sexta-feira, 19 de maio de 2017

Margaret Atwood / Maldita profecía


Margaret Atwood

Margaret Atwood: Maldita profecia

Autora canadense escreve novo prefácio para 'O Conto da Aia', sobre uma ditadura anti-feminista

Texto é base de série com mesmo nome original, 'The Handmaid's Tale', que ainda não estreou no Brasil



Na primavera de 1984 comecei a escrever um romance que inicialmente não ia se chamar O Conto da Aia. Escrevi à mão, quase sempre em uns cadernos amarelos com pauta, e depois transcrevia meus rabiscos quase ilegíveis com uma gigantesca máquina de escrever alugada, com teclado alemão.
Estava há um ou dois anos evitando enfrentar esse livro. Parecia um empreendimento arriscado. Tinha lido a fundo muita ficção científica, ficção especulativa, utopias e distopias, desde o tempo da escola, lá pelos anos cinquenta, mas nunca tinha escrito um livro desse tipo. Seria capaz?

Em 1984, a premissa principal parecia um tanto excessiva, mesmo para mim. Convenceria os leitores de que nos Estados Unidos tinha ocorrido um golpe de Estado que transformou a democracia liberal até então existente em uma ditadura teocrática que levava tudo ao pé da letra? No livro, a Constituição e o Congresso não existem mais; a República de Gilead se levanta sobre os fundamentos das raízes do puritanismo do século XVII, que sempre estiveram sob a América moderna que pensávamos conhecer.
No livro, a população está em declínio por causa da poluição ambiental e diminui a capacidade de ter filhos. Como nos regimes totalitários – ou em qualquer sociedade radicalmente hierarquizada –, a classe dominante monopoliza tudo que tem algum valor e a elite do regime consegue dividir entre si as fêmeas férteis como Aias. Isso tem um precedente bíblico na história de Jacó, suas duas esposas, Raquel e Lia, e as duas empregadas delas. Um homem, quatro mulheres e doze descendentes que as criadas não podiam reivindicar. Pertenciam às esposas.
Ao longo dos anos, O Conto da Aia adotou muitas formas diferentes. Foi traduzido a 40 línguas, ou talvez mais. Em 1989, foi adaptada ao cinema. Foi uma ópera e um balé. Está sendo feita uma graphic novel. E logo vai estrear uma série de televisão.
Participei nas filmagens desta última com uma pequena participação. É uma cena na qual as Aias recém-contratadas são submetidas a uma lavagem cerebral, no estilo praticado pelos Guardas Vermelhos. Devem aprender a renunciar a suas antigas identidades, a assimilar o lugar e as obrigações que correspondem, a entender que não têm nenhum direito real, mas que vão obter proteção, até certo ponto, desde que sejam capazes de se conformar e ter baixa estima para aceitar o destino que lhes é atribuído sem se rebelar ou fugir.


O controle das mulheres e seus descendentes foi a base de todo regime repressivo.

As Aias estão sentadas em círculo, enquanto as Tias, equipadas com suas varas elétricas, forçam todas a participar no que agora – não em 1984 – é chamado de “a desonra das vagabundas” contra uma delas, Jeanine, que é obrigada a relatar o estupro grupal que sofreu na adolescência. “Foi culpa dela, ela provocou”, gritam as outras Aias.
Embora seja apenas uma série de TV, a cena me produziu um choque horrível. Era muito parecido, demais, com a história. Sim, as mulheres se unem para atacar outras mulheres. Sim, acusam as outras para se livrarem delas: vemos com absoluta transparência na era das redes sociais, que tanto favorecem a formação de enxames. Sim, aceitam encantadas situações que lhes dão poder sobre outras mulheres, mesmo – e talvez especialmente – em sistemas que no geral concedem escasso poder às mulheres: no entanto, todo poder é relativo e em tempos difíceis é evidente que ter pouco é melhor do que não ter nenhum. Algumas das Tias que exercem o controle são verdadeiras crentes e acham que estão fazendo um favor às Aias: pelo menos não foram enviadas para limpar resíduos tóxicos; pelo menos, neste mundo novo feliz, ninguém vai violá-las, ou não exatamente, ou pelo menos quem as violar não é um desconhecido. Entre as Tias algumas são sádicas. Outras são oportunistas. E serve para elas pegar algumas das reivindicações favoritas do feminismo de 1984 – como as campanhas contra a pornografia e a exigência de maior segurança contra os ataques sexuais – e usá-los em benefício próprio. Como dizia: a vida real.
O que me leva às três perguntas que me fazem com frequência. A primeira: O Conto da Aia é um romance feminista? Se isso significa que é um tratado ideológica no qual todas as mulheres são anjos ou estão vitimizadas e, portanto, perderam a capacidade de escolher moralmente, não. Se quer dizer que é um romance no qual as mulheres são seres humanos e além disso são interessantes e importantes, e o que acontece com elas é crucial para o tema, a estrutura e o enredo do livro... Então, sim. Nesse sentido, muitos livros são “feministas”.




Ilustração de Anna e Elena Balbusso para a edição de 'O Conto da Aia' da The Folio Society.
Ilustração de Anna e Elena Balbusso para a edição de 'O Conto da Aia' da The Folio Society.


Por que são interessantes e importantes? Porque na vida real as mulheres são interessantes e importantes. Não são um subproduto da natureza, não representam um papel secundário no destino da humanidade, e todas as sociedades souberam disso. Sem mulheres capazes de dar à luz, a população humana seria extinta. Por isso as violações em massa e o assassinato de mulheres, garotas e meninas foi uma característica comum das guerras genocidas, ou de qualquer ação destinada a subjugar e explorar uma população. O controle das mulheres e seus descendentes foi a base de todo regime repressivo do planeta. Napoleão e sua “bucha de canhão”, a escravidão e a mercadoria humana, uma prática eternamente renovada: ambos se encaixam aqui. Teríamos que perguntar àqueles que promovem a maternidade forçada: Cui bono? Quem se beneficia? Às vezes um setor, às vezes, outro. Nunca ninguém.
A segunda: O Conto da Aia é um romance contra a religião? Mais uma vez, depende do que se quer dizer. É verdade, um grupo de homens autoritários assume o controle e tenta estabelecer uma versão extrema do patriarcado no qual as mulheres (como os escravos americanos no século XIX) estão proibidos de ler. Mais ainda, não podem ter nenhum controle sobre o dinheiro ou trabalhar fora de casa. O regime usa símbolos bíblicos, como, sem dúvida, faria qualquer regime autoritário que quisesse dominar os Estados Unidos.
As roupas recatadas das mulheres em Gilead vêm da iconografia religiosa ocidental: as Esposas usam o azul da pureza, da Virgem Maria; as Aias usam vermelho pelo sangue do parto, mas também por Maria Madalena. Além disso, o vermelho é mais fácil de ver se você quiser fugir. Muitos regimes totalitários recorreram à roupa – tanto proibindo alguns itens, como obrigando a usar outros – para identificar e controlar as pessoas – pensemos nas estrelas amarelas, e no roxo dos romanos –, e em muitos casos se esconderam atrás da religião para governar. Assim é muito mais fácil apontar os hereges.
No livro, a religião dominante se ocupa de conseguir o controle doutrinário e consegue aniquilar as denominações religiosas que são familiares. Como os bolcheviques destruíram os mencheviques para eliminar a concorrência política, e as várias facções dos Guardas Vermelhos lutaram entre si até a morte, católicos e batistas se transformam em objeto de identificação e aniquilação. Os quakers passaram para a clandestinidade e montaram uma rota de fuga para o Canadá. Então, o livro não é contra a religião. É contra o uso da religião como uma fachada para a tirania: são coisas muito diferentes.
O Conto da Aia é uma previsão? É a terceira pergunta que costumam me fazer com mais frequência, à medida que certas forças da sociedade norte-americana ocupam o poder e aprovam decretos incorporando o que sempre tinham dito que queriam fazer, mesmo em 1984, quando comecei a escrever o romance. Não, não é. Digamos que é uma antiprevisão: se este futuro pode ser descrito em detalhe, talvez não chegue a ocorrer. Mas não podemos confiar muito nessa ideia bem-intencionada.
O Conto da Aia baseou-se em muitas facetas diferentes: execuções grupais, leis suntuosas, queima de livros, o programa Lebensborn da SS e o roubo de crianças na Argentina pelos generais, a história da escravidão, a história da poligamia nos Estados Unidos... A lista é longa.
Mas falta uma forma literária à qual não mencionei: a literatura testemunhal. Offread registra sua história apenas como pode; depois, esconde-a com a confiança de que, com o passar dos anos, será descoberta por algum ser livre, capaz de entender e compartilhar. É um ato de esperança: toda história pressupõe um futuro leitor. Robinson Crusoé mantinha um diário. Também Samuel Pepys, Roméo Dallaire e Anne Frank.
Depois das recentes eleições nos Estados Unidos, proliferam medos e ansiedades. Dá a impressão de que as liberdades civis básicas estão em perigo, também muitos dos direitos conquistados pelas mulheres nas últimas décadas, mesmo ao longo dos séculos passados. Neste clima de divisão, em que parece estar crescendo a projeção de ódio contra muitos grupos e extremistas de toda denominação expressam seu desprezo às instituições democráticas, temos a certeza de que, em algum lugar, alguém – muitas pessoas, ouso dizer – está anotando tudo o que acontece a partir de sua própria experiência. Ou talvez recordem e escrevam mais tarde, se puderem.
Suas mensagens ficarão escondidas e reprimidas? Vão aparecer, séculos mais tarde, em uma casa velha, dentro de uma parede Vamos manter a esperança de que não chegaremos a isso. Eu confio que isso não vai acontecer.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

O cancioneiro de Ella Fitzgerald

Ella Fitzgerald

O cancioneiro de Ella Fitzgerald

A inesquecível cantora de jazz gravou os clássicos do grande repertório norte-americano

CARLOS GALILEA
25 ABR 2017 - 12:19 COT

Ella Fitzgerald em um show em Barcelona em 1966. Ela faria 100 anos.
Ella Fitzgerald em um show em Barcelona em 1966. Ela faria 100 anos.  EFE
Ella Fitzgerald tinha a mesma idade que o primeiro disco de jazz. Também estaria completando agora –dia 25 de abril— cem anos. Sua ascensão foi rápida: já em 1937 os leitores da revista Down Beat a elegeram como sua cantora favorita. Na década de cinquenta, o empresário Norman Granz a convenceu a deixá-lo conduzir a sua carreira, até então administrada por seu representante, Mo Gale, e o produtor de discos Milt Gabler. Em 1955, ela deixou a Decca, companhia fonográfica na qual passara vinte anos e com a qual gravava desde que começou como cantora da orquestra de Chick Webb com apenas 17 anos. Ela ainda não sabia, mas a chamada Primeira Dama do Swing estava prestes a se tornar a Primeira Dama da Canção.
Seus últimos discos não estavam vendendo bem e Ella se sentia frustrada. Em janeiro de 1956, levada por Granz, assinou contrato com a Verve. O primeiro projeto com o novo selo foi um LP duplo com canções de Cole Porter. Somente no primeiro mês, venderam-se 100.000 cópias. Entre fevereiro de 1956 –Elvis Presley acabara de chegar ao topo das listas de mais vendidos—e julho de 1959, Ella Fitzgerald gravou oito discos com alguns dos melhores títulos do grande cancioneiro norte-americano: aquele que floresceu desde os anos vinte até meados do século passado e no qual Bob Dylan cavava o seu caminho.
Os discos saíram entre 56 e 64, na seguinte ordem: Sings the Cole Porter SongbookSings the Rodgers & Hart SongbookSings the Duke Ellington SongbookSings the Irving Berlin SongbookSings the George and Ira Gershwin SongbookSings the Harold Arlen SongbookSings the Jerome Kern Songbook y Sings the Johnny Mercer Songbook. Atribui-se a Ira Gershwin o seguinte comentário: “Eu não sabia como eram boas as nossas canções até que ouvi Ella cantá-las”. Um último disco seria acrescentado à série em 1981, lançado pela Pablo Records e dedicado a um compositor da América do Sul: Ella abraça Jobim(Ella Fitzgerald Sings the Antonio Carlos Jobim Songbook).
Depois de sua morte, Frank Rich escreveu no The New York Times que, com seus songbooks, a cantora “realizou uma operação cultural tão extraordinária como a integração contemporânea de Elvis entre a alma branca e a afro-americana. Era uma mulher negra popularizando canções urbanas muitas vezes compostas por imigrantes judeus para um público predominantemente de brancos cristãos”.
Ella não tinha muita consciência daquilo que sua obra significou. E nunca deu margem a que o público pudesse achar que a letra de alguma das canções que interpretava se referisse à sua vida privada, a respeito da qual evitava falar. Becoming Ella: The Jazz Genius Who Transformed American Songbiografia que está sendo escrita pela professora Judith Tick e que deverá ser lançada em 2018, dará uma atenção especial para todo o contexto cultural em que viveu a cantora. A mulher que cantava com a espontaneidade inocente e alegre de quem provavelmente jamais deixou de ser uma criança. A mesma que dizia que gostaria de ter sido bonita e que afirmava que a única coisa melhor do que cantar é cantar ainda mais.


domingo, 23 de abril de 2017

Hollywood / Antídoto contra a idade: o dinheiro

Morgan Freeman

Antídoto contra a idade: o dinheiro

Hollywood aposta em Shirley MacLaine, Warren Beatty, Rachel Welch, Goldie Hawn, Glenda Jackson e De Niro


ROCÍO AYUSO
Los Ángeles 21 ABR 2017 - 17:00 COT


Nem botox, nem cirurgia plástica. Segundo confirmou Morgan Freeman a este jornal, o único antídoto contra a idade que Hollywood conhece é o dinheiro. “Nem sexismo, nem racismo nem velhismo. Eu não vejo discriminação na indústria de Hollywood porque há anos a única coisa que manda é o dinheiro”, afirma o ator, perto de completar 80 anos. Tomando sua carreira como exemplo, está claro que Hollywood é um país para velhos. Nos últimos dois anos Freeman trabalhou em uma dúzia de filmes e produções de televisão. Em sua última estreia, Despedida em Grande Estilo, não é o único veterano. O filme soma 246 anos entre seus três protagonistas, contando os 84 de Michael Caine e os 83 de Alan Arkin. Ou 321, se também se soma os 75 de Ann Margaret, mais uma integrante do elenco dessa comédia centrada em um grupo de aposentados que decide roubar um banco para recuperar as pensões que perderam na atual crise econômica. Entre os quatro também estão quatro prêmios Oscar e 13 indicações à mesma estatueta, exemplo do quanto valem suas carreiras.

Mas o valor é relativo, porque ao longo dos anos são muitos os exemplos de gerontofobia em uma indústria apaixonada pela carne jovem. A série FEUD, centrada nas carreiras de Bette Davis e Joan Crawford, deixa claro que o problema vem de anos. A obra de Ryan Murphy mostra as dificuldades que essas grandes estrelas tiveram na década de 1960 depois que atravessaram a barreira dos 50 anos, como se fosse um problema atual. “Hollywood mudou pouco em matéria de discriminação”, disse o autor.
Mas a situação está mudando. Robert de Niro, de 73 anos, está mais ativo do que nunca. Glenda Jackson voltou ao teatro aos 80 anos como protagonista de Rei Lear. Entre as grandes estreias nos Estados Unidos está a comédia de ação Snatched, que promove o retorno de Goldie Hawn aos 71 anos e depois de 15 anos afastada de Hollywood. Há ainda atualmente nas telas as veteranas Shirley MacLaine (82), Warren Beatty (80) e Rachel Welch (76), que trabalha em Como se Tornar um Conquistador. "Me faço de surda para quem me chama de último símbolo sexual. Por acaso Charlize Theron não é um símbolo sexual? Houve um momento em que Brad Pitt também era. E Angelina é uma mulher belíssima e muito sexy. Tudo depende dos olhos com que se vê”, disse Welch a este jornal.




A atriz, Glenda Jackson.
A atriz, Glenda Jackson. GETTY


Caine atribui o ressurgimento dos mais veteranos ao sucesso de filmes como O Exótico Hotel Marigold (2012), com um elenco em que Judi Dench e Maggie Smith marcavam a média de idade. “São muitos os espectadores da nossa idade que se sentem subestimados e que se identificam com a gente. A vida não para quando se chega a uma certa idade”, disse Ann Margaret. O gênero já conta com seu próprio nome: comédias de geriatria, um termo que faz seus protagonistas rirem. O que todos esses veteranos, dispostos a morrer sem pendurar as chuteiras, gostariam é de não só continuarem trabalhando, mas contar histórias que não falem unicamente da idade. “Eu simplesmente me vejo como um ator que consegue sobreviver como ator”, acrescenta, sem dar importância à idade.
Outra coisa é como são vistos por seus companheiros de viagem. Apesar de a média de idade dos membros da Academia estar acima dos 60 anos, e alguns dos grandes diretores, como Clint Eastwood, Woody Allen e Roman Polanski já terem passado dos 80, os filmes protagonizados por esses veteranos poucas vezes são reconhecidos nos prêmios. Como apontou um estudo da Universidade do Sul da Califórnia, apenas 11,8 por cento dos candidatos ao Oscar têm mais de 60 anos.