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sexta-feira, 29 de março de 2024

ABRIU-SE UMA FLOR NA MÚSICA

Abriu-se uma flor na música.

Uma flor de ordem e fogo.

E caiu-te na cintura.

 

Morderam-te labaredas,

lentas e surdas,

até colocar a ponta

em punhal, sobre a medula.

 

Correram de cima abaixo

- oiro, ou vermes, ou agulhas

 

E tu caíste redondo,

roído de tempo ou música.

 

Fernando Echevarria em Cadernos do Meio Dia nº 2

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

A PENÚRIA DA LÍNGUA

A penúria da língua é a sua força.
Reconhecendo nela a indigência
mais o apuro se empolga
e a submissão empolga a subtileza
do espírito, dado à obra
e a mais nada que não seja ela.
De aí que se desenvolva
uma abertura hiante de surpresa
que pede língua cada vez mais nova
e de mais adequada obediência.
Ou, se quiserem, língua peremptória.
Porque, vinda do fundo da pobreza,
entrega apenas quanto falta. E torna
a sua falta uma abertura imensa,
indigitando o extremamente fora,
cuja ausência feliz se nos entrega.

Fernando Echevarría de Lugar de Estudo em Resumo: a poesia em 2009.

terça-feira, 19 de setembro de 2023

PROMONTÓRIO DE DEUS

Promontório de Deus. De onde Ele se ausenta.
Só nos deixando a grande nostalgia
na sua massa espessa.
Que abre distância de recuo assídua
e alarga a inteligência
por uma busca quase que festiva.
Ou mais, talvez, por uma via tensa
de júbilo e sentido. E, até, sofrida
na sua panda activação de vela.
Que vai sofrendo e activando a vinda
da invisibilidade, da surpresa
inominada, que procura ainda
seu nome peremptório. Mas nomeia
essa distância a distanciar-se implícita.
Ou promontório de onde Deus se ausenta
para auscultarmos sua face viva.

Fernando Echevarria em Resumo: a poesia em 2009


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

AUTO-RETRATO

Está incompleto. Ainda se vê metade do rosto. Sabe-
mos
como se acentua junto dos olhos a mesma sombra. Os
lábios
fecham-se; à sua volta, um halo apenas: continuam
afastadas
as pregas da cor, o rumor trazido pela luz. Há um con-
torno
que pode tornar-se nítido. É tudo o que se
procura. Depois esperamos
que venha a respiração ao encontro dessa superfície
até se encontrar
um nome. É o meu. Se quiserem podem esquecê-lo
agora.

Fernando Echevarria 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

CHAMAM TRISTEZA A ESTE MODO LENTO

Chamam tristeza a este modo lento

de passarem por nós coisas amadas

sem as estarmos vendo

senão nos vultos de nenhuma estrada.

E até talvez digam mesmo

que já não amamos nada

 – nem as coisas que amamos e não vemos,

nem as que vemos sem poder amá-las.

Mas a verdade é que esse modo lento,

essa tristeza com ou sem estrada

por onde são os vultos só o que vemos

das coisas para sempre amadas,

a verdade é que vê-las está sendo

também por elas passar na mesma estrada.

E esse passar recíproco é dum tempo

que se esqueceu da duração passada.

Fernando Echevarria

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A MORTE NA MORTE SE TERMINA

 

A morte na morte se termina.

E amamos na esperança que a alimenta

não a transparente ferramenta

mas a alma que passa e se ilumina.

 

Porque estarmos na morte nos designa.

E a própria virtude que a sustenta

nela se afirma e nos ensina

a iluminar também a ferramenta

 

por onde a alma se ilumina e passa.

E estar na morte segue o seu destino

de saber que por esta morte baça

 

ir à morte é lermo-nos num signo

que se acende somente, repentino,

quando lermos é lido em obra e graça.

 

 Fernando Echevarría 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

OS VIVOS OUVEM POUCAMENTE

Os vivos ouvem poucamente. As plantas,
como o elemento aquático domina,
são dadas à conversa. A menor brisa abala
a urna de concórdia estremecida
que, assim, sensível, se derrama
e é solidão solícita.
Os vivos não ouvem nada.
Mas, havendo acedido a essa malícia
de experiência cândida,
os mortos deixam que o ouvido siga
o fluvial diálogo das plantas
umas com outras e todas com a brisa.
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas,
as plantas se sentem mais sozinhas,
os mortos brincam à imitação das águas
inventando palavras de consonâncias líquidas.
E esse amoroso cuidado de palavras
a urna de concórdia vegetal espevita
até que, a horas altas,
a noite, os mortos e as plantas
caiam no sono duma luz solícita.

Fernando Echevarria 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

CONVERSANDO

Quarenta anos sem Adriano Correia de Oliveira.

É bom que os mortos regressem, mas sem alvoroço.

Como disse Eduardo Prado Coelho sobre Fernando Echevarria:

«Regressam como quem regressa ao fim da tarde, e tudo se passa numa espécie de paisagem rural de sinos e lareiras. Ou, às vezes, nas ruas amaciadas da cidade – mas como se o ruído se tivesse retirado, e ficasse apenas o pacífico contorno nas imagens.»

Hoje, relendo este texto do Eduardo sobre Fernando Echevarria, (o livro é de Abril de 1994), interrogo-me como de imediato não fui em busca dos seus livros. Não é tarde demais mas o tempo perdido não volta e muitas outras coisas perdi não lendo Echevarria.

Teria eu lido, com olhos de ver, os textos do Eduardo?

«Para falar de tudo isto seria preciso que eu me debruçasse amorosamente sobre a teia de cada um destes poemas. É um trabalho que vale a pena. Afinal de contas, esta poesia só pode ser assim. Apenas um exemplo:

É mais fácil sentar-se quando os mortos

predominam à volta. Sem os vermos,

a escura transparência dos seus olhos

prepara o espaço onde fiquemos sendo

atenção a escoar-se. Mas de corpo

inteiramente dado à paz do peso.

Chamam a isto ficar alguém absorto.

Porque, enquanto se parte pelo espaço dentro,

o volume gravita de tal modo

que a alma se ergue. E um lugar intenso

fica pairando. E ver, então, é próximo

e sentar-nos no imóvel azul do pensamento.»

ÀS VEZES, ESCREVE

13 de Março de 1992

«Fernando Echevarria: escrevera sobre ele há muitos anos, ainda nas páginas da Seara Nova, ignorando quem era e o que fazia. Houve um verso que ficou (há palavras que atravessam a minha vida, vá lá saber-se porquê» «e sangue adelgaçado em alegria» (de novo, o sangue, reparaste?). Depois, muitos anos depois, houve um jantar e uma amizade discreta (com o Fernando e a Flor)). É um homem de rosto concentrado e silenciosos que gosta de algumas coisas simples e importantes, como música, vinhos e poesia. Tem uma espantosa sensibilidade `*a forma das palavras e anda por Paris como um clandestino de samarra que tem por missão acender entre os humanos pequenos nichos de respiração e transparência. Por vezes, quando passo de carro ao fim da tarde pelos cais, vejo-o voltado para si e aberto para os outros, num café junto ao Sena: um livro, um caderno, um olhar tranquilo. Às vezes, escreve.»

Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que Não Escrevi Volume II

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

RELACIONADOS

Luís Miguel Queiroz que escreveu o obituário de Fernando Echevarria no Público de 6 de Outubro, colocou em título: «Morreu o mais filosófico dos poetas portugueses.»

Outras palavras:

Ao longo de seis décadas ergueu uma das mais sólidas e singulares obras da poesia portuguesa contemporânea; na dedicação missionária à poesia, talvez só o possamos aproximar de António Ramos Rosa; no seminário de Astorga, em Espanha, estudou teologia e filosofia e estava destinado ao sacerdócio mas desistiu  da vocação religiosa ou talvez a tenha cumprido de outro modo; em 1967 é um dos fundadores da LUAR de Palma Inácio e acerca dessa actividade política manteve sempre uma grande discrição.

A VELHICE É UM VENTO

A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.

Fernando Echevarria

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O EXÍLIO COMO PÁTRIA

Fernando Echevarria, lutador contra a ditadura salazarista/caetanista, permaneceu exilado até ao 25 de Abril.

Nesse tempo de exílio, «para ganhar para a côdea», como dizia, fez de tudo. Economicamente, a vida apertada que levou, apenas lhe permitia beber um café por dia. Quando pôde tomar dois cafés por dia, sentiu-se um homem rico.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

DOMINGO


Ficou-lhe a paz. Do tempo
em que, movido o olhar à santidade,
parávamos no campo vendo
correr a água e adubar-se o caule
que abrirá sua roda de sustento
à fadiga do homem, que uma coroa de aves
reconhece no ar, de estar aberto
à cálida saúde da passagem.
Depois da missa, pelo domingo adentro,
crescia essa saudade
fresquíssima de estarmos tão atentos
à tarefa que, sem nós, a tarde
cumpre na terra. E mesmo ao pensamento
que amadurece nas árvores,
tocadas ao longe, no estremecimento
que se enreda por nós e em nós se abre.
Ficou-lhe a paz. O doce movimento.
que nos inclina para a primeira idade.

Fernando Echevarria em Rosa do Mundo

FERNANDO ECHEVARRIA (1929-2021)


No dia 4 de Outubro morreu, com 92 anos, o poeta Fernando Echevarria.

Nascido em Cabezón de la Sal, na província espanhola de Santander, na Cantábria, em 1929, filho de um pai português e de uma mãe espanhola, Echevarría veio com a família, aos dois anos de idade, morar em Grijó, Vila Nova de Gaia. Ficou com o nome da mãe, e quando lhe perguntavam qual era a sua pátria, respondia: « a minha pátria é o exílio, mas não me esqueço que nasci aqui…»

Não tenho nenhum livro de Fernando Echevarria.

Conheço poemas soltos, mas apenas isso.

Na biblioteca do meu pai, os dedos de uma mão chegavam para contar os livros de poesia que por lá existiam. E sobravam dedos.

Lembro-me de um livro de Edgar Allan Poe, em inglês, de um livro de Baudalaire, em francês e Os Poemas de Deus e do Diabo do José Régio.

Um dia quando me chegou às mãos a Antologia de Poesia Portuguesa do Pós-Guerra verifiquei que o meu conhecimento da poesia portuguesa era um enormíssimo deserto.

Pedi ajuda para colmatar as lacunas e aconselharam-me, para começo, comprar ou ler, todos os volumes da «Colecção Poetas de Hoje», então editados pela Portugália Editora.

Assim fiz e aos poucos fui conhecendo José Gomes Ferreira, António Reis, Reinaldo Ferreira, Eugénio de Andrade, José Saramago, Egito Gonçalves, Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, outros tantos e até dois poetas brasileiros: Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.

Nas visitas às livrarias ia sempre à estante de poesia portuguesa e trazia sempre novos poetas na sacola.

Fernando Echevarria, lamentavelmente, ficou por conhecer

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

HÁ UM VENTO IMÓVEL

Há um vento imóvel que quase transfigura
Em si mesmos os bichos e os homens.
Vemos passar pela floresta a sua
Tepidez de covil. Perto da noite,
Um halo de sentidos sensíveis os circunda
E movem a cautela inaugural da fome.
Ou, se pisam a rua,
Quase que vão por onde
Quando eram reis de uma consciência obscura
A palpitar pelos confins da morte.
Há um vento imóvel. Uma paciência, a crua
Caça. E por onde a encantação dos nomes
Relampagueia, unificando a sua
Nomeação à astralidade do homem.

 Fernando Echevarría