domingo, 31 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
Depois,
raspar com as unhas no chão e enterrar-me,
deixando os olhos de fora
para que neles poise
o último orvalho da manhã.
João José Cochofel em 46º Aniversário
Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia
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VITÓRIA AMARGA
Há vitórias
dramáticas.
Noite de 26 de
Novembro de 1969
Este é o bilhete
do Benfica 3 Celtic 0
2ª mão da 2ª
eliminatória da Taça dos Clubes Campeões Europeus.
Na 1ª mão o
Benfica tinha perdido por 3 a 0.
Tendo o Benfica
feito o mesmo resultado, houve prolongamento mas o resultado não sofreu
alteração.
Naquele tempo o
desempate não se fazia com a marcação de grandes penalidades.
O desempate era
feito por moeda ao ar.
A decisão foi
feita na cabina do árbitro, com a presença dos capitães das duas equipas.
Uma rádio chegou
a difundir que a sorte calhara ao Benfica, mas depressa se ficou a saber que
era o contrário.
Os escoceses do
Celtic passaram à eliminatória seguinte.
Foi triste o
regresso a casa.
sábado, 30 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Legenda: A Ilha do Cão, quadro de António Pedro
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É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS
Nos montes de papelada que andam pela casa, perdidos em pequenos montes, em pastas, fui dar com este anúncio de O Toni dos Bifes.
Não por acaso, mas por causa de Carlos de Oliveira, Augusto Abelaira, José Gomes Ferreira, cafés que fechavam para serem substituídos por dependências bancárias, falou-se aqui de O Toni dos Bifes.
O recorte não tem data, mas é fácil constatar que é uma data de antes do 25 de Abril, porque o anúncio ostenta que O Toni dos Bifes recebeu um prémio do S,N.I. que era o ministério da propaganda da ditadura de Salazar.
Para além dos famosos bifes, também se podia degustar rancho à moda de Viseu, feijão com entrecosto, ensopado de lulas.
Tudo comida que sabia a comida e a léguas das modernices que agora nos impingem.
E agora já não está aberto aos domingos.
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Restaurantes
QUOTIDIANOS
Os homens aos quarenta
aprendem a fechar muito devagar
as portas dos quartos a que
não regressam.
Descansam no patamar das escadas
e sentem que elas se movem
como o convés de um navio,
embora quase não sopre um vento.
Vislumbram
ao fundo de um espelho
o rosto do rapaz que em segredo tenta
fazer a gravata do pai.
E o rosto desse pai
ainda quente com o mistério da espuma.
Agora eles mesmos já são mais pais do que
filhos.
Alguma coisa os preenche, algo
que se parece com o som dos grilos
ao crepúsculo, imenso,
enchendo os bosques que ficam aos pés da
ladeira
e detrás das casas hipotecadas.
as portas dos quartos a que
não regressam.
Descansam no patamar das escadas
e sentem que elas se movem
como o convés de um navio,
embora quase não sopre um vento.
Vislumbram
ao fundo de um espelho
o rosto do rapaz que em segredo tenta
fazer a gravata do pai.
E o rosto desse pai
ainda quente com o mistério da espuma.
Agora eles mesmos já são mais pais do que
filhos.
Alguma coisa os preenche, algo
que se parece com o som dos grilos
ao crepúsculo, imenso,
enchendo os bosques que ficam aos pés da
ladeira
e detrás das casas hipotecadas.
Pedro Mexia,
poema do livro Uma Vez Que Tudo Se Perdeu, colocado por Nicolau Santos
na sua coluna no suplemento de Economia do Expresso, 28 de Novembro de
2015.
OLHAR AS CAPAS
Poesias
Carlos de
Oliveira
Colecção Poetas
de Hoje nº 3
Portugália
Editora, Lisboa, Abril de 1962
Vilancete
Castelhano de Gil Vicente Passado ao Portguês
Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.
Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
Acabei um livro e não tenho a mínima ideia do que vou escrever a seguir. Não tenho a mínima ideia, sequer, se virá outro livro. Sinto-me como um cão à procura de um osso enterrado que não sabe onde está. Cavo aqui com as patas da frente, cavo acolá e nada. Se calhar acabaram-se os ossos, se calhar acabei. É sempre assim e o medo de não ser mais capaz é horrível. Um vazio, uma angústia. Não sei fazer mais nada, desde que me conheço não faço mais nada. Sento-me nesta cadeira, sento-me naquela. Eu só queria sentir qualquer coisa a inchar cá dentro, ainda não bem palavras, uma coisinha qualquer, mesmo mínima, que depois, pouco a pouco, se transforma, cresce, ganha sentido, vai aparecendo.
António Lobo
Antunes, de uma crónica na Visão
Legenda: ilustração de Richard Dooling
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À VOLTA DOS EDITORES
Pela entrevista que Maria Ondina Braga deu à revista Ler, ficámos a saber dos maus tratos que os
seus livros, ela própria, mereceram dos editores que lhe calharam em (des)sorte.
Traduções mal
pagas, outras nem pagas foram e pelas reedições dos livros que traduziu (Erskine
Caldwell, Herbert Marcuse, Pearl S. Buck, Graham Greene, Bertrand Russell, John
Le Carré, Anais Nin, Tzvetan Todorov, entre outros) nem um tostão.
Lembremos
Joaquim Figueiredo Magalhães, um editor exemplar.
Numa entrevista
a Catarina Portas, Público, 1 de Dezembro de 2008, falou dos seus
tradutores:
Escolhi escritores como tradutores porque eram homens
que sabiam português. É que se eu quisesse alguém que soubesse línguas,
entregava as traduções ao porteiro do Avenida Palace que sabia oito idiomas, só
não sabia era português. Mas também preferia os escritores porque gostavam do
que traduziam, traduziam por gosto.
Catarina Portas
adianta que Figueiredo Magalhães pagava bem as traduções não se esquecendo de,
em cada reedição, enviar um cheque, tanto a tradutores como capistas, no valor
de um terço dos honorários iniciais.
Todos os
escritores necessitam de um bom editor.
Razão de sobejo
tinha Maria Ondina Braga para dizer que a sua sorte tinha sido bem fraca.
Entendem-se bem
as razões por que alguns autores, José Saramago à cabeça, abandonaram a LEYA.
Eles não gostam
de livros.
Adoram cifrões!
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quinta-feira, 28 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
Admiram-se às vezes certas pessoas de que um autor
medíocre seja normalmente o triunfador do seu tempo. Mas o autor medíocre é que
á admirado pelos medíocres. E a mediocridade é o que há de melhor distribuído
pelos homens. Os medíocres são assim em maior número. E nesse caso também o
número faz a força.
Vergílio
Ferreira em Conta-Corrente, 5º Volume.
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Vergílio Ferreira
OLHAR AS CAPAS
Para Sempre
Vergílio
Ferreira
Livraria
Bertrand, Lisboa, Março de 1984
Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está
quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final
do meu destino. E uma comoção abrupta – sê calmo. Na aprendizagem serena do
silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu, e a vida que em ti foi
acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros – é a História que se diz? abro
a porta do quintal. É um portão desconjuntado, as dobradiças a despegarem-se.
Há muito tempo já que aqui não vinhas. Sandra era da cidade, gostava da
capital, detestava a vida da aldeia. Lá ficou. Abro a porta devagar, ela range
para o espaço do jardim. É um jardim morto, as plantas secas, os canteiros
arrasados nas pedras que os limitavam. Alguns têm só terra ou hastes secas de
roseiras. Vejo-as do portão, o carro à entrada a trabalhar. Depois meto-o na
garagem, que é um barracão ao lado da casa. Um silêncio súbito, silêncio da
terra. Só vozes ermas dos campos, ouço-as no calor parado da tarde, Reparo
agora melhor no pequeno jardim. Uma selva bravia. As plantas selvagens
irromperam de todo o lado, aos cantos dos muros à volta, junto à casa. Há
algumas armações de madeira ainda, já apodrecidas, suspensas de arames, sem
flores. Olho-o um instante, olho a casa, circunvago o olhar. Preparar o futuro –
o futuro… E uma súbita ternura não sei porquê. Silêncio. Até ao oculto da tua
comoção. Preparar o futuro, preparação para a morte. Está certo. Parte-se
carregado de coisas, elas vão-se perdendo pelo caminho. Se ao menos uma breve
ideia. Não tenho. Não é bem a vida que faz falta – só aquilo que a faz viver.
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Vergílio Ferreira Livros
NOS CEM ANOS DE VERGÍLIO FERREIRA
´
Nunca me puxou
muito o pé para Vergílio Ferreira, nada me levou a passar aquela linha que
conduz aos escritores do meu panteão privado.
O primeiro livro
que li foi Manhã Submersa, adaptado ao cinema por Lauro António, e,
tanto o livro como o filme, são interessantes.
Deixei a meio
três livros; Nítido Nulo, Rápida a Sombra, Cântico
Final.
Quanto a Para
Sempre há quem considere o seu melhor romance e há quem não hesite em
rotulá-lo de obra-prima.
Não desgostei.
Não lembro bem,
mas o desencanto com Vergílio Ferreira, o ter deixado livros a meio, nem outros
sequer ter começado, terá a ver com a má ideia que tive em comprar – e ler
os dois primeiros volumes de Conta-Corrente.
Ainda passei os
olhos pelo 3º e 4º volumes mas não fui mais além.
Azar meu e,
possivelmente, do Vergílio Ferreira.
Fiquei com
pouca, ou nenhuma, vontade de voltar a Vergílio Ferreira.
Comprei,
recentemente, Vagão J, quando o Público publicou
alguns livros proibidos pela ditadura e irei lê-lo, porque é tempo em que
Vergílio Ferreira percorreu caminhos do neo-realismo – já dentro
do neo-realismo aspirava a coisas diferentes.
Mário Ventura,
que com Vergílio Ferreira conversou, pergunta-lhe seConta-Corrente não
é um ajuste de contas, ao mesmo tempo que lhe diz que o livro causou imensas
reacções de desagrado, porventura até em amigos seus.
O autor responde
que as reacções eram esperadas e não me preocupam muito e
supõe mesmo que a pessoa mais maltratada acaba por ser ele.
As pessoas leram-me muito mais este Diário do que me
leram os romances, ainda da
conversa com Mário Ventura.
Logo a abrir o
seu Conta-Corrente, começou a escrevê-lo, poucos dias depois de ter
feito 53 anos, confessa:
A verdade é que, quando me encontro bem pela frente
reconheço-me intragável. Mas enfim as virtudes são também desgostantes. De
resto, sou pouco abonado. Segundo a Regina, as virtudes que tenho têm mesmo
raízes viciosas: tolerância por fraqueza, interesse pela arte, por vaidade e
coisas assim.
Os volumes de Conta-Corrente são
uma inutilidade.
Como Vergílio Ferreira
é incapaz de escrever mal, resulta que estes volumes mais não são do que um
desfiar de pequenas vinganças, má-língua, amargos de boca e de alma, bocados
soltos que permitem concluir que o autor sempre teve a mania da perseguição.
A páginas 233 do
3º volume, recorda uma conversa ao pé da orelha com Óscar Lopes:
Que mania que V. tem da perseguição.
No fundo, sempre
teve a obsessão de que todos diziam mal dele, o subalternizavam, ou a mágoa
oculta de não ser nada para ninguém porque ninguém o referia.
É essa mágoa que
a páginas 252 desse mesmo 3º volume, a 16 de Fevereiro de 1981, o leva a
escrever:
Não, não. Agora é a sério. Vou decidir de uma vez para
sempre que sou um grande escritor. Estar à espera de que mo digam é uma
estupidez. Como é que eles mo podem dizer, se não têm grandeza que o entenda?
Vou decidir de uma vez para sempre por mim.
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quarta-feira, 27 de janeiro de 2016
FADO PARA SUECOS
O tal livro que é uma enciclopédia do Fado para suecos entenderem, da autoria de Ulf Bergqvist, em duas páginas e meia aborda o Fado de Coimbra e refere os nomes de Adriano Correia de Oliveira e José Afonso
Consegue perceber-se que o texto informa que Adriano e José Afonso foram opositores ao regime de Salazar.
Também que, António Almeida Santos, recentemente falecido, é referido como ministro de Mário Soares e intérprete de Fado de Coimbra.
Tudo isto sou eu que deduzo porque da língua sueca pesco zero.
Publicam-se versos da Grândola Vila Morena e, na página seguinte a tradução sueca de Trova do Vento Que Passa de Manuel Alegre.
Quase no fim é citado Cavaco Silva, não sei bem a que propósito.
Nem quero saber.
O que sei, e me interessa, é que a partir de 9 de Março vai dar de frosques.
Irra que foi demais tanto Cavaco!
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Salazar
A MAGIA DO NICO
Foi ontem em Moreira de Cónegos.
São golos destes que fazem do futebol o maior espectáculo do Mundo.
CANTIGA
Deixa-te estar
na minha vida
Como um navio
sobre o mar.
Se o vento sopra
e rasga as velas
E a noite é
gélida e comprida
E a voz ecoa das
procelas,
Deixa-te estar
na minha vida.
Se erguem as
ondas mãos de espuma
Aos céus, em
cólera incontida,
E o ar se tolda
e cresce a bruma,
Deixa-te estar
na minha vida.
À praia, um dia,
erma e esquecida,
Hei, com amor,
de te levar.
Deixa-te estar
na minha vida.
Como um navio
sobre o mar.
Cabral do
Nascimento em 366 Poemas Que Falam de Amor
Legenda: pintura
de Chris Pointer
O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?
O 25 de Abril de
1974 apanhou o nº 30 do Cinéfilo, referente a 27 de Abril de 1974, já
fechado, razão porque não há qualquer referência à data histórica.
Apenas no nº
seguinte, referente a 4 de Maio, a revista não teve intervenção da sinistra censura.
Finalmente!
Nos recados
livres, ressalta a notícia da exibição do Couraçado Potemkine de cujo cartaz nafachada do Cinema Império, aqui, se fez referência.
São estes os
recortes, onde se destaca um alerta contra os especuladores e os mixordeiros:
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O Qu'é Que Vai No Piolho?
O COMBOIO DAS 23 HORAS E 28 MINUTOS
No tempo em que
havia jornais, compostos e impressos à moda antiga, havia uma regra de ouro:
não perder os comboios.
Mário Zambujal,
jornalista que viajou por A Bola, Diário de Lisboa, O Século, Diário de
Notícias, alguns mais, estava em O Século no Verão Quente de 1975, tempos tão tumultuosos
como gratificantes.
Foi numa velha
entrevista ao Mário Zambujal que li, bem contadinha como só ele sabe, a
história dos jornais não poderem perder os comboios.
O Zambujal,
conta-a assim:
…estávamos no auge de 75. Vivi o 25 de Abril e tudo o
que se seguiu com muita emoção e alegria... mas acontece que sou muito
profissional. O comboio das 23 horas e 28 minutos é o comboio das 23 horas e 28
minutos. E começámos a perdê-lo muitas vezes, por isto e por aquilo, sempre com
explicações muito sérias e plausíveis. Mas para mim isso era inaceitável: não
se pode perder nunca o comboio. Vale para jornais e para o resto.
Sei que havia muito rebuliço, mas bati-me sempre
contra. Não contra o rebuliço: contra o perder-se o comboio. Não aceitava isso.
O trabalho tinha que estar à frente. Mas o cansaço, apesar de tudo, vinha mais
do rebuliço interno, uns contra os outros e, ainda por cima, gente de quem eu
era amigo colocada nos dois lados da barricada.
Sou muito amante da paz, da concórdia, de ambientes
agradáveis e aconteciam coisas do quilé. Um dia até tive que travar à última
hora uma edição que ia aparecer com o Roby Amorim, do MRPP, como director... O
Roby, era um grande jornalista e de quem eu gostava. Mas as coisas estavam a
ficar azedas e eram golpadas atrás de golpadas. Individualmente dava-me bem com
todos, mas já não aguentava mais.
Nessa altura disse: vou-me embora, quero ir para as
Berlengas.
Legenda: fotograma do filme Deadline de Richard Brooks com Humphrey Bogart
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Mário Zambujal,
Verão Quente 1975
terça-feira, 26 de janeiro de 2016
NOTÍCIAS DO CIRCO
Os contribuintes
não vão receber qualquer devolução da sobretaxa paga em 2015, porque a evolução
da receita de IRS e IVA durante o ano não foi superior à prevista no Orçamento
do Estado do ano passado.
Recorde-se que,
em plena campanha eleitoral, o Governo de Direita de Passos e Portas chegou a dizer
que o Estado iria devolver 35,3% da sobretaxa de IRS paga em 2015.
QUOTIDIANOS
A velha, e sábia, vizinha dizia:
A reforma significa duas vezes menos dinheiro e duas
vezes mais de marido em casa.
Legenda:
fotografia de Chris Killip.
RETRATO DE RAPARIGA
Muito hirta de pé no patamar do sono
Contornando sem pressa a curva de uma artéria
Por mais ocasional que fosse o nosso encontro
dava-me a entender que estava à minha espera
Com um livro na mão com um lenço ao pescoço
uma expressão cansada a palidez inquieta
de quem andasse ao vento ou trouxesse no rosto
em vez de pó de arroz um pó de biblioteca
surgia de repente onde sempre estivera
em Zurique em Paris em Liège em
Colónia
Por único endereço uma carreira aérea
Mas não sei se era louca ou apenas mitómana
Onde quer que eu a visse uma coisa era certa
Numa rua num bar num museu numa doca
dava-me a entender que estava à minha espera
dava-me a entender que se chamava Europa
David Mourão-Ferreira
de Do Tempo ao Coração em Obra Poética
Legenda:
fotografia de David Solomons
O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?
Nasci na Mestre
António Martins, uma rua situada entre a Avenida General Roçadas e a Rua da Penha
de França.
Num espaço
abrangente,havia uma larga mão cheia de cinemas: o Royal, o Cine-Oriente,
o Max, o Imperial, o Lys, o Rex,
Todos cinemas de
reprise, salas populares, com preços acessíveis, direito a ver dois filmes.
O Império
era um outro luxo perto das tais avenidas que Salazar pretendia novas para
esconder as misérias de outras ruas da cidade.
Cinema de
estreia praticava preços acima das posses da malta do bairro.
Só em dias de
festa se ia ao Império.
E os dias de
festa eram escassissimos.
Mais tarde
frequentei-o assiduamente.
Não só pelas
estreias que iam acontecendo, também pelas Terças-Feiras Clássicas, e para ver
as peças de Teatro que ali foram representadas pelo Teatro Moderno de
Lisboa.
Já não falo dos
filmes vistos no Estúdio, sala situada no último piso do edifício, com
uma soberba vista para a Alameda D. Afonso Henriques, e inaugurada a 29 de
Outubro de 1964 com o belíssimo Os Chapéus de Cherburgo.
Do Teatro
Moderno de Lisboa, como do Estúdio, haverá, por um destes dias, outras
conversas.
Ainda do Cinema
Império recordo: juntava-me à concentração na Alameda, para o festejar do
primeiro 1º de Maio, quando olho a fachada do Império e vejo cartaz de O Couraçado de Potemkin.
Jorge Silva Melo,
também, cita o pormenor no seu Século Passado:
…é um passeio vazio, sem gente nenhuma a estas horas,
nem a sombra da multidão que naquele distante 1º de Maio de 1974 ali descia,
pelas três da tarde, e via içarem no Império o cartaz d’ O Couraçado de
Potemkin, imagem que não esqueço, vitória, dia de sol e voz clara, tanta gente
sem medo e tão feliz.
O Cinema Império começou a ser construído
em 1947, concluído em 1952 e inaugurado em 1955, sendo um projecto de Cassiano
Branco.
À entrada, um
painel de azulejos de João Fragoso e nos foyer do 1º e 2º Balcão um mural de
Luís Dourdil (1º balcão) e pinturas de Frederico George.
Como os cinemas
também se abatem, fecharam portas os cinemas de bairro, os velhos «piolhos»,
onde tanta gente agarrou o gosto pelo cinema.
O mesmo
aconteceu ao Império.
As salas de
cinema que começaram a surgir nos Centros Comerciais desviaram espectadores e
salas, como o Império, passaram a ter os dias contados.
Fechou portas no
dia 31 de Dezembro de 1983 e em 1992 o Império passou a ser palco e circo
de uma seita-dita-religiosa.
Ainda por lá se
encontram.
A seita tentou encerrar
o Café Império, de que são proprietários porque compraram todo o edifício,
mas movimentações dos trabalhadores e clientes, com o forte apoio da Câmara
Municipal, impediram mais um crime-de-lesa-pátria.
O Cinema
Império foi inaugurado a 24 de Maio de 1952.
Margarida
Acciaiuoli, no seu livro Cinemas de Lisboa, coloca o Império,
juntamente com o São Jorge e o Monumental, no capítulo: As
Grandes Catedrais.
O filme de
estreia foi O Preço da Juventude.
No programa de
estreia, as sessões começavam com a exibição de um Jornal de Actualidades,
o documentário Madrid eseguia-se um intervalo.
Um outro intervalo acontecia a meio da
exibição do filme.
Os intervalos eram
local de encontro e convívio no agradável conforto dos foyers do Cinema.
No topo, reproduz-se
a capa do 1º Programa do Cinema Império.
E esta é a
apresentação pública:
Legenda:
O programa da
inauguração do Cinema Império pertence ao acervo cinematográfico de Luís
Miguel Mira.
A fotografia do
cartaz do Couraçado Potemkim, na fachada do Império, foi tirada do blogue À Pala de Walsh.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
E a gente chora porque quer agradecer, claro, dançar o
que ele dançou, cantar o que ele cantou, contar como foi para nós, como fomos
felizes por um instante, heróis por um dia, aquela noite em que um disco salvou
a nossa vida, as noites em que afinal não morremos, as manhãs em que já éramos
outros. Fazemos aquilo que os vivos fazem aos mortos: para os tornarem
imortais, e para continuarmos vivos.
Alexandra Lucas
Coelho no Público.
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Postais Sem Selo
OS AMIGOS DE MANUEL COSTA E SILVA
Os Meus Amigos é um livro-homenagem a Manuel Costa e Silva.
O livro é
composto por fotografias de amigos de Manuel Costa e Silva e para esses amigos,
o editor Nelson de Matos, arranjou alguém que desses amigos falasse.
São estes os
amigos de Manuel Costa e Silva que aparecem no livro:
Fernando Lopes –
texto de João César Monteiro
Maria João
Seixas – texto de Maria Belo
José Gomes
Ferreira – texto de Fernando Lopes Graça
Lia Gama – texto
de Baptista-Bastos
Luandino Vieira –
texto de Augusto Abelaira
João Hogan –
texto de Virgílio Domingues
Eugénio de
Andrade – texto de Eduardo Prado Coelho
Carlos de
Oliveira – texto de Salvato Teles de Menezes
Rogério Ribeiro –
Alexandre Cabral
Sérgio Niza –
José Manuel C. Mendes
Maria do Céu
Guerra – Vitorino d’Almeida
José Saramago –
Carlos Eurico da Costa
João Abel Manta –
José Carlos de Vasconcelos
Ilda Moreira –
Luísa Dacosta
Ricardo Pais –
Maria Velho da Costa
António Borges
Coelho – José Saramago
Maria Emília
Correia – Miguel Serras Pereira
Frederico George
– Daciano Costa
José Cardoso Pires – Maria Lúcia Lepecki
Vitorino – Maria do Céu Guerra
António Ole – David Mestre
Zita Duarte – Fernando Lopes
Pedro Bessa Múrias – pelo próprio
Júlio Pomar – pelo próprio
Vespeira – António Ramos Rosa
Mario Vargas Llosa – Irineu Garcia
Virgílio Domingues – Rui Mário Gonçalves
João Cutileiro – Sílvia Chicó
Aníbal Falcato Alves – António Simões
Eduardo Geada – Artur Semedo
Rosalina Gomes d’Almeida – Sérgio Niza
José Bizarro – Mário Barradas
Legenda. Fotografia de Manuel Costa e Silva
tirada de Os Meus Amigos.
OLHAR AS CAPAS
Os Meus Amigos
Manuel Costa e
Silva
Apresentação:
José Cardoso Pires
Capa: Fernando
Felgueiras
Publicações Dom
Quixote, Lisboa, Novembro de 1983
Alguém que passeia a infância – pelo menos é assim que
eu o penso quando lembro aquele não sei quê de desamparo e de teimosia solitária
que há nos gostos dele e no andar, aquela prevalência dos olhos sobre o falar,
coisas que (bem sabemos) são ilusões da sábia infância que nós maltratámos
quando foi nossa e que depois mentimos quando dizemos que no princípio era o
verbo.
ON Costa e Silva, não: guardou-as. O Costa e Silva
sabe até demais que no princípio é a luz e só muito mais tarde é que vem o
verbo. Que o verbo é que nos mata, nunca o olhar, e daí aquele silêncio
discreto, quase à margem, que é a sua maneira de estar presente e conversar com
os amigos. Só com o ver, digamos. De maneira que antes que a pessoa tenha tempo
de olhar o passarinho já ele captou nos contrastes da lama mais do corpo e lhe
registou a espécie de luz que há nela.
Talvez por sortilégio destes é que o ofício de olhar é
mais que todos misterioso, os pintores que o digam. E os fotógrafos, que é este
o caso. E os solitários do deserto. As aves mudas. Um ofício predestinado, todo
em iluminações súbitas e sempre a negar a aparência e a ver para longe e para
lá. Será?
Como fotógrafo de cinema, o Costa e Silva aprendeu
essa arte, a muitas latitudes e a muitas declinações: suécias, alemanhas,
américas, portugais de cenário e de rua, alentejos. Sabe-a por inteiro e com
todas as mágicas da lanterna universal, ou seja, luz em cima de luz, cor recobrindo
a cor, o artifício a sobrepor-se ao real para transmitir com mais verdade o
mundo que se nos oferece. Mas fora do cinema ele inverte o jogo: aí a solidão
total; tudo se passa numa intimidade estricta consigo mesmo e em despojado
rigor, sem adjectvos.
Descobriremos depois que os sujeitos, as primeiras
pessoas dessas fotografias, há muito que estavam dentro dele e que não fez mais
que as ajustar às figuras reais que fotografou. Como que rebatendo-as de dentro
para fora, perdoe-se-me a imagem. Só assim se percebe que nos Retratos dos
Amigos haja tanta luz pessoal dele próprio, Costa e Silva, tantos dos seus
silêncios e dos seus sinais dispersos. A sua amizade repartida, afinal.
Amizade: uma busca de perfeição no encontro com os
outros, o nossos reflexo sobre a harmonia das contradições.
(Apresentação de
Os Meus Amigos por José Cardoso Pires)
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José Cardoso Pires,
Manuel Costa e Silva,
Olhar as Capas
domingo, 24 de janeiro de 2016
NOTÍCIAS DO CIRCO
Marcelo Rebelo
de Sousa foi eleito Presidente da República.
Emídio Rangel disse
um dia que uma estação de televisão que tem 50% de share vende tudo, até o
Presidente da República! Vende aos bocados: um bocado de Presidente da
República para aqui, outro bocado para acoli, outro bocado para acolá, vende
tudo! Até sabonetes!
Com a eleição do
novo presidente da República deixamos de aturar a múmia cavaco-silva-mais-a-sua-maria:
Saio no dia 9 de Março e já tenho direito a descanso.
Mas, lembrando
Woody Allen, a propósito da eleição de Gerge W. Bush, o novo inquilino de Belém
é bem o tipo de palhaço de que não precisamos.
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UMA CONCHA BURGUESA E ARISTOCRATIZANTE
Parece que é sempre assim, se atendermos ao ar
enlevado com que todos olham o céu e proclamam com orgulho: “É isto a
Bretanha!” Será. Um tempo intransigentemente brumoso, com a areia ensombrada
pela paisagem ininterrupta das nuvens, e as pessoas atravessando invernosamente
a praia, embrulhadas em camisolões de malha grossa, “kispos”, “anoraks” e
“parkas”, todo um reportório de protecções para o frio cortante e a agressão
das marés.
Recordo-me – mas o contexto é radicalmente diferente –dos verões passados em São Martinho do Porto, “um microclima”, como dizia o meu pai, havia sol em todo o lado, e mal nos aproximávamos das Caldas da Rainha víamos uma concentração de nuvens para os lados do Atlântico, e a alternativa era simples, ou as nuvens ficavam todo o dia, ou havia uma ventania que as varria e tornava a praia insuportável. Acordávamos e corríamos a encostar a atesta às janelas, na melancolia de uma chuva miudinha, mas sempre na esperança de que isto vai levantar, e como se sabe ao meio-dia ou carrega ou alivia. São Martinho: poucos lugares portugueses tiveram para mim este peso mágico, dunas de infância em Salir, merendas na praia, castelos de areia, o Catitinha, o homem dos barquilhos, o domingo das regatas, o bilhar à noite, a roleta, as bicicletas da rua dos cafés, o jogo do prego, as excursões colectivas ao cinema para os lugares da frente, os mais baratos, onde não estavam os pais, as idas ao Facho, a descida à Praia da Adraga, o farol e a lenda do navio encalhado, as sestas, a descoberta do amor, os amuos de fim de tarde, os passeios de barco, as leituras no pinhal, a Maria Eduarda, o Artur e os seus estudos de Direito, as discussões políticas, o ir comprar os jornais, os confrontos sarcásticos entre o Benfica e o Sporting, o efeito do 25 de Abril num lugar profundamente reaccionário, os insultos oblíquos, umas caçarolas com bifes e batata fritas que se foram reduzindo e se passaram a chamar “crises” num acto de resistência dos condes e marqueses à política do regime democrático, as conversas e loucuras do Luso Soares, o grupo, o bando, a utopia, a areia nos olhos, a felicidade, o fim do Verão. Mas São Martinho era uma concha burguesa e aristocratizante, um ninho familiar, amável, confortável e doméstico, enquanto Saint-Malo tem uma forma desabrida de nos atrair, é como se passássemos de uma aventura dos cinco para um romance do Sandokan, o tigre da Malásia, e saímos da baía, e afrontamos as ondas, e caminhamos para o mar largo, e deixamos a costa a perder de vista, e sentimo-nos definitivamente abandonados, expostos à inclemência dos céus, para sempre adultos, guiados por estrelas vacilantes, sem bússola nem mapa.
Recordo-me – mas o contexto é radicalmente diferente –dos verões passados em São Martinho do Porto, “um microclima”, como dizia o meu pai, havia sol em todo o lado, e mal nos aproximávamos das Caldas da Rainha víamos uma concentração de nuvens para os lados do Atlântico, e a alternativa era simples, ou as nuvens ficavam todo o dia, ou havia uma ventania que as varria e tornava a praia insuportável. Acordávamos e corríamos a encostar a atesta às janelas, na melancolia de uma chuva miudinha, mas sempre na esperança de que isto vai levantar, e como se sabe ao meio-dia ou carrega ou alivia. São Martinho: poucos lugares portugueses tiveram para mim este peso mágico, dunas de infância em Salir, merendas na praia, castelos de areia, o Catitinha, o homem dos barquilhos, o domingo das regatas, o bilhar à noite, a roleta, as bicicletas da rua dos cafés, o jogo do prego, as excursões colectivas ao cinema para os lugares da frente, os mais baratos, onde não estavam os pais, as idas ao Facho, a descida à Praia da Adraga, o farol e a lenda do navio encalhado, as sestas, a descoberta do amor, os amuos de fim de tarde, os passeios de barco, as leituras no pinhal, a Maria Eduarda, o Artur e os seus estudos de Direito, as discussões políticas, o ir comprar os jornais, os confrontos sarcásticos entre o Benfica e o Sporting, o efeito do 25 de Abril num lugar profundamente reaccionário, os insultos oblíquos, umas caçarolas com bifes e batata fritas que se foram reduzindo e se passaram a chamar “crises” num acto de resistência dos condes e marqueses à política do regime democrático, as conversas e loucuras do Luso Soares, o grupo, o bando, a utopia, a areia nos olhos, a felicidade, o fim do Verão. Mas São Martinho era uma concha burguesa e aristocratizante, um ninho familiar, amável, confortável e doméstico, enquanto Saint-Malo tem uma forma desabrida de nos atrair, é como se passássemos de uma aventura dos cinco para um romance do Sandokan, o tigre da Malásia, e saímos da baía, e afrontamos as ondas, e caminhamos para o mar largo, e deixamos a costa a perder de vista, e sentimo-nos definitivamente abandonados, expostos à inclemência dos céus, para sempre adultos, guiados por estrelas vacilantes, sem bússola nem mapa.
Eduardo Prado
Coelho em Tudo o Que Não Escrevi”, 2º Volume
Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.
sábado, 23 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
Valerá a pena você gastar tanta inteligência para explicar
aos parvos que são parvos?
De uma carta de
Sophia Mello Breyner Andresen para Jorge de Sena
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CORAÇÃO POLAR
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
Manuel Alegre
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
Manuel Alegre
Legenda: não foi
possível identificar o Autor/Origem da fotografia.
OLHAR AS CAPAS
Pátria
Guerra Junqueiro
Livraria
Chardron, de Lélo & Irmão, Lda, Porto s/d
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e
macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta
de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas,
feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum
coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;
Um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem
donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro,
porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um
lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de
lagoa morta.
(Anotações)
(Anotações)
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016
À LUPA
Mérito da candidatura de Sampaio da Nóvoa: é a
candidatura que mais próxima está da solução governativa actual. E como eu acho
que é importante alguma estabilidade dessa solução governativa, é importante
que o Presidente possa ser fiável em relação a um apoio a essa solução
política.
POSTAIS SEM SELO
Escrevo como vivo, à mercê das horas e dos dias, à
mercê de mim mesma. E isto já é compensador.
Maria Ondina
Braga
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A MECÂNICA DA DESISTÊNCIA
São bem interessantes
as crónicas que, às sextas-feiras, Mário Cláudio assina no Diário de
Notícias.
Agora, que aqui se trouxe Maria Ondina Braga, uma
escritora caída no esquecimento, Mário Cláudio invoca hoje uma outra escritora
esquecida: Luísa Dacosta.
A crónica de
hoje, abre assim:
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Mário Cláudio
NOTÍCIAS DO CIRCO
Ora, estas eleições vão eleger um Presidente
infinitamente melhor do que o eleito nas duas anteriores.
Ferreira
Fernandes, hoje, no Diário de Notícias
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ESCOLHEU A SOLIDÃO
Maria Ondina Braga faz parte do enorme lote de escritores caídos no quase (?) completo
esquecimento.
Numa entrevista,
de cortar o coração, dada à revista Ler (Outubro de 1990) lamentava-se o
quanto era maltratada pelos editores.
Atente-se:
O meu primeiro livro Eu Vim Para Ver a Terra foi um livro que me trouxe grande desgosto:
saiu cheio de cortes e gralhas, o editor não me deu para revisão, os caracteres
chineses apareceram até ao contrário!
Traduzi durante mais de dezanove anos, quase vinte, e
hoje, ao lembrar-me disso, espanto-me. Traduções que me pagavam um ano e dois
anos depois de as ter entregado, que, às vezes, uma editora (pelo menos) não me
quis pagar. Isto já sem falar do pouquíssimo que pagavam todas. E não recebia
nenhuma percentagem nas edições frequentemente sucessivas, nem quando o editor
vendia o livro a uma organização editorial.
A minha sorte tem sido bem fraca: editores que não
pagam os direitos de autor ou pagam apenas uma mínima parte, não dão à
Sociedade Portuguesa de Autores a relação dos livros existentes, houve um que
fez edições piratas a há depois os que abrem falência, o autor fica separado da
sua obra, como aconteceu com a editora dos meus dois últimos livros, não pagou,
o caso foi para contenciosos da SPA, que, por sua vez, também nada resolve.
Nunca tive um editor que se empenhasse na promoção da minha obra e, como me não
dão prémios, espanto-me até se la se vender.
Depois desta
triste e lamentável atitude dos editores para com os seus autores, perguntaram
a Maria Ondina Braga das razões de escrever:
Difícil para mim dizer a razão por que escrevo. Talvez
porque espiritualmente isso me compensa um pouco da absurdidade da vida. O
certo é que, se no princípio da minha carreira me fosse possível avaliar o
preço por que ela me ia ficar, outra eu não escolheria. Através da escrita
tenho conhecido gente agradável e de valor e tenho tido bons momentos. Eu
propriamente não escolhi ser escritora. Quando em 1963, em Macau, escrevi Estátua de Sal, pensava lá em publicar um
dia esse livro! Nada comigo nunca foi premeditado ou programado. Escrevo como
vivo, à mercê das horas e dos dias, à mercê de mim mesma. E isto já é
compensador.
Maria Ondina Braga morreu a 14 de Março de 2003.
Legenda: Busto
de Maria Ondina Braga, na Avenida Central em Braga.
OLHAR AS CAPAS
A Casa Suspensa
Maria Ondina
Braga
Colecção
Fantástico nº 1
Relógio d’Água
Editores, Lisboa, Dezembro de 1982
Isa: Esta minha má consciência, esta sensação, como
diria a minha avó, de andar de fora da graça de deus, traz-me à ideia, mal
comparado, o caso daquela mulher que encontrei há meia dúzia de anos numa
estação de caminho de ferro da linha do norte. Obrigaram-nos a desembarcar ali
por causa de um descarrilamento na paragem a seguir. Outubro. Na
sala-de-espera, eu, ela, e um homem de queixo no peito a ressonar. Que é dos
outros companheiros? Se calhar juntaram-se e fretaram um táxi até Famalicão, ou
foram a pé. Vivia perto, mas lá pelos caminhos de Cristo àquela hora não se
atrevia, a um lugar desviado. Vou-me informar da demora. Ao regressar, já alguém
acendra a luz sumida do tecto. Baixinha, chupada, grisalha, um olho globoso e
desfocado, a minha parceira de viagem: «Aí vem o de Leixões!» O olho vesgo na
minha direcção ou na do cais? Sempre atrasado, o de Leixões não parava. Às oito
e três quartos, o mercadorias de Matosinhos. O de Espinho, às nove e quinze.
Ainda cá estaremos? O Chefe da estação torcera o nariz: desastre de vulto por
sorte sem vítimas. Erro de agulhas? O agulheiro decerto borracho. O ano
passado, também pela altura das vindimas, morrera atropelado em Gavião um
fogueiro bêbado como um cacho. Filha e viúva de ferroviário, a par de tudo
respeitante a comboios, automotoras, tabelas de chegadas e partidas, vias,
ramais. Inclinou a orelha: «O apito do de Viana: chuva na cama…» Meu Deus, quem
seria o agulheiro? Ia para a rua, não havia santo que lhe valesse.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
POSTAIS SEM SELO
Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor
Sophia de Mello Breyner Andresen de O Nome das Coisas em Alentejo Não tem Sombra
Legenda: Campos de Évora, pintura de Armando Alves em Alentejo Não tem Sombra
QUOTIDIANOS
Há menores
viciados nas apostas do Placard, o jogo da Santa Casa da Misericórdia que
permite apostar nos resultados dos eventos desportivos.
Nos dias dos
grandes jogos de futebol há adolescentes que chegam a prescindir do dinheiro
para as refeições, usando-o para apostar.
BOLOR
Augusto Abelaira
foi buscar a um poema de Carlos de Oliveira o título do seu romance Bolor e
utiliza o poema como epígrafe.
O poema, um lindíssimo
poema, chama-se Bolor, faz parte de Cantata (1960) e está reunido
em Poesias e também no 1º Volume de Trabalho Poético:
Os versos
que te digam
a pobreza que somos
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto,
os rostos a apagar-se
no frémito
do espelho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor
que te digam
a pobreza que somos
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto,
os rostos a apagar-se
no frémito
do espelho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor
Legenda:
fotografia de Dorothea Lange
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Carlos de Oliveira Poemas
OLHARES
Aqui ainda é O Toni
dos Bifes.
Um dos
restaurantes mais antigos de Lisboa, na Rua Praia da Vitória, junto ao
Saldanha.
Carlos de
Oliveira morava no prédio ao lado de O Toni dos Bifes.
Almoçava por lá.
Depois o Augusto Abelaira ia ter com ele, ou almoçava também, e depois iam para
o Monte Carlo onde continuavam a aparecer mais escritores, pintores,
cineastas, artistas de teatro e cinema.
Quando ainda
havia cafés.
Os cafés eram
locais privilegiados para as tertúlias.
Locais de convívio e de escrita.
Augusto Abelaira
terá sido o escritor que mas utilizou os cafés para a escrita dos seus
romances.
Era vê-lo
mergulhado na escrita/leitura de papeis, cachimbo em riste – podia-se fumar nos
cafés, pois então!
Na Cister,
na Alsaciana, na Coimbra, que ainda existem.
A primeira fase consiste em escrever, escrever, porque
as fases seguintes, de reescrita e montagem, têm de ser em casa. Seria preciso
andar com uma mala e espalhar muitos papéis.
Mais ainda:
Como eu escrevo nos cafés, o que eu precisava era que
houvesse cafés para, durante a manhã, estar a escrever. Como os cafés vão
desaparecendo, a possibilidade de escrever é cada vez menor. Quando todos os
cafés tiverem desaparecido de Lisboa eu encerro a escrita. Deixo de escrever,
isto é, vou morrer, quando fechar o último café em Lisboa onde possa escrever.
Jorge Silva Melo
foi um assíduo frequentador dos cafés de Lisboa.
O seu livro de
memórias No Século Passado está cheio de referências:
E era nos cafés, abertos desde manhã cedo e até de
madrugada, abertos aos feriados e aos domingos que tudo isso se ia passando.
Também os Dias
Comuns do José Gomes Ferreira estão cheios de referências dos cafés que
frequentava com os escritores seus amigos e camaradas, cafés que iam fechando –
naquele tempo com destino certo de dependências bancárias - e obrigava a
arranjar outro refúgio.
Tal como no 4º
volume desses Dias Comuns, José Gomes Ferreira conta:
6 de Janeiro de 1968
A Bel comunicou-me este triste recado do Carlos de
Oliveira: o café Bocage, nosso ninho de longos anos Avenida da República vai
fechar amanhã.
28 de Maio de 1968
Fechou o Martinho.
Que se passa em Lisboa, onde já se respira tão pouco?
O Abelaira telefonou-me, alarmado, a dar-me a notícia fantástica.
O Abelaira telefonou-me, alarmado, a dar-me a notícia fantástica.
- Mas será verdade’ – PERGUNTEI, INCRÉDULO.
- É… - Disse-me o Magalhães Godinho… A notícia vem no
jornal da tarde.
Silêncio inquieto diante desta mutilação do fumo do
passado.
- E agora?
- Talvez o Paladium nos restauradores.
- Pois seja o Paladium!
E nisto de
cafés, no fechar da página, impossível não ir buscar o João César Monteiro em Uma Semana Noutra Cidade:
São 10 da noite. Estou a escrever no Monte Carlo, onde
só há homens. Precisava de apanhar o Fernando para lhe cravar umas aguardentes.
É meu desejo estar completamente grosso por volta da meia-noite e com o
espírito propenso à obscenidade. Se arranjasse 100 paus ia às putas. Deve ser
fabuloso ir às putas na noite de Natal. Duvido é que haja alguém que esteja
para me aturar a bebedeira por 100 paus.
"Não estamos em Itália, não há grappa alla ruta, não há comoções nocturnas da Zé, não há nada. Nem sequer o direito ao vómito. Não há nada, mas ainda há vida. Ainda estrebucho, minha senhora. Ainda digo merda e embarco no tudo ou nada do amor. Ainda me jogo inteiro no real e no possível, no confronto entre o que sou e o que podia ser. Ainda simpatizo (ao longe é certo) com as lutas históricas do proletariado de todo o Mundo.
"Não estamos em Itália, não há grappa alla ruta, não há comoções nocturnas da Zé, não há nada. Nem sequer o direito ao vómito. Não há nada, mas ainda há vida. Ainda estrebucho, minha senhora. Ainda digo merda e embarco no tudo ou nada do amor. Ainda me jogo inteiro no real e no possível, no confronto entre o que sou e o que podia ser. Ainda simpatizo (ao longe é certo) com as lutas históricas do proletariado de todo o Mundo.
OLHAR AS CAPAS
Bolor
Augisto Abelaira
Livraria
Bertrand, Lisboa, s/d
Olho para o papel branco (afinal um tudo-nada
pardacento) sem a angústia de que falava Gauguin (ou será Van Gogh?) ao ver-se
frente da tela, mas com apreensão, apesar de tudo, Que vou eu escrever – eu, a
quem nada neste mundo obriga a escrever? Eu, antecipadamente sabedor da
inutilidade das linhas que neste momento ainda não redigi, dentro de alguns
minutos (de alguns anos) finalmente redigidas?
Não sei: folheio ao acaso a página cento e quinze do
meu caderno, ainda branca, ainda parda, e pergunto-me: daqui a dois a três, a
quatro meses, quando a alcançar – se a alcançar -, terei escrito uns milhares de
palavras. Que palavras
E fico perturbado, muito mais perturbado por essa
página do que por esta, já em parte azulada e vazia de surpresas. Como saber se
nela, hoje e durante um ou dois meses ainda branca, branca e situada no futuro,
embora um futuro espacial, eu não contarei (não terei contado) coisas de cortar
o coração? Sobre mim. Ou sobre o mundo, uma guerra, a vitória completa do
fascismo, por exemplo.
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