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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

DOCES, DOCES, DOCES


Por este tempo de Natal quase a findar, tenho, sempre, comigo o sabor do perú, nos jantares de Natal e Ano Novo, o sabor das tangerinas, metia-se um dedo na casca e o fruto saía por inteiro, e eram doces, doces, doces.

Há um livro de Pablo Neruda que se chama Odes Elementares, em que o poeta louva vegetais, frutos, comidas típicas, amigos, cidades, os homens, o trabalho, tanta coisa, que modela e transforma-as em versos.

Tão simples como respirar, mas aquela simplicidade que só está ao alcance de gente que busca horizontes.

Num total de 68, encontramos odes à alegria, ao amor, às aves do Chile, ao caldo de congro, à cebola, à crítica, à inveja, à esperança, à apanha dos pássaros, à preguiça, ao tomate,a o vinho, ao murmúrio,  a um relógio na noite.

Gostava que houvesse, mas não há, uma ode à tangerina.

Desde os meus tempos de infância que gosto do cheiro e do sabor da tangerina.

Tenho nos olhos as tangerinas, descansando na fruteira, para os jantares de Natal e Ano Novo.

Acontecia existir alguma míngua nas restantes refeições do ano, mas estes jantares eram sagrados.

deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

tal como escreveu Eugénio de Andrade.

Mas, parece, já não existirem tangerinas.

Apenas algo parecido, nomes como nectarinas, clementinas sei lá…

Sérgio Godinho, no seu álbum Tinta Permanente tem uma canção a que chamou O Primeiro Gomo da Tangerina.

Todos vieram
ver a menina
ao primeiro gomo de tangerina
menina atenta
não experimenta
sem primeiro
saber do cheiro
o sabor dos lábios
gestos sábios
Fruta esquisita
menina aflita
ao primeiro gomo de tangerina
amarga e doce
como se fosse
essa hora
em que chora
e depois dobra o riso
e assim faz seu juízo
Sumo na vida
é o que eu te desejo
um beijo um beijo
Ah, que se lembre
sempre a menina
do primeiro gomo de tangerina
p´la vida dentro
é esse o centro
da parcela da vitamina
que a faz crescer sempre menina
A terra é grande
é pequenina
do tamanho apenas da tangerina
quem mata e morra
nunca percorre
os caminhos do que há de melhor
nesse sumo
a vida, gomo a gomo
Sumo na vida
é o que eu te desejo
rumo na vida
um beijo
um beijo
Cheira, prova, experimenta...
O acontecimento é único
(a menina nunca antes provou nada assim)
e, por isso, todos vêm ver.
Será que vai gostar?
Vida fora, não esquecerá este primeiro gomo,
que, diz ela, tem o sabor da primeira vez.

E os Beatles, num dos álbuns mais extraordinários dos anos 60, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, numa das canções mais polemicas – e elas são tantas! -  com a Lucy, à espera de que ela virasse para mim os olhos caleidoscópicos, também se fala de tangerinas… mas não só…

Imagina-te num barco num rio
Com árvores de tangerinas e céus de doce de laranja
Alguém te chama, respondes muito lentamente
Uma miúda com olhos de caleidoscópio
Flores de celofana amarelas e verdes
Elevam-se sobre a tua cabeça
Procura a miúda com o sol nos olhos
E ela foi-se embora.

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da imagem.


domingo, 1 de janeiro de 2017

ÉRAMOS TANTOS À MESA


Anos 60.

Os tempos não eram fáceis.

No jantar do Dia de Natal e do Dia de Ano Novo, comia-se perú assado no forno.

Uns dias antes do Natal, ia com o meu pai ao Lavradio buscar dois perús, que tinham vindo do Alentejo, criados a bolota e tudo o que há (ou havia) nos montados alentejanos.

Na Estação Sul e Sueste apanhávamos o barco para o Barreiro, ainda a vapor.

Depois a camioneta do José Cândido Belo para o Lavradio, onde vivia um tio que trabalhava na CUF.

Mais de meio-dia de viagens, acreditem.

Os perús vinham, vivos, em dois cestos de verga.

O do Natal era logo embebedado com bagaço, depois temperado pela minha avó materna.

O do Ano Novo ficava dentro do tanque de lavar a roupa, ia comendo uma mistura de pedacinhos de couve e milho, e a aguardar a bebedeira antes de entrar no forno.

Com tudo isto gastava-se dinheiro que ultrapassava o mais que parco orçamento caseiro.

Dinheiro que iria fazer falta nos restantes dias, mas, festa é festa, e o Natal e o Ano Novo eram sagrados.

Para os males monetários, é que havia Casas de Penhores.

Nunca comi perú assado, como aquele que, depois de maneira única temperado pela minha avó, era assado, muito lentamente, no forno.

Arroz de miúdos, batatas fritas às rodelas, salada de alface.

Tangerinas, mas tangerinas mesmo.

O arroz doce apresentava-se em pires, com a primeira letra do nome dos convivas, desenhada com canela.


Legenda: imagem do Arquivo Shorpy

sábado, 22 de dezembro de 2012

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...



É incontornável: tudo, ou quase, o que nos marca a vida vem lá de trás, da infância. Procura-se e encontramos tanta coisa…

Tenho dentro de mim o cheiro das tangerinas que, para o jantar do Dia de Natal, vinham da horta do meu tio no Lavradio.

O cheiro espalhava-se pelo barco movido  a carvão que nos trazia até Lisboa.

Tantas vezes que o meu pai falava desse maravilhoso, único cheiro.

Mas não era apenas o cheiro.

Aquelas tangerinas metia-se o polegar e abriam-se de uma só vez.

Depois era a doçura.

Hoje procuram-se tangerinas e raramente as encontramos.

Aparece-nos uma coisa a que chamam clementinas…

Sobre tangerinas poderia ficar a falar infindamente.

De uma maneira mais simples fiquemos com  o Eugénio d’Andrade  e um seu poema sobre o fascínio das tangerinas:

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música dos meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor, pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

PERUS PELO NATAL


Tenho dos meus tempos de miúdo, a lembrança de ver, por estes dias de Natal, no Martim Moniz, dezenas de alentejanos a venderem perus.
Ramalho Ortigão escreve no V volume de As Farpas:
Lisboa prepara neste momento a festa de Natal.
Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço adornadas de florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos, guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força de Cana são esses os mais tenros.
A minha avó não comprava o peru no Martim Moniz.
Um tio materno, operário da CUF no Barreiro, vivia no Lavradio, quando o Lavradio, até à Baixa da Banheira, era uma enorme quinta a perder de vista.
Uma casa térrea, com horta e capoeiras, e o peru era ali criado a bolota.
Perto do Natal, eu e o meu pai, íamos ao Lavradio buscar o peru.
Na Estação Sul e Sueste, hoje desactivada, apanhávamos o barco para o Barreiro, ainda movido a carvão.
 No Barreiro apanhávamos a camioneta para o Lavradio.
Barcos e camionetas eram escassos, com longuíssimos  intervalos de espera.
O peru, patas amarradas, viajava numa alcofa.
Trazíamos também alfaces, tomates, cebolas e tangerinas que exalavam um perfume único e embalador.
Nisto se perdia toda uma tarde.
Chegados a casa, a minha avó embebedava o peru com aguaradente, e começava os preparativos para o tempero e o recheio.
Depois era a grande festa do jantar de Natal.
Nunca, mas mesmo nunca, voltei a comer um peru como o que a minha avó cozinhava pelo Natal.
Ainda fiz algumas tentativas, mas já nada era igual.
Nem os barcos a carvão, nem a camioneta da carreira e o o meu tio deixara de ter a horta e as capoeiras.
O cimento tomou conta de tudo e hoje o Lavradio, e tudo à volta, é o que é: betão e mais betão.
Depois chegariam os obsoletos perus de plástico e nunca mais, no jantar de Natal, o peru assentou praça como festim.
Tudo isto é uma doce memória, mas ao mesmo tempo amarga.
Amarga, porque, tal como poema de David Mourão-Ferreira, de que o meu pai muito gostava, se pode ler:
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio.
Assim foi.,, assim será… e o Nada há-de retomar a cor do infinito.
Legenda: perus a serem vendidos nas ruas de Lisboa. Não foi possível identificar autor/origem da fotografia.

domingo, 5 de junho de 2011

IDÍLIO EM BICICLETA


“A caminho de Huamachuco, a estrada trouxe uma novidade absoluta: as mulheres, em vez de andarem de fuso e velo de lã na mão, tecem longas e coloridas peças de tecido – ou faixas decorativas – no processo mais artesanal que poderia imaginar…”


“Esgaravatando a vida a golpes de picareta
Pouco depois de deixar Huamachuco, a chuva alia-se à montanha e a progressão torna-se um pouco mais lenta e sofrida. As escassas habitações vão ficando para trás e, chegado ao topo da serra, apenas alguns rebanhos de alpacas parecem resistir ao duro clima do extenso planalto, mais alto do que plano. Um ou outro casebre, de lata, terra e bocados “do que calha”, ergue-se, isolado, no vazio da montanha. Por vezes, nas imediações erguem-se robustos muros de pedra, formando currais onde guardam as alpacas. Não há vizinhos, não há electricidade, não chega a haver aldeia ou mercearia, não há campos de cultivo, apenas um casebre onde se aloja uma família de pastores, de faces que não se percebe se são negras ou rosadas, lábios roxos ou negros, cabelos negros, da cor dos olhos, das mãos e talvez do coração ou do futuro.”


“Mesmo na encosta em frente a Quiruvilca, outra mina de “metais” parece ser a única fonte de emprego da “aldeia”. Com tanta riqueza em redor, a brotar do subsolo, não se compreende a miséria deste povoado, de longe o mais horrendo, sombrio, degradado, caótico com que me deparei ao longo destes meses de viagem – ou talvez seja o contrário, talvez seja a miséria e degradação das Quiruvilcas que alimenta de ouro, prata e diamantes as avenidas douradas de Nova York, Paris, Londres... As ruas são becos sombrios, sujos, estreitos e labirínticos. As casas são barracas sujas, inacabadas, com cobertura de lata ou colmo. Os cheiros são uma mescla explosiva de detritos, comida, urina… De onde quer que se observe Quiruvilca – de cima, da estrada que vem da montanha, ou de dentro, das ruelas caóticas – vê-se um grande bairro de lata, do qual apetece fugir”

Mas a riqueza do planalto parece ser as minas. “A maior mina de ouro do mundo”, garantem dois trabalhadores solitários que marcam os quilómetros da estrada, e com quem partilhamos as tangerinas e uns pãezinhos secos, não dista muito de Quiruvilca. E pouco depois da mesma Quiruvilca, em Shorey, outra enorme mina de ouro, prata e não sei que mais, domina a paisagem. Passam três carrinhas de alta segurança, com a suspensão bem baixa…devem levar uma boa maquia!

Texto e imagens de Idílio Freire.