Abro o Público
de hoje e deparo com uma lembrança de José Saramago.
A presto-me a copiar:
"Uma vez que a data o pede e a ocasião não o
desaconselha", o PÚBLICO aceitou o repto da Fundação José Saramago e
publica hoje, no 76.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
o discurso proferido pelo escritor no banquete que se seguiu à cerimónia de
entrega do Prémio Nobel da Literatura, a 10 de Dezembro de 1998. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos fazia nesse dia 50 anos e foi o tema escolhido
por José Saramago para um texto que se mantém tragicamente actual.
«Majestades, Alteza Real, Senhoras e Senhores,
Cumpriram-se hoje exactamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração
Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à
efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez a atenção se fatiga quando as
circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exame de questões sérias, não é
arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de
amanhã. Claro que nada tenho contra actos comemorativos, eu próprio contribuí
para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a
ocasião não o desaconselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas
palavras mais.
Como declaração de princípios que é, a
Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos
Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos
fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo
com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode
acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na acção política, na gestão
económica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente
considerada pelos poderes económicos e pelos poderes políticos, mesmo quando
presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além
do grau de boa consciência que lhes proporcione.
Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.
Tomemos nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efectivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.
Não estão esquecidos os agradecimentos. Em Frankfurt, onde estava no dia 8 de Outubro, as primeiras palavras que disse foram para agradecer à Academia Sueca a atribuição do Prémio Nobel de Literatura. Agradeci igualmente aos meus editores, aos meus tradutores e aos meus leitores. A todos volto a agradecer. E agora quero também agradecer aos escritores portugueses e de língua portuguesa, aos do passado e aos de agora: é por eles que as nossas literaturas existem, eu sou apenas mais um que a eles se veio juntar. Disse naquele dia que não nasci para isto, mas isto foi-me dado. Bem hajam, portanto.»
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