terça-feira, 26 de novembro de 2024

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO


 Diego Maradona, um dos mais fabulosos jogadores de futebol do mundo, morreu há 5 anos.

Não temos grande apetência por efemérides redondas, mas esta evocação da morte de Maradona, era para ter surgido ontem, não tivesse sido um outro 25 de Novembro.

O artigo é do jornalista António Rodrigues e foi publicado no Público.

Maradona e Fidel para sempre tatuados na pantorrilha esquerda do 25 de Novembro.

Fidel de Castro morreu a 25 de Novembro de 2016, Maradona considerava Fidel o seu grande guia político e a quem chamou “segundo pai”.


BLOGUEANDO POR AÍ


«Estou aqui a comemorar o vinte e cinco de Novembro porque, antes de mais, sou dado a comemorações e, além disso, o vinte e cinco de Novembro é o tricentésimo vigésimo nono dia do ano do calendário gregoriano, o que significa que é um dia muito importante. Foi neste dia que nasceu Ana de Jesus e faleceu Pedro Primeiro de Alexandria, portanto não me venham cá com coisas: comemoremos. Acrescento que devíamos comemorar mais vinte e cincos, pois a soma de dois com cinco dá sete, e sete é um número mágico. São sete as cores do arco-íris, os dias da semana, as notas musicais, os mares e os continentes e muitas coisas mais de insofismável relevância na história da humanidade em particular e do mundo em geral. Escolhi o álbum “Ser Solidário”, de José Mário Branco, para comemorar este vinte e cinco de Novembro de dois mil e vinte e quatro, ano dos meus cinquenta anos, o dobro de vinte e cinco. É uma edição de que gosto muito, sobretudo porque além das canções tem um tema extra intitulado “FMI”, que, não por acaso, tem a duração de vinte e cinco minutos. Como vêem, o vinte e cinco é um número especial. O que seria de nós sem os vinte e cincos? Eu gosto de ver as pessoas aperaltadas para as comemorações, eles de fato e gravata, elas de fato cumprido e cabelo arranjado, devidamente maquilhadas, unhas a preceito, talvez com um blazer à medida e calças a condizer. Com saltos altos, não muito, o suficiente, quanto baste. Todos maravilhosamente penteados, excepto os carecas. Toda essa nuvem de perfumes à deriva no ar embriaga-me e deixa-me tonto de comemorações, dá-me logo para ir para a rua e apanhar um táxi a caminho do melhor restaurante onde, à mesa, poderei manifestar-me contra as injustiças do mundo degustando arroz de lavagante com um Château d’Yquem de 1811. Não faço por menos, é para meninos. Portanto, deixem-se de lamentações. Nenhum de nós tem culpa do estado a que isto chegou, se é que chegou a algum estado. Estamos bem, muito obrigado, vamos indo, tudo na boa, adiante. Temos de ser uns para os outros, comemorar, brindar ao bem que fazemos e nos fazem, ao sucesso e ao empreendedorismo e aos unicórnios e à luz que nos alumia nas horas adversas, quando nos falta, por exemplo, papel higiénico. Por mim, comemoremos o de Abril, o de Novembro, o de Dezembro, e de premeio venham daí as sopas dos pobres, os alojamentos locais, dezassete milhões para matar a fome com dezassete milhões de pólvora a derrear escolas e hospitais e teatros e outros castelos de areia. Sou solidário, comemoro, como, não calo, porque a mim ninguém me cala, eu grito a plenos pulmões: viva a democracia liberal que devolve pacientes por táxi e lhes cobra a conta, vivam a chaise-longue de Freud e as foices e os martelos recheados com doce de ovos, viva o amor com que nos fodemos uns aos outros, desculpem a linguagem, mas se é por bem, é por bem, viva o fado e o corridinho e as iluminações de Natal a preço de saldo e o cozido à portuguesa no centro de trabalho e a vida está difícil. Setecentos e cinquenta mil euros em luzinhas a piscar nas ruas da capital, em honra dos sem-abrigo disseminados pelos cantos onde dormem e defecam e comem. Que os seus olhos brilhem de comoção como os meus hoje brilham pelo vinte e cinco, o que me levará da Praça da Figueira aos Prazeres. Qual é a vossa, ó meus?»

Hmbf no blogue Antologia do Esquecimento 

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

O 25 DE NOVEMBRO EXISTIU?


Durante a ditadura salazarista, o poeta António Gedeão, num poema, a que Manuel Freira colocou música, disse-nos que eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.

Hoje, imensos jovens não sabem o que foi o 25 de Abril, muitos mais ainda, não sabem o que foi o 25 de Novembro.

A história do que foi o 25 de Novembro de 1975 ainda não está feita. Como se diz no Aqui de Setembro de 1976: «houve um golpe. É o mínimo em que há unanimidade de certezas.»

Diz a historiadora Raquel Varela,  Público 25 de Abril de 2011:

«Embora o encontro entre Álvaro Cunhal e Melo Antunes a 25 de Novembro esteja documentado, acredito que o acordo tenha decorrido alguns dias antes do golpe que pôs fim à crise político-militar e terminou com a duplicidade de poderes nas Forças Armadas. Até porque os Nove poderiam adivinhar que as unidades militares afectas ao PCP não deixariam de responder a uma insurreição militar, como acontecera a 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975».

José Saramago que, muito bem sabia do que estava a falar, disse: «Perdeu-se em Portugal muita coisa desde o 25 de Novembro. Perdeu-se sobre tudo a vergonha».

Adelino Gomes no Público de 26 de Novembro de 2000:

«Quem desencadeou o 25 de Novembro? Quem deu ordem aos páras para ocuparem quatro bases aéreas? Otelo traiu os seus homens ou evitou a guerra civil? O PCP de que lado(s) esteve? Até onde chegavam as ligações ao MDLP? Quantos grupos funcionavam dento do Grupo dos Nove? Qual foi a mais decisiva: a Região Militar do Norte (RMN) ou a Região Militar sw Lisboa (RML)?; o posto Avançado da Amadora, comandado pelo então tenente-coronel Ramalho Eanes, ou o Posto de Comando Principal, montado em Belém, e onde ficaram o Presidente Costa Gomes e o comandante da RML, e Conselheiro da Revolução, Vasco Lourenço? Quantos 25 de Novembro houve naquele dia?

0 25 de Novembro existiu?

INFORME


 Texto de Mário Henrique-Leiria publicado no nº1 do semanário Aqui dirigido por quem sempre disse que, para além de outras coisas, pertenceu ao movimento surrealista.

MÚSICA PELA MANHÃ


 No dia 25 de Novembro de 1976, na 1ª página do Diário de Lisboa, Maria Velho da Costa, deixou escrito que o 25 de Novembro não é para celebrar. Porque não foi um acto de alegria, foi um acto de necessidade. Brilhantemente, José Mário Branco veio acrescentar: houve alguém aqui que se enganou!

CARTA DE NOVEMBRO A UMA CRIANÇA DE LISBOA


                                               à Alexandra


Dir-te-ão que era o ódio   sobre a paz  dir-te-ão

algumas palavras   sobre a pátria. Inventarão heróis

porque de heróis necessita quem teme o canto anónimo

de iguais. Exigirão que apagues os olhos da memória

o grito onde vivemos saudosos do futuro.

 

Tu saberás porém do coração maior que o sonho.

Dirás dos erros o seu nome de história

onde nada estava feito. Colherás com as mãos

que o sol tocou porque eram limpas e pequenas

essa flor desfolhada às portas de Dezembro.

 

Manuel Alberto Valente em Os Olhos de Passagem

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

PROJECTO DE BODAS

Hoje apetece que uma rosa seja
o coração exterior do dia
e a tua adolescência de cereja
no meu bico de Isolda cotovia.

Hoje apetece a intuição dum cais
para a lucidez de não chegar a tempo
e ficarmos violetas nupciais
com a lua a celebrar o casamento.

Apetece uma casa cor-de-rosa
com um galo vermelho no telhado
e os degraus duma seda vagarosa
que nunca chegue à varanda do noivado.

Hoje apetece que o cigarro saiba
a ter fumado uma cidade toda.
Ser o anel onde o teu dedo caiba
e faltarmos os dois à nossa boda.

Hoje apetece um interior de esponja
E como estátua a que moldar o vento.
Deitar as sortes e, se sair monja,
Navegar ao acaso o meu convento.

Hoje apetece o mundo pelo modo
Como vai despenhar-se um trapezista.
Abrir mais uma flor no nosso lodo:
Pedir-lhe um salto e retirar-lhe a pista.

Hoje apetece que a cor dum automóvel
Seja o Egipto de novo em movimento;
E que no espaço duma gota imóvel
Caiba a possível capital do vento.

Hoje apetece ter nascido loiro
Como apetece ter havido Atenas;
E tu nas curvas rápidas de um toiro.
E eu quase intangível como as renas.

Hoje apetece que venhas no jornal
Como um anúncio. Sem fotografia.
E inventar-te uma lenda de cristal
Para reflectir a minha biografia.


Natália Correia,  de O Sol nas Noites e o Luar nos Dias  em Cerejas

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS

Francisco Mota Saraiva é o vencedor do Prémio Literário José Saramago, no valor de 40 mil euros, pelo romance "Morramos ao menos no porto", que chegará às livrarias em 2025.

O autor que já vencera, em 2023 o Prémio Agustina Bessa-Luís, nasceu em Coimbra no ano de 1988, é licenciado em Direito com um mestrado em Direito e Gestão.

Gonçalo M. Tavares, no seu Diário que publica no JL, antecedendo a atribuição de mais um Prémio José Saramago, recorda algumas notas que escreveu sobre a escrita de Saramago:

OS DIAS VISTO DO CAFÉ DO MONTE

«O divertissement implica tempo, claro. Um tempo parado, contemplativo, contrário ao tempo da aceleração exponencial. E as brincadeiras dos cães lembraram-me agora uma história. Uma história por demais conhecida. Contava-a António Alçada Baptista.

Andava o Padre Anchieta por terras do Brasil. Com pressa no chegar, pede o jesuíta aos índios que lhe transportam a tralha que sejam despachados no passo. O destino fica longe, a dias de caminhada. No primeiro dia os índios foram céleres, assim como no segundo. Inesperadamente, ao terceiro descansaram. Surpreendido, pergunta-lhes o padre pelo motivo da pausa. A explicação chegou rápida e era simples: “Temos vindo demasiado depressa e a nossa alma ficou para trás. Temos de esperar por ela para podermos continuar”.»


Ana Cristina Leonardo numa das suas crónicas no Público 

QUOTIDIANOS


 As castanhas assadas na Praça de Londres, na esquina com a Avenida de Paris, estavam a 3 euros a dúzia.

No Pingo Doce da Avenida de Paris, as castanhas cruas estavam a 5, 99 euros o quilo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O HOMEM QUE LÊ

Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde... em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.


Rainer Maria Rilke em O Livro das Imagens

terça-feira, 19 de novembro de 2024

POSTAIS SEM SELO


 Os ventos andam aí, os furacões destroem cidades, a água arrasa, destrói, mata; os elementos estão furiosos, competem com as guerras. A terra e os seus elementos não são domesticáveis.

Precisamos todos de uma escada de bombeiros. Uma escada que nos coloque acima das tempestades, dos furacões e dos dilúvios. Mas não há escadas para todos e a terra está zangada.

Gonçalo M. Tavares

MARCADORES DE LIVROS


 Colaboração de Aida Santos.

CRONICANDO POR AÍ


Cada vez mais curto o naipe de estrelas de Do Fundo do Coração, maravilhoso filme de Francis Ford Coppola.

Teri Garr partiu a 29 de Outubro deste ano, Raul Julia a 24 de Outubro de 1994, Frederic Forrest a 23 de Junho de 20123. Resta Nastassja Kinski.

Muito ao seu estilo, Manuel S. Fonseca lembra Teri Garr:

«Começo esta crónica em regime de pura gatunagem. A frase é de Pauline Kael e o que Kael disse foi isto: “Esta é a mais cómica, neurótica e desorientada senhora do ecrã”. Estava a falar de Teri Garr, mulher que eu amei, de baba e ranho, no “One From the Heart”, do saudoso Coppola.

Mel Brooks, o realizador de “Young Frankenstein”, uma daquelas comédias que, de tanto nos fazer rir, temos a tentação de desvalorizar, quando a convidou para o filme, estava cheio de dúvidas que partilhou com Gene Wilder o actor principal: “Ela é deliciosamente linda, mas será que sabe representar?” Gene foi cortante: “Who gives a shit?”, que em bom português quer mais ou menos dizer “Estou-me bem a cagar”.

E agora quero dizer uma coisa elegante. É verdade que Teri Garr tem uma incrível beleza, mas é uma beleza que, apesar da pele brilhante, apesar do sorriso radioso, apesar do porém do seu colo suave (e já lá irei), é, dizia eu, uma beleza que ela embrulha num celofane auto-depreciativo, como se nos estivesse a dizer “caso não percebam que o melhor de mim tem um sabor de especiarias e entontece como um dry-martini, então tomem e embrulhem”. Só a prodigiosa Shirley MacLaine foi capaz de tanto desprendimento: mesmo Nossa Senhora de Fátima tem a sua beleza em mais auto-estima do que Teri a que Deus lhe deu.

E voltemos ao colo de Teri Garr. Antes de fazer a audição para o papel de Inga, a assistente de laboratório de “Young Frankenstein”, Teri olhou-se ao espelho e viu que o seu peitinho era de relativa irrelevância, atendendo ao que deveria ser o pulposo seio de que um verdadeiro cientista gosta. “Caramba, não vou perder o papel por causa das mamas”, pensou. Como é que eu sei que ela pensou isto? Sei. E ainda estou a ver Teri Garr a caminhar para os armazéns da Woolworth, onde se não estou enganado comprei um colchão (ou pelo menos uma almofada) para o minúsculo quarto-kitchenette-wc em que vivi por três meses em Los Angeles. Saí com um colchão, Teri com lenços e peúgas. Aconchegou tudo sob o sutiã, em íntimo convívio com o acetinado e túmido da sua natureza (como é que eu sei? memória minha do fugaz nu com Raul Julia no “Do Fundo do Coração”), fazendo questão em explicar-nos: “As pessoas espatifam milhares de dólares em cirurgias às mamas. Por cinco dólares no Woolsworth fiz a minha: foi dinheiro muito bem gasto”.

Teri começou bailarina nos filmes de Elvis Presley. Foi um cometa a iluminar cenas de filmes como “Os Encontros Imediatos”, de Spielberg, o “After Hours”, de Scorsese, o “The Conversation”, de Coppola, o “Tootsie”, de Sidney Pollack. Sabia dançar – adorei-lhe libidinosamente as pernas no “One From the Heart” – mas sabia sobretudo enternecer.

Nesse “Do Fundo do Coração” deixa o namorado, o Frederic Forrest, preferindo deslizar para uma aventura sexy e selvagem com Raul Julia. Um desolado Frederic vem ao aeroporto para a convencer a ficar: implora, promete e ela já vai a entrar na manga com o amante, quando, último recurso, Frederic começa a cantar o “You’re my sunshine, my only sunshine”.»

Frederic canta maravilhosamente mal, um horror de ternura, um sentimento de perda do quinto dos infernos. Teri pára, no grande plano dela vemos então um carinho deliciado pela amorosa humilhação daquele homem. Como quem diz, e não sei se diz mesmo: “Oh, que querido”. E depois continua, em direcção à aventura, ao lado amante que promete fazer-lhe as coisas, em cima ou em baixo, que ela anda com vontade de experimentar.

Teri Garr foi agora mesmo lá para cima, experimentar as coisas que já não pode ter cá em baixo.

OLHAR AS CAPAS

Terra Sonâmbula

Mia Couto

Capa: Rui Garrido

Editoral Caminho, Lisboa, Janeiro de 2015

O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.

Colaboração de Aida Santos

EM BUSCA DE FLORES AZUIS NO DESERTO


«Se recordarmos a Guerra dos Cem Anos que assolou a Europa durante a Idade Média, concluímos, sem que isso nos sirva de especial consolo, que há guerras que vieram para durar.

Temos, porém, de ser honestos. Se o apoio a Israel sempre dividiu a direita, se em certos desmiolados reclamar uma origem judaica mais ou menos longínqua alicerça-lhes não mais do que a ideia bacoca de pertencer ao “povo eleito” – um “privilégio” que ignora os versos esmagadores de Edmond Jabès: “Tive um sonho, Senhor, e no instante em que o vivia achei-o maravilhoso: já não era judeu” –, a verdade é que a esquerda nunca morreu de amores por Israel, excepto talvez no curto período inicial dos kibutzim, nos quais alguns viram a esperançosa reedição dos sovietes operários. Na actualidade, o radicalismo político de Benjamin Netanyahu acaba, afinal, por ser de grande conveniência para quem há muito considera Israel um Estado sem direito a existir.»


Ana Cristina Leonardo da crónica no Público de 11 de Outubro

A CARTA DA PAIXÃO

Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder em Photomaton & Vox

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

DISTO, DAQUILO E DAQUELOUTRO


 Vivemos momentos muito perigosos.

Estes momentos agora perigosos, tornar-se-ão, com a entrada de Donald Trump na Casa Branca, perigosíssimos.

Hoje, não temos bem a noção como serão esses dias.

As gentes que Trump tem escolhido para a governação do país, são um verdadeiro susto. Ele não procura gente competente antes tipos que levam a sua lealdade a fins inexplicáveis.

O embaixador escolhido para Israel nega a existência da Cisjordânia, dos colonatos e dos palestinianos. Quem escolheu para a pasta da saúde é um negacionista das vacinas e um adepto de conspirações várias. Há outros personagens escabrosos, mas registe-se que Elon Musk, dito o homem mais rico do mundo, um dia após a vitória de Trump, graças à subida das acções da Tesla, acrescentou quase 20 mil milhões de dólares à sua fortuna e o mais que ainda há-de arregimentar durante o trabalho governamental que Trump lhe indicou.

Mudemos um pouco a agulha e olhemos que o que se passa no Partido Democráico e ficamos a saber não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descobrir que a classe trabalhadora o abandonou.

Em artigo publicado no Público ficámos a saber que Bernie Sanders, o senador independente do Vermont, responsabilizou o afastamento do Partido Democrata em relação aos trabalhadores norte-americanos pela derrota de Kamala Harris nas eleições presidenciais. «Não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora, descobrir que a classe trabalhadora o abandonou. Primeiro, foi a classe trabalhadora branca, e agora são os trabalhadores latinos e negros também. Hoje, enquanto os muitos ricos vivem fenomenalmente bem, 60% dos americanos vivem salário a salário e temos mais desigualdade de riqueza e de rendimento do que alguma vez tivemos. Inacreditavelmente, os salários ajustados à inflação do trabalhador médio norte-americano são hoje mais baixos do que há 50 anos».

domingo, 17 de novembro de 2024

OLHAR AS CAPAS


Cerejas

Poemas de Amor de autores portugueses antologiados por Gonçalo Salvado

Capa: Desenho de José Guimarães

Editorial Tágide, Fundão, Junho de 2004

Quando François Mitterrand instalou pela primeira vez (e última) o socialismo no trono de Deus (o do poder) pediu a Barbara Hendrix para cantar a mítica canção da Comuna, «Le temps des cerises». Quer dizer, o tempo da esperança e da felicidade quem com candura e fervor populares, o primeiro povo de esquerda tirou do seu coração. Mais lírica do que revolucionária, a canção popular instalou na memória o fruto de Maio em vez da rosa de todas as estações. E aí ficou, pois ainda há pouco mais de vinte anos o último «socialista» do Ocidente se lembro dela para símbolo de uma vitória destinada a celebrar uma alegria comum e tão plural como a da pouca aristocrática cerejeira.

Esta metamorfose do trivial em fraternal, do fruto que não extingue a sede nem a fome, mas apenas as decora, como a guirlanda que as raparigas outrora convertiam em brincos, foi sol de pouca dura. Politicamente, o tempo das cerejas parecia fadado para a nostalgia como o da hora que inventou a canção e a sua música. Mas como a da cerejeira é uma nostalgia futurante, casa Primavera no-la traz de volta. Era assim também no tempo de Tchekov e contudo ele converteu o «cerejal» no mais nostálgico dos jardins. O tempo do cerejal não é o das cerejas e da sua gloriosa trivialidade. É o da sua flor tão onírica como a das amendoeiras. A Tchekov não lhe lembrava a neve, que o não precisava, mas só o tempo frágil de um Maio tão magicamente florido como logo sumido no esplendor do tempo e do Verão. O tempo das cerejas é o que fica connosco, o que se guarda nos olhos e na boca e do Verão. O tempo das cerejas é o que fica connosco, o que se guarda nos olhos e na boca e não precisos de ser lembrado. O tempo das flores do cerejal é o que se está esquecendo de nós enquanto contemplamos a sua evanescente realidade cor-de-rosa que é só rosada aurora sem crepúsculo. É essa, afinal, aquela que a canção evocava. Entre a flor e o fruto a vida passa sem se despedir. A nossa, claro.

Texto de Eduardo Lourenço

MÚSICA PELA MANHÃ


 Julho de 2018, um extraordinário concerto de Van Morrison em Cascais.

Ao ler Vemo-nos em Agosto de Gabriel García Márquez encontramos Van Morrison a entrar num convento.

A filha Micaela namorava com um músico de jazz. Ana veio a saber que os telefonemas internacionais não eram para o namorado-músico mas sim para uma catequista oficial das Carmelitas Descalças.

«O destino da filha resolveu-se com facilidade e sem pressa. Despediram-se dela com um serão íntimo, para o qual convidaram o músico de jazz com a sua nova namorada. Doménico e ele improvisaram uma revisão muito pessoal dos contrastes para piano e saxofone de Béla Bartók e todos se tornaram amigos à primeira vista.

Entregaram-na às Carmelitas descalças na missa ordinária do convento. Ana Magdalena vestiram-se como para um funeral, mas Micaela chegou com uma hora de atraso e sem ter dormido, com o hipil da mãe, os seus eternos sapatos de ténis, uma mala com os seus artigos de higiene pessoal e um álbum de Van Morrison que lhe tinham oferecido à última da hora.»

sábado, 16 de novembro de 2024

OLHAR AS CAPAS


 Violeta e a Noite

Urbano Tavares Rodrigues

Colecção Século XX n º328

Publicações Europa-América, Lisboa, 1991

Vejo-o partir, tão ligeiro. Que se passa? É como se o mundo para ele, apesar de ser quase Inverno, se enchesse subitamente de luz. A rua, as pessoas, o rio do tânsito, tudo a palpitar, alterando o giro do tempo? Não sei.

Realmente, não sei. É verdade que ele me comove. Mas por detrás deste momento, em que um grão de esperança se acende, há tanta vida cansada, apodrecida, tanto gesto excessivo, irrepetível. Dos esconsos da cidade, do rio, do cais, ou do mais fundo de mim vem soprando um subtil cheiro a morte e a nunca mais. Todavia…

COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...


 No meio de toda a parafernália de meios de comunicação que hoje invadem o nosso quotidiano, encontrar um velho telegrama de uma avó, na mesma cidade, a enviar votos de parabéns ao neto.

Um, ou os dois, não deveriam ter telefone.

MÚSICA PELA MANHÃ


Vasco Graça Moura disse que Pedro Homem de Melo foi um poeta demasiado mal tratado pela crítica e pelos leitores de poesia.

A Biblioteca da Casa não tem um único livro do poeta.

Mas pela casa existe esse maravilhoso Com que Voz em que Amália Rodrigues, pela mão mágica de Alain Oulman, cantou poetas portugueses e Pedro Homem de Melo, com dois poemas, está representado.


HAVEMOS DE IR A VIANA

Entre sombras misteriosas
em rompendo ao longe estrelas
trocaremos nossas rosas
para depois esquecê-las.

Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia.

Partamos de flor ao peito
que o amor é como o vento
quem pára perde-lhe o jeito
e morre a todo o momento.

Se o meu sangue não me engana
como engana a fantasia
havemos de ir a Viana
ó meu amor de algum dia
ó meu amor de algum dia
havemos de ir a Viana
se o meu sangue não me engana
havemos de ir a Viana.

Ciganos, verdes ciganos
deixai-me com esta crença
os pecados têm vinte anos
os remorsos têm oitenta.

CUIDEI QUE TINHA MORRIDO


Ao passar pelo ribeiro

Onde, às vezes, me debruço

Fitou-me alguém corpo inteiro

Dobrado como um soluço


Pupilas negras tão lassas

Raízes iguais às minhas

Meu amor, quando me enlaças

Por ventura as adivinhas

Meu amor, quando me enlaças

 

Que palidez nesse rosto sob o lençol de luar

Tal e qual quem ao sol posto

Estivera a agonizar

 

Deram-me então por conselho

Tirar de mim o sentido

Mas, depois, vendo-me ao espelho

Cuidei que tinha morrido

Cuidei que tinha morrido!

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

CELESTE CAEIRO (1933-2024)

«A Celeste dos Cravos, apesar da idade avançada, não recusava solicitações para partilhar a sua história, para participar em comemorações da Revolução de Abril. Foi assim até este ano, quando se celebram os 50 anos de Abril: esteve no mar de gente que desceu a Avenida da Liberdade, na sua cidade de Lisboa, mas também fez questão de estar na Festa do «Avante!», a realização anual do seu partido, o PCP.

Celeste Caeiro nasceu em Lisboa, em Maio de 1933, cidade onde trabalhou viveu grande parte da sua vida. De origens humildes, na manhã de 25 de Abril de 1974, com 40 anos, saiu de casa no Chiado, onde vivia, com a sua mãe e a filha ao seu cuidado, rumo ao restaurante onde trabalhava, no edifício Franjinhas, na Rua Braancamp. Nas palavras de Celeste, «a casa fazia um ano nesse dia, os patrões queriam fazer uma festa e o gerente comprou flores». Com as operações dos capitães de Abril em curso ali ao lado, o restaurante não chegou a abrir e Celeste levou os cravos no caminho de volta a casa.

Foi já no Chiado que se deparou com os veículos militares que rumavam ao Quartel do Carmo, para deter Marcelo Caetano. Foi isso que lhe explicou o jovem militar (que, para seu desgosto, Celeste nunca voltou a encontrar) a quem perguntou o que se passava. «Isto é uma Revolução!», acrescentou, no relato da própria Celeste, a que se seguiu o pedido de um cigarro. Celeste não fumava, a tabacaria estava fechada, mas a sua gratidão para com aqueles jovens que protagonizavam a libertação de 48 anos de fascismo levou a oferecer-lhes o que tinha: os cravos vermelhos que acabaram nos canos das espingardas. Com o seu gesto carregado de simbolismo, Celeste Caeiro deu expressão à adesão popular às acções do Movimento das Forças Armadas, naquele mesmo dia, e que viria a ser sintetizado na fórmula «Aliança Povo-MFA».

«Correu tudo muito bem. Tinha de correr, pois os cravos estavam nas espingardas e elas assim não podiam disparar...», contou sobre o dia em que o País se libertou da ditadura fascista. Celeste Caeiro faleceu hoje, aos 91 anos.»

Texto copiado de Abril, Abril

OLHAR AS CAPAS


Na Berma de Nenhuma Estrada

Mia Couto

Capa: Rui Garrido

Editorial Caminho, Lisboa, Fevereiro de 2015

Diante do amor ela arrepiou o coração: não tenho asas para tanto paraíso!

Colaboração de Aida Santos