Duas ou três vezes por mês, havia cinema e jantarada com o meu pai.
Penso que já contei por aqui, quando fomos ao Londres ver A Insustentável Leveza do Ser e, ao fim da primeira vintena de minutos da fita, o meu pai diz: e se fossemos jantar?
Lembro-me, quando vimos, no Fórum Picoas, do João César Monteiro, Recordações da Casa Amarela.
O divertimento foi de tal ordem, que mereceu jantar bem regado no Restaurante Isaura, ali à Avª Paris, a relembrar as loucuras do João.
Er um prazer enorme jantarmos com uma(s) garrafa(s) de tinto pelo meio.
As conversas debruçavam-se pelos mais variados assuntos: livros, política (pouca) filmes, música, futebol.
Gostava de árias de óperas e adquiriu alguns vinis de antologias.
Esta é uma dessas colectâneas
Os CDs nunca o entusiasmaram e recusou-se mesmo a comprar um CD player.
Preferia os discos de vinil e as cassettes.
Volta e meia comprava CDs, chegava aqui a casa, comia uma sopinha, bebia uma garrafa de tinto Arruda, e dizia: gravava-me isto.
Os CDs ficaram por aqui.
Como este da ópera Dido e Eneias de Frank Purcell.
A acção de Dido e Eneias é baseada na Eneida de Virgílio. Passa-se em Cartago após a chegada de Eneias. Este e os seus homens vêm procurar auxilio depois de terem fugido de Tróia quando destruída pelos gregos.
A viúva Dido, rainha de Cartago, deixou-se encantar pela beleza do jovem troiano, contudo mostra-se relutante em declarar o seu amor. A sua aia, Belinda e a corte, incentivam-na a avançar. Quando Eneias a pede em casamento, Dido aceita.
Entretanto Bruxas malévolas planeiam a desordem. Levantam uma tempestade, e uma delas, disfarçada de Mercúrio, vai relembrar Eneias de que deve continuar o seu caminho para Itália. Para grande satisfação das bruxas Eneias acata as ordens do falso Mercúrio e deixa Cartago. Desolada pela traição de Eneias, Dido despede-se da Vida.
(Sinopse da ópera feito pela Antena 2)
Tinha um enorme gosto por esta obra de Purcell e comovia-se, especialmente, quando ouvia o lamento de Dido, When I am laid in earth, que considerava uma das mais pungentes árias de ópera
Lembra-te de mim mas esquece o meu destino.
Deixo-vos, agora, com um pedaço de crónica do António Lobo Antunes
- Será isto?
a responder-me
- Não deve ser isto mas vou continuar
sem que a qualidade do texto me interessasse: a única coisa que me interessava era se haveria ali a espessura que queria. O capítulo número dois passou pelos mesmos tratos de polé e, a meio de uma correção pareceu-me que a obra tinha, finalmente, chegado. Fiz o primeiro borrão do capítulo número três e acabei, há horas, o primeiro borrão do capítulo número quatro. E vou continuar até ao fim com um borrão apenas, para refundir tudo a seguir, caminhando como uma casa em chamas num nevoeiro ardente de palavras. É capaz de ser o livro, meu Deus, daqui a sei lá quantos meses saberei se é o livro, saberei se sequei ou ainda tenho vida em mim. Até essa altura a incerteza, o cagaço. Esta crónica não deve ser muito interessante para o leitor, trata-se do mero relato de um homem às aranhas com o seu trabalho. Achei que tinha obrigação de o partilhar com vocês: afinal de contas são os meus cúmplices e têm o direito de saber o que se passa na oficina, como dizia o Zé Cardoso.
- É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer
insistia ele
- É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer
e, como em muitas outras coisas, é capaz de estar certo, o sacana. Aqui entre nós faz-me uma falta do caneco. Tenho saudades tuas que me farto, meu malandro.