«ZAU ÉVUA (NORTE DE ANGOLA)
ABRIL-MAIO DE 1970
O correio da guerra trouxe um livro. «Poesias
Completas», de António Gedeão. «Para musicar. Um abraço.
Cambezes». Quase automático. Gedeão é um dos poetas mais musicais
(musicáveis) da língua portuguesa. E a sua poesia, minha velha amiga. Esses
poemas, a angústia, o estar aqui, a viola, as noites, os estilhaços de um povo,
o torniquete equatorial, a medicina artesanal, o resto, tudo tornaram fácil.
Tão fácil, como sentir o arame farpado rasgando a pele dos sentidos. Tudo
tomou, também, um repentino sentido. Não eram poemas isolados, mas uma
história, o que estava ali escrito. E a história, e a poesia, eram demasiado
belas para que a música as estragasse. Havia o Homem. Havia uma história. Havia
um palco: a Vida. Eu daria apenas um pouco de música e um pouco de ordem. Mas,
o importante, era o Homem. Mesmo à dimensão de uma rodela negra, num rodopio de
33 voltas por minuto.
Do início («numa qualquer manhã, um qualquer ser,
/ vindo de qualquer pai, / acorda e vai, / como se cumprisse um dever»)
até «vestidos de surrobeco / e acocorados no chão», vai um salto de
20 séculos. Um drama em tempo de LP. Um disco pensado alto. Este o esquema, o
funil, o encurralar da ovelha. Sob uma macieira de plástico, o homem
nascido-em-qualquer-parte diz donde vem e o que quer:
«Venho da terra assombrada
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém».
Mas avisa:
«Não há poder que me vença
mesmo morto hei-de passar"»
Assim começa a fala do homem nascido. O pior é que o
mundo não é o que devia ser. Há o desencanto do desencontro. O diálogo não
passa de monólogo. As palavras são, apenas, sons. Para isto, mais vale «morrer atolado / na mais negra solidão». (A esta indiferença, a esta
fácil aceitação da fatalidade, chamava Roger Vaillant, em «La Loi», «se portugalizer»). No entanto, nem tudo está, ainda, perdido.
Acredita-se, mesmo por detrás da angústia, das contradições e de um quotidiano
feito de misérias e esperanças, que «todo o tempo é de poesia». Há
uma dinâmica permanente entre «bombas que deflagram / corolas que se
desdobram / corpos que em sangue soçobram / vidas que a amar se
consagram». O Homem acaba por ganhar o desafio, palmo a palmo, dia a dia,
calo a calo: «Tenho sofrido poesia... / dói esta corda vibrante / a corda
que o barco prende... / se vem onda que a levante / vem logo outra que a
distende / não tem descanso jamais». Uma vitória adiada. Um volte-face do
disco, um percurso do geral para o particular. Entramos em Portugal.
Todo um (saudável) culto do passado, construído sobre
um saudosismo que ainda dói – «Poema da Malta das Naus» – é, a um
tempo, homenagem, crítica e incitamento ao Homem Português de ontem e de hoje.
O marinheiro quinhentista «moldou as chaves do mundo», mas toda essa
epopeia teve (e tem) o seu preço, o preço trágico de uma «lágrima de
preta». Este o drama dos descendentes da malta das naus: a ciência
diz-lhes que a lágrima não tem «nem sinais de negro / nem vestígios de
ódio». Mas... e daí? De que vale a ciência da análise, se o Homem Nascido
não está preparado para a aceitar? Bastará a ciência ao Homem para que ele se
humanize? Filipe II (que aqui se cognomina de Manuel I) tinha tudo, tudo! «Mas o que ele não tinha / era um fecho éclair». É isto que dói ao
Homem Nascido: o não ter coisas tão aparentemente simples e possíveis como um
fecho éclair. Jamais a felicidade completa. Sobretudo por ser conseguida à
custa da felicidade dos outros. «Lágrima de Preta» é o primeiro poema
que, no disco, se dirige à mulher.
A Mulher Portuguesa, mulher em vias de
desenvolvimento, é hoje, talvez, o exemplo recente de uma nova forma de
alienação. Ao fazer-se uma (demagógica) promoção da mulher, inaugura-se um
moderno processo de a escravizar: a escravidão pelo trabalho desumanizado. E
escravidão não só à dimensão da sociedade, mas na intimidade da sua própria
vida (trabalho, casa, filhos, marido, trabalho... um ciclo vicioso infernal que
uma vez iniciado não pode parar). «Calçada de Carriche» é um hino à escravidão da mulher-mártir, frágil
máquina suburbana que o quotidiano da cidade suga. Mulher, máquina, máquina,
que o vertiginoso e breve amor dos domingos evade para as auto-estradas, na
doce ilusão de o novo mundo dos sentidos não ter segundas-feiras...
A evasão dá-se. «Leonor, Leonoreta, fuge, fuge, vai na asa de
lambreta» , com o único rumo de fugir a si própria, numa ilusória
felicidade, fugaz como a paisagem que a lambreta rasga.
O cerco aperta-se. O Homem torna-se cada vez mais circunscrito. De um trilião
de homens passa-se para o grupo e, finalmente, para o indivíduo, para o homem
concreto, com nome, residência e tudo. «Álvaro Góis / Rui Mamede / filhos
de António Brandão / naturais de Cantanhede...». Eles vivem, existem, são.
Em Braga ou em Olhão, no Alentejo ou na guerra, eles lá estão! «Vivos», «vestidos de surrobeco» e «acocorados no
chão», eles estão em toda a parte. No chão, mas ainda vivos... Eis a
"Fala do Homem Nascido"!
ELE nasceu numa qualquer manhã e não há poder que o vença.
Mesmo morto há-de passar!
Lisboa, Novembro de 1972.
Dois anos e meio passados, o disco fez-se.
No caminho ficaram muitas ideias, entre as quais o
entusiasmo de amigos como o Rui Ressureição e o Manolo Diaz, que, comigo em
África, quiseram esperar por mim. Como muitas vezes acontece, novas oluções
surgiram, entre as quais a que o talento e a inteligência de José
Calvário trouxeram a todo este trabalho.
Que António Gedeão me desculpe algumas amputações que
fiz aos seus poemas, determinados por razões musicais.
Que, dos erros que
houver, me ataquem a mim.
P.S. – Para o
Eduardo Cambezes;
Para
ouvir. Um abraço. Niza.»