sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

OLHAR AS CAPAS


A Cidade de Cobre

Gil de Carvalho
Edições Cotovia, Lisboa, Outubro de 2001

Comprámos um frango na venda do outro lado da cerca e fizemos a refeição no alpendre que ficava nas traseiras. Para ver a tua palmeira, bebíamos vinho novo e comíamos queijo seco barrado com colorau, e azeitonas, por copos vidrados e com os garfos de aço cru e mal temperado. A pequena lama negra posta assim no rosto de ambas era proveniente de uma mistura inusitada a meio do riacho, no fundo do Parque Real, vedado agora. Arabescos, salpicados de algum vermelho e espantalhos. Via-te agora transformada numa monja de cabeça quase rapada, e belos seios, por baixo da veste amarela, extraviada, pelas privações do comunismo. Faço a vénia e prossigo a descida para o rio, íngreme e seca. O meu cão é Pirgos, de seu nome, e ladra sem cessar. Urino de seguida junto à porta baixa do convento abandonado, e trancado, boa parte do ano. A tua palmeira ainda lá está. Diria que é a única coisa de pé naqueles locais que para nós foram, durante algum tempo sagrados.

QUOTIDIANOS


Basta ventar um bocadinho mais e os chapéus-de-chuva acumulam-se pelas ruas.
Sim, os chapéus que compramos nas lojas de chineses são relativamente baratos mas não aguentam tanto como os que havia antes do mercado ter sido invadido pelas baratezas chinesas.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

OLHAR AS CAPAS



Isto Sucedeu Assim

António Botto
Colecção “A Novela” nº 2005
Editora Argo, Lisboa, Abril de 1940

Doía-me a garganta de tanto fumar. Cigarros sobre cigarros. Um arrepio de frio fêz---me levantar a gola do meu velho sobretudo. Houve uma aberta… Saí. Os meus vinte e oito anos e a minha virilidade de homem que punha no amor todo o lume de uma vida que sente a sensualidade, eram, agora, um desalento à mercê de qualquer coisa…
Uma guitarra tocava. Fui ao encontro do som. Entrei. Café de operários. Ao fundo, um tipo de «chauffeur». Arrancava da guitarra lentas revoltas de fado. Sentei-me; pedi um copo de vinho.
A guitarra dominava. Chorosa, quási em surdina, ia atrás do cantador; e a cantiga tinha cunho, certo recorte fatal em versos de amargo travo:

A mulher que vai ao clube
Passa por ser desonesta
Até lhe chamam perdida;
Só se vê nela o desejo
Decadente de viver
O fundo inútil da vida.

Ninguém procura ver nela
Mais que a mentira de um beijo
À margem de outra mentira;
Um cigarro que se fuma,
Ou palavra que se perde
Na voz de alguém que delira...

Se os olhos enche de pranto,
E com ele os olhos lava
- Reflexo de uma agonia, -
Quantos não dizem: - Fiteira,
Quer comprar alguma jóia
E o ourives não lha fia.


E a mulher por mais rameira
Não tem somente por norte
Atraiçoar ou mentir:
Nela, há tesoiros de amor
Que valem mais que a fortuna
Maior que possa existir!

Porque nós é que a levamos
Ao pecado que deprime
E ao bordel da perdição;
Triste odisseia da carne
Que se canta e se amortalha
Nos versos de uma canção!

Mas, como a verdade é uma,
Embora digam que há muitas,
E cada qual tem a sua,
Na mulher não queiram vê-la
Simplesmente quando beija
E apenas quando está nua.

SARAMAGUEANDO


O Partido, a que José Saramago pertenceu até à sua morte, não apreciou
a independência política que o escritor desenvolveu durante o PREC, mais concretamente enquanto foi sub-director do Diário de Notícias.

Álvaro Cunhal só depois de ter lido Levantado do Chão reconheceu o escritor que Saramago era e tenha, a partir daí tenha modificado o relacionamento pessoal e, politicamente, ter permitido a sua independência.

Já antes, em vida de Álvaro Cunhal, Saramago terá discordado dele algumas vezes, interpretando a História de forma diferente. Escreveu Saramago numa crónica:

«A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás.»

Muitas vezes, em textos, em diversas entrevistas, José Saramago abordou o facto de ser comunista:

 «Às vezes refleti sobre o facto de ainda ser comunista. Claro que sou e não consigo imaginar-me sendo algo diferente. Mas percebi que precisava acrescentar algo a esse ditado sou comunista e acrescento que sou um comunista libertário. Como escritor, acredito que nunca me separei da minha consciência como cidadão. Eu acredito que onde um vai, o outro deve ir. Não me lembro de ter escrito uma única palavra que contradissesse as convicções políticas que defendo, mas isso não significa que eu já tenha colocado a literatura ao serviço directo da ideologia que é minha. Significa, sim, que quando escrevo, em cada palavra, procuro expressar a totalidade do homem que sou. Repito: não separo a condição de escritor da de cidadão, mas não confundo a condição de escritor com a do militante político.
Se alguma vez me tivesse sentido mal no partido, tinha saído, e se um dia me sentir mal, saio. As minhas discordâncias, que são sérias, e em alguns casos sobre pontos essenciais, não foram suficientes para abandonar o partido. Creio que por causa da minha própria convicção, e sem esforço. É o único parido onde a minha convicção está à vontade e tem suficiente resposta.»

Mais uma achega:

«Eu tenho o partido que tenho, e não tenho outro. Se estou dentro, tenho de enfrentar todas as consequências. Na minha relação com o PCP não entro em conta com a minha “base social de apoio” (a expressão é do Eduardo Prado Coelho) enquanto escritor, ou cidadão. Se tiver de acontecer que o facto de o PCP não ter feito a sua “perestroika” afecte a minha vida pública como escritor, não é por isso que deixo o meu partido. Não, não deixo o partido.»

Ainda uma outra achega:

«O partido como um sol, como um deus, não significa que, uma vez por outra, quando se está ao sol, não se procure a sombra, e que mesmo aqueles que crêem em Deus não tenham as suas dúvidas. Não estou em crise de fé, nem me refugiei na sombra,  O que acontece é que a minha relação com o partido é muito mais saudável do que isso. Eu não considero que o meu partido – e isso põe-se em relação ao PCP como se poderia por em relação a qualquer outro -, eu não considero que o meu partido seja competente em matéria literária e, em geral, artística. Por muito respeito que eu tenha, e tenho, com os meus camaradas com as responsabilidades directas e imediatas do meu partido, não os considero realmente tão competentes ao ponto de me poderem dizer como se faz, e se o que fiz está a bem feito ou mal feito. Prefiro que gostem daquilo que faço, mas se porventura acontecer não gostarem, paciência…»

Baptista-Bastos escreveu: «Saramago foi um comunista desobediente; nunca dissidente porque não tolerava as derivas morais, periodicamente em moda. Esteve sempre onde a consciência o determinava».

Um aspecto interessante do livro de Joaquim Vieira sobre José Saramago, reside no passo em que, a págs. 510, é aflorado o apoio que José Saramago deu a Jorge Sampaio quando este se candidatou à Presidência da República.

Sérgio Ribeiro:

«Quando o Saramago apoia o Sampaio para a Presidência da República, diz-mo a mim num almoço. Saiu do restaurante a dizer-mo “vou apoiar o Jorge Sampaio.» E eu: “Ó Zé, há um candidato do partido, tu conhece é um militante conhecido.”Ele não estava de acordo. Eu posso não estar de acordo, mas a partir do omento em que há uma decisão tomada por nós, esse constrangimento aceito-o.»

É José Luís Judas, ex-militante do PCP, que revela até que ponto Saramago estava consciente do que dizia e o quanto o Partido percebeu e consentiu nesse procedimento de Saramago:

«Ele não o fez contra o PCP, mas de forma convicta em conformidade com o PCP. De certeza que falou antes com alguém do PCP. Aquilo foi feito em cumplicidade, não tenho dúvidas. Era um sinal de que o partido estava de acordo. Eu sei como funcionava o PCP (quem sugeriu o apoio do Partido Comunista a Sampaio para a Câmara Municipal de Lisboa fui eu). Sampaio também não estava interessado em que o PCP o apoiasse publicamente. Devem ter dito ao Saramago (o Cunhal fazia essas coisas muito bem): “Dá sinal ao homem de que a gente está com ele”.»

Remate conclusivo de Joaquim Vieira:

«E o facto é que a desistência de Jerónimo de Sousa, à beira das urnas, a favor de Sampaio mostraria que Saramago tivera razão antecipada, pelo que o PCP também nunca mais tocaria no assunto.»

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


O mundo não é compreensível, mas é abraçável.

Martin Buber, citado por José Tolentino Mendonça

Legenda: imagem de S. Galimberti

OLHAR AS CAPAS


Sonetos

Luís de Camões
Prefácio, selecção, notas e bibliografia: João de Almeida Lucas
Colecção Clássicos Portugueses nº 7
Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1942

O dia em que eu nasci, moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
a mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a côr perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

MANEIRAS DE VER


Todos saberemos que o Tete Montoliú era uma pessoa de baixa estatura e invisual, mas nem todos tiveram a oportunidade de, privando com ele, apreciar o seu enorme sentido de humor e a sua capacidade de gozar com o seu infortúnio. Era também um inveterado pinga-amor, sempre com novas conquistas femininas. Quando chegou a Lisboa, o Francisco Almeida e o José Soares foram buscá-lo ao aeroporto num FIAT 127. Quando se nos apresentou, vinha acompanhado da sua última conquista. Uma senhora quase com o dobro da sua altura e da sua envergadura. Lá se conseguiu meter toda a gente e bagagem no 127, eles atrás e nós à frente. A caminho do hotel, passámos pela Av. de Roma, onde o antigo Cinema Roma exibia o filme Emmanuelle. Diz a senhora: “Mira, Tete, está ali um cinema que passa a Emmanuelle.” Resposta instantânea do Tete: “Quero vir ver.” Silêncio de morte à frente. Olhámos um para o outro, de boca aberta, como quem diz “Ouvi bem?!”. E era verdade. Fartou-se de insistir e lá comprámos dois bilhetes. Foram ver o filme e o Tete adorou.

João Paulo Bessa em Hot News nº 8

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

OLHAR AS CAPAS


Homens E Bichos

Axel Munthe
Tradução e prefácio de António Sérgio
Editorial Progresso, Lisboa s/d

Tinha-o contratado por todo o ano. Duas vezes por semana, vinha tocar-me todo o seu repertório; e, nos últimos tempos, por simpatia pela minha pessoa, bisava o «Miserere» do Trovatore, a sua peça de resistência. Punha-se bem no meio da rua. Fixando-me as janelas enquanto tocava; chegado ao fim, tirava o chapéu e exclamava: «Addio Signor!»
Sabe-se que o realejo, exactamente como o violino. Adquire com o tempo uma sonoridade mais bela, mais impressiva. Tinha o velho um instrumento de primeira ordem, não do tipo moderno e barulhento, que imita as orquestras com as suas flautas, seus metais e seus tambores, mas um realejo velho e melancólico, que insinuava um devaneio misteriosos no mais jovial dos allegrettos, e cujo tempo di marcia mais bélico evocava inconsoláveis resignações. Nas peças de maior ternura, quando o canto se velava e tremia. Como a voz de um velho cantor ambulante, e ia tenteando um caminho incerto pelos tubos enferrujados das notas altas, fazia-se ouvir pelos baixos roucos um trémulo de soluços abafados. O realejo, lá de quando em quando, emudecia de todo; resignadamente, o velho manivelava nesses compassos de espera, mais eloquentes no seu silêncio que a mais comovedora de todas as músicas.
Na verdade, o instrumento cumpria com o seu dever; mas cabia ao velho uma boa parte naquela tristeza que me dominava, sempre que ouvia a sua música. Fazia estação nos bairros pobres que se estendem por detrás do «Jardin des Plantes»; e, muitas vezes, nos meus passeios solitários, me sucedeu parar diante dêle, tomando lugar no auditório escasso de garotos esfarrapados que o cercavam.

domingo, 26 de janeiro de 2020

ETECETERA


Os dias estão tão confusos… e tão complicados.

Perigos espreitam a cada esquina.

Por onde começar?

O dinheiro sempre cegou as pessoas.

Isabel dos Santos, a mulher mais rica de África, está em maus lençóis e com ela uma série de políticos e empresários angolanos e portugueses que, durante anos, foram coniventes com a dama estendo-lhe uma enorme passadeira vermelha para se ir enchendo de luxos: sapatos, malas, perfumes, vestidos, mansões aqui e ali, e onde entram ministros e primeiros de governos diversos, banqueiros, empresários, sociedades de advogados, generais, seguranças, um enxame enorme gente que se constituíram em gangs-sem-fim-à-vista.

O que designaram de Luanda Leaks abriu uma enorme caixa de Pandora.

E já há gente, como ratos, a saltar do barco-qual-titanic.

Todos, mas TODOS, são coniventes, servis que foram  de gravata ao pescoço, sorriso ao canto da boca.

Por mim, se mandasse, prendia esta gente toda, arrestava-lhes o guito que têm espalhado em mansões, carros e off-shores.

No meio desta miserável desgraça, o povo angolano está condenado à fome à miséria.

Nenhum colonialista é flor que se cheire, ou o que lhe quiserem chamar, mas se os novos mundos que demos ao mundo são o que se passa e vive nesses países que antes iam do Minho a Timor, limpemos as mãos à parede.

Enquanto pensava neste triste e vergonhoso espectáculo, ia mudando as folhinhas secas dos amores-perfeitos da varanda, e de repente, o nosso presidente Marcelo, filho de ministro-do-estado-novo e desde criancinha com olhos e pés postos nesse tal Portugal do Minho a Timor, sossegava os portugueses:

«Os sinais que me chegam mostram que não há razão para nem a economia nesses sectores, nem os trabalhadores, nem os que têm a ver com as empresas, fornecedores ou clientes, estarem preocupados com isso.»

Já há baixas nos conselhos de administração das empresas, onde Isabel dos Santos detém participação advogados começam a sair dos grandes escritórios de negociatas e um gestor de conta no Banco EuroBic foi encontrado sem vida na garagem da sua residência.

Como a procissão ainda nem sequer saiu do adro, tenho a sensação que é mais que excessivo o optimismo de Marcelo Rebelo de Sousa.

Legenda: imagem ICIJ

sábado, 25 de janeiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


Os anões têm um sexto sentido que lhes permite reconhecerem-se à primeira vista.

Groucho Marx

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O escritor Luís Sepúlveda fez parte da guarda pessoal de Salvador Allende. Tinha, 23 anos.

Sempre que lembro aquele 11 de Setembro de 1973, salta-me a frase de Simone Beauvoir:

«É horrível assistir à agonia de uma esperança.»

Poderemos também referi-la no que ao nosso 25 de Abril de 1974 diz respeito?

A Sombra Do Que Fomos lembra o manto de terror que envolveu o Chile.

Escrito com humor, conduz-nos para uma nostalgia amarga, uma nostalgia de quem sabe que a juventude de muitos terminou nesse 11 de Setembro de 1973.

É um livro comovente, um livro escrito por alguém que sabe, que do exílio não se regressa nunca.

Quatro ex-exilados, antigos militantes de esquerda, sobreviventes de um tempo dramático, encontram uma pátria onde tudo é diferente. Juntam-se para uma última aventura que, possivelmente, vai fracassar, mas fazem-no em nome dos mesmos valores e recordam, na história de Santiago, por 1923, o assalto a um banco:

«Entraram de cara descoberta, fecharam a única porta, puxaram das armas e Durruti, com uma voz mais adequada a um actor de folhetins radiofónicos disse: “Isto é um assalto mas não somos ladrões. Os donos do capital unem-se para explorar os povos de todo o mundo e é justo que os ataquemos onde menos esperam. O dinheiro que levarmos tornará possível a felicidade dos condenados da terra. Saúde e anarquia!»

A páginas 87 do livro, um destes ex-exilados, por conduzir o carro em sentido contrário. provoca um grave acidente. Sepúlveda adianta o porquê:

«Era um retornado do exílio, um homem que tinha vivido quinze anos em Praga e em sua defesa alegava que os factos tinham ocorrido no seu bairro, que toda a vida aquela rua ia de norte a sul e que não sabia quando tinha mudado de sentido. Os que voltavam do exílio andavam desorientados, a cidade não era a mesma, procuravam os seus bares e encontravam lojas de chineses, na farmácia da sua infância havia um bar de “topless”, a velha escola era agora um concessionário de automóveis, o cinema do bairro uma igreja dos irmãos pentecostais, Sem os avisarem, tinham-lhes mudado o país.»

A ditadura de Pinochet durou 17 anos, uma parte do povo chileno esteve de acordo com essa ditadura, outra parte foi conivente – por medo, por conveniência, por ignorância.

Sabemos bem como isso é.

A nossa ditadura durou quase 50 anos, e, tempos atrás, muitos mesmo, o Armindo, para indignação dos que o rodeavam, dizia: «não é Salazar que é forte, é a oposição que é fraca.»

Alguma coisa já mudou no Chile, mas, mau grado algum optimismo, ainda não deixou de chover em Santiago.

Os povos levam tanto tempo a perceber os sinais, os acontecimentos do passado!...

Na dedicatória do livro, o autor escreveu:

«Às minhas companheiras e companheiros que caíram, que se levantaram, curaram as feridas, conservaram o riso, registaram a alegria e continuaram a caminhar.» 

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

UM LUGAR NO TEMPO


Há um tordo fortuito que desce e pousa e entoa a sua cantiga. Uma cantiga que imitou. Uma cantiga que recolheu. São avezinhas estranhas. Costumava acordar com o som dos tordos. Costumava adormecer com o som dos tordos. Todos entoavam cantigas que tinham inventado. Nos candeeiros à noite. Uma avezinha caprichosa. A qualquer hora do dia. Têm uma espécie de melancolia. Para mim têm uma espécie de melancolia, mas não é triste. Uma ave que é típica de um lugar, só isso. Um lugar no tempo.

OLHAR AS CAPAS


Nacos de Tempo

Peter Bogdanovich
Tradutores: Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Meneses
Colecção Horizonte de Cinema nº 13
Livros Horizonte, Lisboa, 1986

Billy Wilder acerca dos seus filmes, que não gosta de rever, disse: «Só me apetece é agarrar naquilo e mudar tudo», e sorriu. «É como voltar a encontrar uma rapariga com quem se dormiu quinze anos atrás. Olha-se para ela e pensa-se ”Deus meu, dormi mesmo com ela”?»

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

OLHARES


Henrique Joaquim gestor da Estratégia Nacional de Integração dos Sem-Abrigo considera ser um mito urbano a ideia que há pessoas que querem viver na rua.
Não sei se é ou não mito, mas conheço quem não queira sair da rua.
Motivos só deles.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

OLHAR AS CAPAS


Desafio ao Leitor

Carter Dickson
Tradução: Almeida Campos
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº 153
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Na tarde de sexta-feira, 29 de Abril, o Dr. John Sanders viajou até ao Surrey pelo comboio recomendado.
Não tinha o mínimo pressentimento de que estava à beira do caso criminal que faria nascer cabelos grisalhos aos mantedores da lei e que intrigaria de uma forma sem precedentes tanto a lei como a medicina. Mas Sanders não ia com o espírito despreocupado. Nem mesmo a tarde de Primavera brilhante, com uma brisa suave e um céu claro, de forma que ele não pôde tirar da algibeira uma certa carta e estudá-la novamente como poderia estudar um espécime ao microscópio.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

NO FIM DE CADA DIA


O sol oferece-nos um adeus sempre assombroso, jamais repete o crepúsculo de ontem nem o de amanhã.
Ele é o único que se afasta de maneira tão prodigiosa.
Seria uma injustiça morrer e deixar de o ver.

Eduardo Galeano em O Caçador de Histórias

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

OLHAR AS CAPAS



Pensamentos

Marco Aurélio
Selecção, tradução e prefácios: António Sérgio
Edições Ática, Lisboa, Janeiro de 1947

A melhor maneira de nos vingarmos é não nos tornarmos parecidos com eles.

domingo, 19 de janeiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


Olhem sempre em frente, olhem o Sol, não tenham medo de errar, sendo originais, iconoclastas e anti, o mais anti que puderem, e verdadeiros, fugindo aos velhos caminhos trilhados de pé posto e a todas as conjuras dos velhos do Restelo.

Aquilino Ribeiro

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Diversos livros de Aquilino Ribeiro vieram da biblioteca do meu pai.

Sempre tive grandes dificuldades com Aquilino Ribeiro.

Ainda hoje, é uma enorme lacuna das minhas leituras de autores portugueses.

Mas recordo-me que o único livro de Aquilino que comprei foi A Casa GrandeRomarigães.

A lápis, no canto superior direito da 1º página, o livreiro escreveu: 45$00. Mas não passei da página 54. Sei isto porque, naquele tempo, os livros não se vendiam com as folhas guilhotinadas, tinham de ser abertos com uma faca.

 «De repente senti saudade da velha ferramenta do jovem leitor que fui. A faca de papel. A ferramenta fora de uso morre. A faca de papel, belo objecto, está a desaparecer. E com ele talvez certa leitura.
Jorge Listopad em Secos e Molhados.

 A minha tarefa de leitura ficou-se por essa página. Havia quem comprasse os livros e os abrisse de uma vez só. Eu gostava de ir abrindo à medida que os ia lendo.

Terá sido a velha história: chateei-me de ler tanta palavra que desconhecia, e, numa de preguiça literária, cansei-me da necessidade de tanto ter que pegar no Dicionário.

«O que é um pincha-no-crivo?»

«Tens aí dicionários, procura!»

Pergunta minha na preguicite dos meus 16 anos e a resposta do meu avô.

Mas A Casa de Romarigães tem um começo extraordinário e um final não menos extraordinário.


É pena que se não possa regular a vida como um relógio, andando com os ponteiros para diante e para trás segundo a nossa conveniência. Como eu faria da Quinta do Amparo um jardim maravilhosos, a minha instância de contemptor do Mundo, e de Nossa Senhora, esta doce imagem de faces bochechudinhas, minha amiga do coração?! A Primavera, tantas vezes rebelde ao calendário, rejuvenesce tudo menos o homem. As leis da ciclidade física assim o mandam. Para o ano, por esta altura, voltarão as aves a cantar. Que chova, que faça um sol radioso, com o mundo vegetal pletórico de seiva ou mais aganado, à triste planta humana é que nada a afasta da sua carreira para a morte. Será ela a obra-prima da Criação ou a pior de todas?

Ainda terei tempo para ler o que não li de Aquilino?

Tempo, se bem que cada vez mais curto, talvez tenha. Mas vontade?

Legenda: pág. 285 do 8º volume do velho Dicionário de Morais

OLHAR AS CAPAS


A Casa Grande Romarigães

Aquilino Ribeiro
Livraria Bertrand, Lisboa, 1957

O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!

OLHARES




A comunidade chinesa, com música, canções, dança, artesanato e gastronomia festejou o Novo Ano, o ano do rato, dizem: um animal que significa inteligência e perspicácia para a comunidade, arrastando boas oportunidades.
Calcula-se que mais de 25 chineses estejam registados no nosso país.


sábado, 18 de janeiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


Ensaiar é também aprender a morrer: e morrer também é deixar a vida.

ADOLESCENTE


A íntima cruzada da sua alma dispersa,
o sangue
insuportável, possuíam-no.
E era como um coro, rouco, gregoriano,
esse cavalgar perdido no deserto, esse amalgamar
de cruéis erros de cálculo, de posses
repetidas pela insónia.

Testava o tamanho do seu membro
como quem pretende contratar para si a morte,
ou temia esse glandular inflado do desejo
nas sevícias da infância,
no corpo que cresce só e se repete na noite
numa fala só, isolada do mundo.

Tornado que foi público
o seu acesso ao sexo, a sua forma de estar por entre
a gente e nesse estranho lume caldeado,
tornaram-se os testículos
em sinais de fogo que pouco a pouco
se cobriam de água, impura,
magoada.

E depois disso, diz-se, nunca mais sorriu.

Armando Silva Carvalho em Resumo: a poesia em 2012

OLHAR AS CAPAS


Deixar a Vida

Jorge Silva Melo
Edições Cotovia, Lisboa, Abril de 2002

E assim posso chegar a um novo ensaio geral: trabalhámos dois meses, as regras foram ultrapassadas, as hipóteses estão definidas, o espectáculo pode estrear amanhã. Durmo confiante: a vida vai entrar. Porque tudo o que fazemos nos sombrios dois meses de todas as dúvidas que são os ensaios foi deixar a vida entrar.
Não a quero espartilhar, dominar, dobrar. Quero que ela entre, imprevista, ao sopro tangente dos dias, delicada: em nome de um trabalho responsável.
Ensaiar é também aprender a morrer: e morrer também é deixar a vida.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

POSTAIS SEM SELO


O livro é o salva vidas da solidão.

Ramón Gómez de la Serna em Greguerías

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

OS QUE OS DEUSES AMAM


Morrem novos aqueles
a quem os deuses amam.
Abençoado quem depois de ver
o espectáculo do sol, dos astros, do oceano
e do fogo, parte rapidamente
são e salvo, com o coração tranquilo.
Longa ou breve, Parménon,
nunca a vida te dará coisas mais belas.
É como se estivesses assistindo aos jogos
ou fosses convidado para uma festa.
E quanto mais cedo partires
mais depressa podes repousar.


Legenda: imagem Gina Trippi

OLHAR AS CAPAS



Histórias de Jazz

José Duarte
Capa: Pedro Martins
Abril/Controljornal/Edipresse, Lisboa, Novembro 2201

as histórias do jazz são todas iguais
quando o não são são muito pouco diferentes
mais um episódio ali uma data acolá
um acontecimento vivido uma correcção descoberta
jazz como filho da época das realidades económicas políticas vigentes
de como o jazz dos anos vinte de Armstrong foi diferente
do jazz dos anos trinta de ellington
do dos quarenta de parker
do free dos sessenta e dos noventa

sendo esta a primeira história de jazz escrita em português
sendo o jazz o que é em Portugal uma arte não popular
sem culpa própria que não seja ser linguagem musical estranha
porque vinda de outras origens culturais
esta história deve ser breve de iniciação
fatalmente com faltas
deve ser uma história para principiantes e para bisbilhoteiros
simples e clara que tente esclarecer e desfazer erros e confusões
uma pequena história
para que jazz conste

jazz não tem ainda um século mas por lá próximo anda
é uma música que tem vivido a uma velocidade grande
a cada década seu estilo
a cada estilo vários génios
é assim aliciante contar a sua história por estilos
cada passo estético em consonância com o acidentado correr do tempo
com avanços e recuos
a própria tecnologia se meteu com o jazz e ele com ela
rock cordas percussão afro-cubana colaboraram colaboram
jazz é a primeira música de fusão de variadas fusões
música de criação e consumo instantâneo
floresta de estilos em coabitação permanente

jazz afinal uma palavra que quer dizer nada
como João

lisboa junho 2000