O Luís Miguel Mira já nos prometeu que irá voltar
às crónicas de viagens mas, por agora, anda entretido a divulgar grandes
filmes, todas as quarta-feiras, pelas 15,30 horas na:
Nova Atena
Universidade Senior
Rua Almeida Garrett, 20
Linda-a-Velha
Na próxima quarta-feira, dia 10 de Abril, será apresentado o filme A Culpa Foi do Macaco de Howard Hawks.
A CULPA FOI DO MACACO (1952)
(Monkey Business)
Realização:
Howard Hawks
Argumento:
Ben Hecht, Charles Lederer e I.A.L. Diamond, com base numa história de Harry
Segall
Montagem:
William B. Murphy
Fotografia:
Milton Krasner
Música:
Leigh Harline e Lionel
Newman
Direção
Artística: Lyle R. Wheeler e George Patrick
Interpretação:
Cary Grant (Dr. Barnaby Fulton), Ginger Rogers (Edwina Fulton), Charles Coburn
(Oliver Oxly), Marilyn Monroe (Lois Laurel), Hugh Marlowe (Hank Entwhistle),
etc
Produção:
Sol C. Siegel, para a 20th Century Fox
Duração:
93 mn
Howard Hawks, o realizador do nosso filme de hoje,
foi um dos maiores cineastas americanos do século passado.
Entre 1926 e 1970 realizou 39 filmes, quase todos
eles com grande sucesso do público, embora não da crítica, que o ignorou
durante muito tempo.
Ao contrário de outros colegas seus que se
especializaram num determinado género cinematográfico, Hawks cultivou, com
igual mestria e sucesso, quase todos os géneros, como o Filme de Guerra, o
Filme de Aventuras, o Filme de Gangsters, o Filme Negro, a Comédia, o Western,
o Musical e o Filme Histórico.
Foi grande em todos eles e quando hoje se evocam os
melhores em cada um desses géneros cinematográficos, é certo que lá estará um
filme de Howard Hawks.
Passa-se uma coisa muito curiosa quando se comparam
os Westerns ou os Filmes de Aventuras de Hawks com as suas Comédias.
Nos primeiros estamos num universo de homens,
marcado por uma amizade viril e profunda entre todos eles e no qual as mulheres
ou estão completamente ausentes, ou, no limite, estão presentes, mas parece que
apenas para perturbar essa imensa harmonia existente no meio masculino.
Nas comédias, tudo é virado às avessas. É um mundo
em que são as mulheres quem parece comandar e ditar as regras do jogo, e os
homens, por muitos conhecimentos que tenham, são meros joguetes nas mãos delas,
sujeitos às situações mais ridículas e aos comportamentos mais infantis que
possamos imaginar, acabando não raras vezes eles próprios disfarçados de mulher
ou vestidos com roupas de mulher, como sucede no filme que hoje vamos
ver.
Se se lembrarem de “As Duas Feras”, deste mesmo
realizador, que por aqui passou há tempos, também por lá andava Cary Grant em
bolandas no meio de Katherine Hepburn e de uma pantera chamada “Baby”, a quem
também eram atribuídas muitas culpas.
No filme de hoje voltamos a ver Cary Grant (no
total fez 4 comédias e um filme de Aventuras/Aviação com Hawks), de novo
profissional altamente qualificado, de novo meio atarantado entre as mulheres e
de novo com um animal de permeio, desta vez um macaco a quem o tradutor do
filme parece atribuir todas as culpas pelas peripécias da história, embora, na
minha modesta opinião, me pareça ser aquele que nelas menos culpa tem…
Apenas mais um aviso prévio, antes de entrarmos no
filme.
Ao lermos a ficha técnica, imediatamente nos saltam
à vista os nomes dos três argumentistas, Ben Hecht, Charles Lederer e I.A.L.
Diamond, que foram dos maiores autores de comédia que passaram pelo cinema
americano. Os dois primeiros estão entre os precursores da comédia louca e
desbragada a que os americanos chamaram “screwball comedy” e o último foi o
fiel parceiro de Billy Wilder, o realizador de “Quanto Mais Quente Melhor”, em
todas as suas hilariantes comédias a partir de 1957.
Ora com “malandros” deste calibre na escrita do
argumento, uma coisa é certa: por muito simples que a história nos pareça ser,
ela terá sempre muitas pontas por onde lhe possamos pegar.
Mas já lá iremos…
O filme conta-nos um pedaço da vida do Dr. Barnaby
Fulton (Cary Grant), um investigador químico que, por conta de um laboratório
privado, procura descobrir uma espécie de “elixir da juventude”, uma poção que
permita ao Ser Humano, através de um rápido rejuvenescimento das suas células,
voltar ao que fora muitos anos antes (B-4, que se lerá “before”, é
precisamente o nome comercial que a empresa já encontrou para a tal poção ainda
por descobrir…). Para testar os efeitos das várias combinações químicas que vai
preparando, o Dr. Barnaby tem ao seu dispor, para além doutros animais de menor
porte, dois chimpanzés, um muito jovem e outro mais idoso, que mantém
enjaulados no seu próprio gabinete de trabalho.
Barnaby está de tal maneira obcecado pela sua
pesquisa que, para grande desgosto da sua mulher Edwina (Ginger Rogers), parece
desleixar em demasia não só as suas obrigações sociais, como também -
suspeitamos nós… - outras mais…
Numa ocasião em que Barnaby se ausenta
temporariamente do laboratório, o chimpanzé mais novo consegue libertar-se da
sua jaula e senta-se ao balcão de trabalho do investigador, manuseando e
misturando os vários produtos químicos nos diversos tubos de ensaio, tal como
sempre tinha observado, à distância, Barnaby fazer.
No final das suas brincadeiras, o chimpanzé resolve
deitar a mistura química que fez no depósito do distribuidor de água potável
existente no laboratório e continua por ali a fazer outras traquinices, até que
Barnaby regressa ao seu gabinete e o volta a encerrar na sua jaula, sem de nada
suspeitar.
É claro que já perceberam que, numa penada, o bom
do chimpanzé conseguiu descobrir a milagrosa fórmula que Barnaby tanto se
esforçara por encontrar. E que ninguém até ao final do filme irá perceber que é
ali, misturada com a água potável, e não nos diversos tubos de ensaio, que ela
se encontra…
Nesse mesmo dia Barnaby estava com a fezada de que
a poção que tinha preparado seria mesmo a boa, porque na véspera lhe tinha
surgido uma ideia que considerara luminosa e infalível, pelo que estava ansioso
por a testar em si próprio. “A auto-experimentação vai contra as
regras da boa investigação”, diz-lhe um dos seus Assistentes,
ao qual Barnaby responde que “a História das descobertas é feita por
quem não segue regras”, enquanto trata de beber a sua poção.
No final vai beber água ao distribuidor, para tirar
o amargo da boca, e pouco tempo depois começa a sentir os primeiros sinais de
rejuvenescimento, por obra e graça da poção do chimpanzé e não pela poção que
acabara de preparar, embora ele fique convencido que sim…
A partir daquele momento e sem fazerem a mínima
ideia que é misturada com a água que se encontra a milagrosa poção, e não nos
frascos de onde a julgam beber, várias pessoas irão beber àquele distribuidor
de água e sentirão a vida a andar para trás: Barnaby, a sua mulher, em
separado e em simultâneo, Oxly, o patrão de Barnaby, e toda a equipa de
cientistas/investigadores que com ele trabalham. Só se safou Lois,
a vistosa secretária de Oxly, que manifestamente não necessitava da poção para
nada… (Marilyn Monroe no papel de ”loira burra”, um ano antes de passar a
“loira esperta” em “Os Homens Preferem as Loiras”, do mesmo Hawks…)
O que o filme nos vai contar é, precisamente, as
consequências da tomada dessa poção no comportamento de uns e de outros, e
terei de me ficar por aqui porque as peripécias são de tal maneira
rocambolescas e hilariantes que não só não disponho de espaço para as contar,
como jamais ousaria roubar-vos esse efeito de surpresa.
É claro que, em tom de comédia e a pretexto das
peripécias do casal Barnaby/Edwina, o filme evoca o trauma que constitui, para
a generalidade das pessoas da chamada meia-idade, a consciência da progressiva
perda das suas capacidades e da aproximação da velhice. Daquilo que foram e que
já não são, do que foram capazes de fazer e agora já não fazem, dos sonhos que
sonharam e que já deixaram de sonhar…
Mas, neste aspeto da perda da juventude, Hawks
parece começar por brincar com os seus próprios atores. Na verdade e com
recurso a um efeito de distanciação “brechtiano” que nos habituámos a ver nos
anos 60 e 70 em algumas comédias de Jerry Lewis e de Mel Brooks, mas que
não esperávamos de todo ver num filme de 1952, aqueles primeiros momentos do
filme são verdadeiramente surpreendentes. A voz que ouvimos por duas vezes
dizer “not yet Cary” é a voz do próprio realizador e dirige-se ao ator, não a
Barbaby, o personagem. Mas enorme ironia é a de associar ao eterno galã do
cinema americano, que ainda iria durar nesse estilo de papeis durante mais de
20 anos, um personagem em aparente menopausa e com tão pouca atração pelo sexo
oposto. Tal como ironia será ter posto Ginger Rogers, uma das grandes
bailarinas da comedia musical americana que tantas vezes vimos ao lado de Fred
Astaire, a dar ridículos passos de dança. “Private- jokes” de Hawks, lhes
chamou João Bénard da Costa (1), às quais suspeito que os argumentistas também
devem ter ajudado…
Alguns críticos viram também neste filme uma sátira
à Ciência e aos cientistas, o que se poderá compreender quando vemos que um
pobre chimpanzé descobriu, num ápice, aquilo que cientistas altamente
qualificados levavam anos a procurar, sem sucesso. Mas também quando vemos os
cientistas “rejuvenescidos” na brincadeira entre si, com verdadeiros
comportamentos de macacos...
Mas esta análise poder-se-á tornar mais
compreensível e interessante se enquadramos o filme no seu tempo.
Como é sabido, o período pós-II Grande Guerra foi
uma época de profundas transformações sociais na América.
Soldados regressados da frente de combate, muitos
deles com profundos traumas de guerra, tiveram de retomar, por vezes com grande
dificuldade, a sua vida normal.
Muitas mulheres, cujo trabalho na retaguarda foi
essencial para o esforço de guerra, ganharam novas ambições de realização
pessoal, recusaram o destino de uma vida doméstica e optaram por entrar, em
força, no mercado de trabalho, com todas as dificuldades de adaptação a um novo
ambiente laboral por vezes “stressante” e competitivo no qual tinham de impor
as suas valências, tanto mais que, muitas vezes, tinham de conciliar as
exigências e as responsabilidades da sua vida profissional com as da lida
doméstica.
Não é, assim, estranho que palavras tais como
angústia, ansiedade, insónia, depressão e outras equivalentes entrassem
rapidamente no quotidiano americano, e que a Indústria Farmacêutica disso se
tivesse aproveitado para florescer. E o mesmo se diga da Indústria de
Cosméticos, já que o acesso ao mercado de trabalho colocava novas exigências em
termos de “apresentação”.
E, já agora, também não foi por mero acaso que
filmes sobre perturbações mentais, com recurso à psicanálise e à interpretação
dos sonhos, irromperam em força no cinema americano, precisamente nesse
pós-guerra.
Ora, em boa verdade, o que vemos neste filme é uma
empresa farmacêutica ansiosa por ganhar muitíssimo dinheiro com um novo
medicamento milagroso…
Mas, lá está, esta é, apenas, uma das tais pontas
por onde poderemos puxar neste filme, e não me parece que, embora
sociologicamente interessante, até seja a mais relevante.
Outra dessas pontas a pegar será no que é dito e
não dito, no que é mostrado e no que fica nas entrelinhas, no consciente e no
subconsciente, tal como Barnaby e Edwina o abordam numa cena crucial do
filme.
Uma das subtilezas do argumento é, precisamente, a
de deixar enormes espaços em branco, para que sejamos nós, espectadores, a
colocar as questões e a procurar as respostas…
Porque mostra Edwina uma tão grande ansiedade por
uma nova lua de mel…? O que se terá passado, na verdade, dez anos antes
naquele quarto 304 do Hotel Peckwick Arms, em La Jolla…? E porque é que a noite
em que decidiram faltar a um compromisso de jantar e ficar em casa, apenas uma
semana após terem regressado dessa lua de mel, lhes parece, hoje, muito mais
memorável…?
Porquê tanta proximidade entre Edwina e o seu antigo namorado, aquele que só beijou uma única vez, sendo que, como ela não se cansa de explicar, foi ele quem a beijou a ela, e não ela a ele…? E porque tem Barnaby tantos ciúmes e tanta sede de vingança, ao ponto de pretender imolar e tirar o escalpe ao pobre homem…?
E se Barnaby andava assim tão distraído e era tão
insensível aos encantos da secretária do seu patrão, como é que a reconheceu de
imediato só por lhe ter visto os tornozelos…? E porquê, como lhe aponta a
mulher roidinha de ciúmes, lhe apareceram na face tantas marcas de batom,
quando o filme só nos dá justificação para apenas uma…?
E porquê teve o patrão de Barnaby tanta necessidade
de ir a voar para ser ele o primeiro a experimentar a poção, e por que razão,
já supostamente rejuvenescido, não para ele de correr atrás do rabo da sua
secretária com um sifão na mão…?
Entre o visto e o não visto, o dito e o não dito, o
consciente e o subconsciente, se passa esta excelente comédia, que nos faz
pensar.
Mas não fiquem a pensar que será necessária uma
elaborada reflexão para poderem usufruir do prazer deste filme… Algumas das
suas hilariantes cenas bastam-se a si próprias: o macaco a preparar a poção…; a
reconstituição da malfadada lua de mel…; a dança dos “índios” pequenos e do
“índio” grande…; a mulher de Barnaby com o seu suposto marido/bebé nos braços,
a quem, apesar da sua tenra idade, Marilyn Monroe não pode tocar nem com a
ponta de um dedo (este também é um filme sobre o ciúme…), são alguns exemplos.
E vou ficar por aqui, porque já me alonguei
demasiado…
Se - como é o meu caso - já tivermos alguns anos em
cima, talvez também possamos dizer, como no final Barnaby acaba por confessar à
sua mulher num momento de maior lucidez e maturidade, que não necessitaremos de
poções mágicas para nada, porque, afinal de contas, a juventude não passa de
uma falsa ilusão, porque ela não foi mais do que uma série de “desajustamentos
e desastres pouco cómicos”, aos quais não sabemos muito bem como conseguimos
sobreviver…
E, já que estamos em registo de comédia e ninguém
me levará a mal, também nada nos impedirá de logo à noite apagarmos a luz e
perguntarmos à nossa parceira ou ao nosso parceiro quanto tempo é que ainda falta
para o jantar…
Porque – e é essa a grande conclusão moral deste filme – só é velho quem se esquecer que é jovem…
- DA COSTA, João Bénard, “Escritos Sobre Cinema”, Tomo 1, 3º Volume, Edição da Cinemateca Portuguesa, 287