma das indemnizadas. Autor do livro "Eu e os políticos", que foi retirado do mercado por ordem judicial, foi condenado a 180 dias de multa à taxa diária de 30 euros: 5400 euros e a pagar indemnizações aos autores da queixa e assistentes no processo, a jornalista Fernanda Câncio e um seu ex-namorado no valor de 15 mil euros cada.

O  ​​​​​​livro "Eu eos Políticos - O que não pude (ou não quis) escrever até hoje", foi publicado pela Gradiva em Setembro de 2016.

José António Saraiva, que não se cansa de dizer que será um dos próximos Prémio Nobel da Literatura, ainda não disse se recorrerá da sentença.

5.

Portugal comprou pelo menos 627 mil máscaras FFP (modelos mais avançados, para uso dos profissionais de saúde em contacto com as pessoas infetadas) sem certificado de qualidade ou com um certificado de qualidade duvidoso, revelou o jornal Público. O fenómeno repetiu-se por toda a Europa, uma vez que durante a pandemia da Covid-19 a União Europeia aliviou os critérios de certificação para permitir a rápida aquisição do material necessário: nesta altura, não é obrigatório que o equipamento tenha a indicação CE (que garante o cumprimento das normas europeias), embora vendedores e compradores tenham de assegurar a qualidade das máscaras, sujeita a fiscalização.

6. 

Títulos ao acaso.

Primeira página do Público de 6 de Julho.

7.


Com 92 anos, morreu Enio Morricone, autor de inúmeras bandas sonoras, tendo trabalhado com grandes realizadores e vendido mais de 70 milões de discos.

Lisboa, Maio de 2019,  fez parte das cidades que assistiram  à digressão mundial da sua despedida dos palcos.

8.


No dia 5 de Julho morreu o realizador Alfredo Tropa. Um dos seus notáveis trabalhos para a televisão  chama-se Povo Que Canta.

Para o cinema realizou, em 1970, Pedro Só, uma adaptação sua da obra de Manuel Mendes Pedro – Romance Dum Vagabundo, em que contou com a colaboração de Fernando Assis Pacheco e Afonso Praça. As canções do filme  têm poemas de Ferando Assis Pacheco, música de Manuel Jorge Velosos e são cantadas por Manuel Freire,

domingo, 28 de junho de 2020

ANTOLOGIA DO CAIS


Para assinalar os 10 anos do CAIS DO OLHAR, os fins-de-semana estão guardados para lembrar alguns textos que por aqui foram sendo publicados.

DOMINGO NO PARQUE

Sempre entendi a Feira do Livro como uma festa.

Também oportunidade para encontrar, a bons preços, livros que já temos dificuldade em encontrar nas livrarias, por motivos que só estão ao alcance do oportunismo de editores e livreiros.

Chamam-lhes fundos de catálogo, ou lá o que é.

Neste aspecto a Relógio d’Agua, mais uma vez, dá uma banhada à concorrência.

Facilmente manuseados em caixas que mostram os respectivos preços, estão ali grandes livros, grandes autores, por preços que vão dos 3 aos 10 euros.

Sou rapaz de livros e petiscos.


Este ano a mistura é abrangente e espalhada ao longo de todo o recinto: farturas, churros, bifanas, cachorros, caracóis, gelados, cafés, ginjinha.

Espanto-me como ainda não chegaram as roulottes de sandes de coiratos.

Dêem-lhes tempo…

Como dizia: o poeta: primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Feira do Livro.

Um encontro de cheiros, sejam eles dos petiscos, dos próprios livros – sempre gostei de cheirar os livros – das flores e árvores do parque, a despedida, por este ano, dos jacarandás, um deles apanhado em pleno gozo de sol e que encima o texto.



Experimente comprar um livro e vá folheá-lo para uma das esplanadas que a feira oferece e que, resumidamente, se espraiam por aqui.

Neste ano, a Feira regista a presença de 480 editores espalhados por 240 pavilhões.

Milhares e milhares de livros que, em grande parte, não sei a que públicos se destinam, mas editam-se.

Nada melhor para encerrar o dia, que reler um velho texto que, suponho seja do Fernando Assis Pacheco:


Feira do Livro.

Pratique então você, sozinho e em segredo, a sua subversão. Faça uso do seu tempo, respire fundo, atenda aos seus sentidos, deixe-se apaixonar, ao toque, ao cheiro, por algum livro antigo, manchado por bolores de anónimos invernos. Oculto, disfarçado como um tesouro celta, enigmático e no entanto familiar, está aquele livro que você sempre quis ler ou perdeu em criança e vai encontrar por escolha sua.

Vá-o abrindo devagar, desfrute-o como um ser único que lentamente se desvenda e oferece sucessivas camadas de beleza. Confunda-se com ele, risque, comente, assinale-lhe no corpo o seu percurso. Use-o, gaste-o, comece-o outra vez. Será este um prazer de nossos avoengos a quem a vista de um tornozelo de mulher proporcionava excitações inconcebíveis e a posse de um livro, só por si, legitimava orgulhos genealógicos.

Boa Feira e bons encontros.

Texto publicado em 2 de Junho de 2017

quarta-feira, 22 de abril de 2020

ALGUÉM LHES DIRÁ O QUE SOFREMOS...


Não são razoáveis as fotografias que tirei a alguns murais que, após o 25 de Abril, apareceram na cidade, apenas ficarão como um juntar de certas memórias.

Sentado no Expresso-Bar, gin-tónico na mão, o Mário-Henrique Leiria dizia:

-Vê lá tu, que o Álvaro Guerra deixou de me falar só porque não sou do partido dele!...

Com estrondo os altos muros ruíram, olhámos o dia das surpresas.

Mas era suficiente?

Pode-se ter deixado de acreditar em coisas em que se acreditou?

 E os escolhos dos muros que ruíram?

Miguel Torga, que é escritor que nunca me provocou grandes entusiasmos, escreveu no seu Diário:

«Coimbra, 25 de Abril de 1974 – Golpe militar. Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durante os últimos macerados cinquenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam com as baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-lo? Mas pronto: de qualquer maneira, é um passo. Oxalá não seja duradoiramente de parada…»

Passados estão 46 anos.

Demasiados erros, demasiadas distracções, demasiadas ingenuidades, acabaram por mergulhar o país num mar largo de clientelismo, de partilha do poder, de corrupção, do salve-se quem puder…

Onde está o dinheiro, onde está o raio do dinheiro?

Não lhe apetecia nada rematar a prosasinha com a frase da Simone de Beauvoir, escritora que também nunca lhe provocou grandes entusiasmos, mas aí vai:
«É horrível assistir à agonia de uma esperança.»

A canção daqueles tempos que hoje ouviremos, é trazida pelo Adriano Correia de Oliveira.

Faz parte do álbum, «Cantaremos», editado em 1970.

Música do Adriano para um poema do Fernando Assis Pacheco que nos fala das razões porque então podíamos amar serenamente com tantos amigos na prisão.

«Não deveis enganar-vos: cada verso tem um selo fraterno caminhando para a branca cidade sob o sol.», deixou o poeta escrito nas o páginas interiores do álbum.



Legenda: o título é tirado de um poema de Egito Gonçalves.