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segunda-feira, 9 de julho de 2018

Shirley Hazzard / O Trânsito de Vênus

Shirley Hazzard

Shirley Hazzard
O Trânsito de Vênus

POR EULER DE FRANÇA BELÉM

Shirley Hazzard sugere, em romance notável, que acaso decide a vida das pessoas



Como em certos romances de Henry James, “O Trânsito de Vênus” exibe personagens ambivalentes, limítrofes entre o bem e o mal, mas a leveza da australiana a diferencia do autor de “A Taça de Ouro”
“O Trânsito de Vênus” (Companhia das Le­tras, 476 páginas, tradução de Sonia Coutinho), da escritora australiana Shirley Hazzard (1931-2016), é uma obra-prima — dessas que, se ficar atento apenas às modas, o leitor deixa passar batido. O romance parece despretensioso e, aqui e ali, é mesmo parecido com algumas das ficções do americano Henry James, como “A Taça de Ouro”, “As Asas da Pomba” e “Retrato de uma Senhora”, sobretudo na questão da trama intrincada, com pistas plantadas (às vezes, de maneira enganadora; uma delas sobre o suicídio de Ted Tice. O leitor precisa ficar atento à ideia de vidas entrelaçadas, por exemplo as de Paul Ivory, Ted Tice e Caro Bell) para iluminar mas que, no geral, confundem e, até, iludem o leitor. Outra aproximação é a ambiguidade das personagens — nem sempre inteiramente boas, nem sempre inteiramente más; entretanto, sempre complexas, flertando com várias possibilidades. Há personagens que são boas, querem fazer o bem, mas submetem-se às pressões do mal, ainda que não sucumbam e não sejam totalmente omissas. “A verdade tem vida própria” — é o que se diz. “Nossos melhores instintos não são mais confiáveis do que a lei, nem mais consistentes. Quando vivemos essencialmente dentro da sociedade, há ocasiões em que preferimos depender da fórmula social — e descobrimos que, de alguma forma, arruinamos a possibilidade de agir conforme nosso próprio juízo. Nós nos desqualificamos por julgar os outros segundo as regras sociais”, anota Ted Tice, uma das vítimas da história, se se pode dizer assim — talvez não seja possível, porque, no romance, os indivíduos são sujeitos (mais do que seres passivos) de seus sucessos e desgraças. Como Henry James, Shirley Hazzard tem um olho clínico para os detalhes, realçando como uma roupa ou uma caneta diferentes, “novas”, começam a mudar o tempo, a moldar um novo tempo.
O que diferencia os dois autores é a leveza de Shirley Hazzard, que conta histórias terríveis, de um trágico exacerbado (as cenas sobre relações sexuais são imaginativas. O erotismo corre e escorre pelas palavras e frases, sem excessos, o que não é o mesmo que pura contenção ou moralismo disfarçado — é refinamento da linguagem. Ted Tice sublinha: “Beleza é a palavra proibida de nosso tempo, como sexo era para os vitorianos. Mas sem o mesmo poder de se reafirmar”), como se estivesse apenas expondo, sem condenar personagens. É provável que, como Machado de Assis, deixe os julgamentos, sobretudo os morais, para os leitores, até para que se sintam responsáveis por alguma coisa. O dramaturgo Paul Ivory é um grande personagem — ao estilo de Raskólnikov, de Fiódor Dostoiévski —, de caráter maligno e superficial (nos relacionamentos), mas cativante. Porém, a história não o põe na porta de uma delegacia ou à frente de um juiz. A doença de um filho talvez seja a única condenação. Se é.





Shirley Hazzard
Shirley Hazzard, que faleceu em dezembro, aos 85 anos, constrói personagens e histórias fascinantes, que mudam o seu tempo e são mudadas
por seu tempo, numa espécie de jogo dialético

Há personagens de primeira linha no romance, mas os centrais são Caroline Bell, a Caro, e Edmund Tice, o Ted. Este, um cientista celebrado (pobre que vence pelo talento), às vezes ecoa Shirley Hazzard e fica maior no final, de maneira surpreendente — assim como o fecho (se há uma conclusão) da história de Paul Ivory, de complexa vida dupla, deixa o leitor estupefato. Há uma notável reviravolta, que sugere que as vidas das pessoas ficaram inteiramente “ajustadas”, se o romance fosse prosaico, tradicional, o que não é. “Talvez o elemento da coincidência seja pouco enfatizado na literatura porque parece um engodo, ou porque não se consegue torná-lo verossímil. Mas a vida, em si, não precisa ser justa nem convincente”, afirma Ted Tice, como se sintetizasse a história ou as histórias do romance.
Há um enredo básico, que o narrador — às vezes suspeito — vai destrinchando aos poucos, confrontando e conectando as personagens e suas vidas. O leitor perceberá que há sempre um livro na história, nas mãos das pessoas (as notas sobre escritores e poemas da excelente tradutora são seminais). Há o livro dentro do livro, discussão sobre a literatura (há quem culpe a literatura por sua desventura). Thomas Hardy, Yeats e Keats são mencionados, ou melhor, sua arte. Há uma celebração da alta literaturam, mas sem pedanteria.





O trânsito de Vênus
Um romance brilhante precisa de personagens notáveis, como Ted Tice e Caro Bell, mas é a forma como a australiana Shirley Hazzard conta a história, notando a falta de linearidade da vida, seu caráter imprevisível, que torna “O Trânsito de Vênus” uma obra-prima

Caro e Grace Bell são irmãs. Os pais morreram num naufrágio, na Austrália. Quando crescem, vão para Londres, em companhia da mal humorada e trágica Dora. Na Inglaterra, conhecem a família Thrale. Christian Thrale apaixona-se por Grace. Caro, mais independente, aprecia mas não ama Ted Tice. Este, conversando com ela, admite: “Nada é menos atraente do que amor não desejado”. Quem interessa à belíssima e enigmática Caro, uma rebelde que não parece rebelde — porque é rebelde nas ações, não na fala —, é outro jovem, Paul Ivory, um homem bonito e inteligente, filho de um poeta, Rex Ivory, e que parece não amar nenhuma outra pessoa. No final do romance, quando decide transformar Caro numa espécie de (psic)analista, admite: “É poder falar que levanta a pessoa. Ou acaba com ela”. Adiante, Caro lhe diz: “À medida que o tempo vai passando a pessoa se revela, muitas vezes deliberadamente”.
Paul Ivory “prefere” não amar Caro, mas gosta de ficar ao seu lado e os dois se dão bem. Mas, entre a plebeia de espírito nobre, Caro, e a nobre de espírito mundano, Tertia Drage, o ambicioso Paul Ivory (que esconde duas coisas — uma sobre sua sexualidade e outra sobre um crime) escolhe as convenções. Caro, ao contrário, ama Paul Ivory, que a abandona.
Solitária, trabalhando numa repartição pública modorrenta (lá, um dia, a funcionária Valda Fenchurch se recusa “a preparar chá ou providenciar sanduíches” para os homens. O chefe, o sr. Leadbetter, questiona Caro, que diz: “As pessoas em geral precisam que lhes mostrem que uma coisa é inadequada. No início só uma pessoa costuma fazê-lo”), Caro conhece o viúvo Adam Vail, um homem rico e defensor de perseguidos políticos de um país da América do Sul. Ao visitar o país, Caro encanta-se com a vida e a poesia de um poeta que, preso e torturado, acaba morrendo nos calabouços da ditadura. Ela se torna tradutora de sua poesia. O poeta lhe disse certa vez: “Em qualquer grupo, há chefes e seguidores. Mesmo o lado certo não gosta de um homem que permanece sozinho”.
Adam Vail morre e Caro volta a ficar só mais uma vez, e permanece amada por Ted Tice. Há encontros e desencontros e a morte permeia as histórias. Grace, que não é dada à filosofia, diz para Caro, a irmã querida e tão diferente (uma, Caro, experimenta mais a diversidade da vida): “Primeiro há alguma coisa que você espera da vida. Mais tarde há o que a vida espera de você. Quando percebemos que as duas são a mesma coisa, talvez seja tarde demais para expectativas” (seu casamento com o maçante Christian, se não é dos piores, porque há amor, é conformista; ela gosta de um médico, mas não se atreve a ficar com ele, que a ama). O narrador espicha: “O que somos, não o que seremos. São a mesma coisa”. O narrador, que nem sempre tem o controle do que o romance conta, dada a vitalidade da voz das personagens, assinala: “A morte podia, muito facilmente, tornar os vivos errados, por mais certos que estivessem”. A mestria poética de Shirley Hazzard aparece num trecho como este: “A dor tinha um olho de pintor, atribuindo significados arbitrários ao acaso — como Deus”.





Shirley Hazzard
Shirley Hazzard, no início da vida de escritora

Escrever bem é uma obrigação de todo escritor. Mas o segredo de Shirley Hazzard não é apenas escrever bem, ser artífice de frases perfeitas, ser capaz de escrever uma história não (exatamente) linear, mas, ainda assim, com começo, meio e fim. Seu segredo é a mestria como relata as histórias, como as conecta, mas deixando espaços vazios, porque a vida, como assinala, não é exata, não é planejável nos mínimos detalhes. Aos indivíduos cabem escolhas, podem e devem traçar certos caminhos, mas há o imprevisível, o acaso. Os “fatos” dependem deles, mas não inteiramente (controle é quase uma fantasia). Caro Bell e Ted Tice (“reais e fictícios”), grandes figuras, fizeram escolhas, levaram suas vidas para determinados sendeiros, mas também foram jogados de um lado para o outro pelas contradições do verdadeiro terremoto que é a realidade, a vida. O final — ou finais — do romance “engana” o leitor. Há uma beleza na prosa de Shirley Hazzard que, de tão perspicaz e bem elaborada, aturde. Finalmente, outra diferença em relação a Henry James: a autora australiana é, quem sabe, mais filosófica. Só não parece porque não é “didática”, quer dizer, professoral. Sua prosa filosófica soa natural, como se fizesse, e faz, parte da vida. Há um mix de ceticismo e otimismo saudáveis. (O Ian McEwan do romance “Reparação” talvez tenha bebido em Shirley Hazzard.)
Há uma frase, à página 295, que parece um recado para o presidente Donald Trump: “Nosso grande medo secreto é que os Estados Unidos se revelem um fenômeno em vez de uma civilização”. O texto é da personagem Adam Vail, um milionário altruísta. O romance é de 1980.

Trechos-frases de “O Trânsito de Vênus”



sexta-feira, 23 de junho de 2017

Luiz Ruffato / Meus romances brasileiros preferidos



Meus romances brasileiros preferidos

Outra lista, desta vez contemplando apenas autores nacionais, limitada a autores que já se foram e livros publicados até 1977


LUIZ RUFFATO
9 DEZ 2014 - 06:31 COT


Alguns leitores que consultaram a lista dos meus romances preferidos, publicada na edição passada, solicitaram outra, desta vez contemplando apenas autores nacionais. Aceitei arrolar minhas predileções, mas, neste caso, tenho que explicar e justificar algumas opções. A primeira delas: limitei-me a autores mortos, com a raríssima exceção de Raduan Nassar, que deixou de escrever ainda nos anos de 1970. Portanto, circunscrevi meu universo de escolhas até àquela década – o título mais recente é “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, publicado em 1977. Outra observação importante: achei melhor citar apenas uma obra de cada autor, mas alguns deles poderiam, com certeza, estar aqui presentes com mais de um trabalho (casos de Machado de Assis e Graciliano Ramos, por exemplo). Finalmente, repito: trata-se de uma lista inútil, por subjetiva e aleatória, mas que talvez, como a outra, desperte curiosidade a respeito de um autor ou de um título. Eis tudo, que é nada...

Os 20 melhores romances, por ordem alfabética:
A chuva imóvel (1963), de Campos de Carvalho (Uberaba, MG – 1916-1998) – O absurdo e o lirismo marcam esse questionamento amargo sobre a morte. Sem possuir uma trama ou um claro fio condutor, o narrador nos conduz pelos terrenos úmidos e traiçoeiros da memória, neste que talvez seja, de seus quatro livros, o único em está ausente o humor. (José Olympio)
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector (Ucrânia – 1920-1977) – Sofisticada narrativa que mistura uma aguda consciência dos problemas sociais com uma elaborada discussão sobre o papel do intelectual em um país do Terceiro Mundo. Rodrigo, o escritor, discute seu processo de escrita, enquanto compõe a história da datilógrafa nordestina Macabéa. (Rocco)
A menina morta (1954), de Cornélio Penna (Petrópolis, RJ – 1896-1958) – O autor registra um dos mais poderosos retratos da escravidão no Brasil por meio do impacto provocado pela morte da filha de um barão do café fluminense nos habitantes da fazenda. Narrativa sombria, é um alentado estudo sobre os recônditos da alma humana. Infelizmente, fora de catálogo.
A Viúva Simões (1897) - Júlia Lopes de Almeida (Rio de Janeiro, RJ – 1862-1934) – A autora, injustamente desprezada pela crítica, urde neste livro uma corajosa e ousada trama em que mãe e filha disputam o amor pelo mesmo homem. Antirromântica, desenha uma mulher que, rompendo com padrões sociais, coloca em xeque valores de todos os tempos. (Mulheres – esgotado)
Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso (Curvelo, MG – 1912-1968) – Romance sobre a decadência social e moral de uma tradicional família mineira, usa de uma complexa estrutura narrativa para falar de incesto, adultério, homossexualismo, loucura. A atmosfera de pesadelo nasce de um olhar intermediado pela poesia. (Civilização Brasileira)
Fogo morto (1943), de José Lins do Rego (Pilar, PB – 1901-1957) – Último volume do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” mostra, com a decadência do Engenho Santa Fé, não só o fim de uma era econômica, mas principalmente a transformação de um mundo, cujos valores baseiam-se na violência, física e psicológica, na ignorância e na corrupção. (José Olympio)
Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa (Cordisburgo, MG – 1908-1967) – Riobaldo Tatarana desfia sua história num jorro compacto, servindo-se de uma linguagem arrebatadora. Seu companheirismo com Diadorim na jagunçagem pelos sertões de Minas Gerais encobre segredos e dúvidas, a respeito do visto e do indizível. (Nova Fronteira)
Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar (Pindorama, SP – 1935) – Autópsia de uma família cujos valores, baseados na culpa e na punição, engendram a intolerância e a frustração. Narrado de forma não linear, conta a história da fuga de André da sombra castradora do pai, e sua volta para casa, o que acabará gerando uma tragédia. (Companhia das Letras)
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (Rio de Janeiro, RJ – 1839-1908) – Dedicado “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, marca a entrada de Machado de Assis no rol dos maiores autores da literatura universal. Cínico e sarcástico, fala ao Brasil de todos os tempos. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida (Rio de Janeiro, RJ – 1831-1861) – Narrativa que beira o picaresco em uma época de domínio das histórias românticas, tem como protagonista um sujeito que tudo faz para se dar bem na vida. Espécie de ilustração do homem comum brasileiro. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade (São Paulo, SP – 1890-1954) – Escrito em fragmentos e em estilos os mais diversos, usa do sarcasmo para expor a vida do protagonista, João Miramar. Ao fim e ao cabo, trata-se da visão de mundo da elite brasileira, com seu autismo social e absoluto desprezo pelo país. (Globo – esgotado)
O Ateneu (1888), de Raul Pompéia (Angra dos Reis, RJ – 1863-1895) – “Romance de formação”, acompanha as agruras de um sensível garoto de 11 anos no universo de um colégio que prima pela disciplina. Microcosmo da sociedade do fim do século XIX, expõe a violência e a crueldade por trás da fachada da moralidade. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (São Luís, MA – 1857-1913) – Romance coletivo, expõe, de maneira brilhante, o processo de formação social do Brasil, por meio de histórias paralelas. O aristocrata decadente, o burguês ignorante em ascensão, a miséria atávica a que está agrilhoada a população pobre. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
O risco do bordado (1970), de Autran Dourado (Patos de Minas, MG – 1926-2012) – Memorial afetivo, acompanha a visita João Fonseca Ribeiro, alter ego do autor, à mítica cidade do interior de Minas Gerais, Duas Pontes. Pelas ruas ele esbarra, todo o tempo, com lembranças que reavivam o passado, contaminam o presente e determinam o futuro. (Rocco)
O tempo e o vento (1942, 1951, 1962), de Érico Veríssimo (Cruz Alta, RS – 1905-1975) – Composta por sete tomos, o leitor acompanha mais de um século e meio de história do Brasil – centrada na formação do Rio Grande do Sul, pouco a pouco se espraia para o resto do país. Um dos painéis mais completos sobre a mentalidade política nacional. (Companhia das Letras)
Os ratos (1935), de Dyonélio Machado (Quaraí, RS – 1895-1985) – Naziazeno tem uma dívida com o leiteiro. Para saldá-la, percorre por um dia inteiro as ruas de Porto Alegre em busca de alguém que possa lhe emprestar dinheiro. Narrativa do desamparo, possui tal maestria que o real a todo momento parece se dissipar numa quase irrealidade. (Planeta)
Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto (Rio de Janeiro, RJ – 1881-1922) – Culto e refinado, o protagonista não consegue se inserir na sociedade porque é negro. Narrativa sobre o preconceito racial, descreve uma realidade, do começo do século XX, que pouco difere da dos dias atuais. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro (Itaparica, BA – 1941-2014) – O protagonista é encarregado de levar um preso político até Aracaju. No trajeto, há uma reviravolta política e o coronel de quem o Sargento Getúlio é homem de confiança, emite uma contraordem, que ele não irá acatar, mergulhando-os em um mar de violência absurda. (Alfaguara)
São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos (Palmeira dos Índios, AL – 1892-1953) – Paulo Honório expõe suas lembranças, de trabalhador de eito a grande fazendeiro, para tentar compreender seu fim, solitário e amargo. Ambicioso, cruel, inescrupuloso, avaro financeira e afetivamente, quanto mais acumula posses, mais intolerante se transforma. (Record)
Senhora (1875), de José de Alencar (Messejana, CE – 1829-1877) – Moça pobre, Aurélia recebe de herança uma grande fortuna e resolve se vingar das humilhações sofridas. Para isso, compra um marido, financeiramente falido. Retrato perfeito da substituição dos valores da aristocracia decadente pelos da burguesia ascendente. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Luiz Ruffato / Meus romances preferidos



Meus romances preferidos

Existem dois tipos de listas: as necessárias e as inúteis, sendo que em muitos casos, dialeticamente, as necessárias tornam-se inúteis e as inúteis, necessárias



LUIZ RUFFATO
2 DEZ 2014 - 17:29 COT



Não sei quando começou a necessidade de fazer listas, mas posso imaginar nosso antepassado mais remoto riscando na parede da caverna, à lua de uma tocha, signos que indicavam quanto de alimento havia sido estocado para o inverno que se aproximava ou, como somos competitivos, a relação entre nomes de integrantes da tribo e o número de caças abatidas por cada um deles.
Se formos propor uma hermenêutica acerca do tema, talvez possamos afirmar que existem dois tipos de listas: as necessárias e as inúteis, sendo que em muitos casos, dialeticamente, as necessárias tornam-se inúteis e as inúteis, necessárias. Tomemos dois exemplos. Todo mês, enumero as coisas que faltam na despensa de minha casa antes de me dirigir ao supermercado: essa lista arrolo na categoria das necessárias. Por outro lado, há pessoas que anotam suas metas para o ano que se inicia, começar a fazer ginástica, parar de fumar, cortar em definitivo o açúcar, ser mais solidário, menos intolerante: essa, elenco na categoria das inúteis...
Liev Tolstói


Feitas as compras, a lista do supermercado, necessária, torna-se então inútil. A lista contendo nossos desejos de sermos melhores para nós mesmos e para os outros, embora inútil, pois dificilmente as cumprimos, convertem-se em necessárias, porque estabelecem um vínculo com o futuro, e projetarmo-nos é uma forma de vencer a morte.
Tudo isso, para justificar o que se segue. Ninguém me perguntou, mas resolvi organizar uma lista dos melhores romances que li em minha vida – escolhi o número vinte, não por motivos místicos, mas porque talvez, pela amplitude, alinhave, mais que preferências intelectuais, uma história afetiva das minhas leituras. Enquadro-a na categoria das listas inúteis, mas quem sabe, se consultada, municie discussões, já que toda escolha é subjetiva e aleatória, ou, na melhor das hipóteses, suscite curiosidade a respeito de um título ou de um autor. Ocorresse isso, me daria por satisfeito.
Os 20 melhores romances, por ordem alfabética:
Anna Kariênina, de Liev Tolstói (1828-1910) – Publicado em 1877, traça um painel da sociedade russa do século XIX. Tem a melhor frase de abertura de uma narrativa de ficção, verdadeira aula de teoria literária: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”. A edição da Cosac Naify conta com excelente tradução de Rubens Figueiredo.
Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin (1878-1957) – Lançado em 1929, acompanha a trajetória do desajustado Franz Biberkopf pelas ruas de uma Berlim caótica do período entreguerras,. A vertigem de um mundo em colapso expressa-se de maneira magnífica numa narrativa que se quer, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva. Editado pela Martins, com tradução de Irene Aron.
Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez (1927-2014) – Em 1967, o povoado de Macondo, situado num país qualquer da América Hispânica, torna-se universal. Ali, se desenvolve a saga dos Buendía, um ciclo interminável de histórias cujos protagonistas vivem no tênue limite entre real e fantástico. Publicado pela Record, com tradução de Eric Nepomuceno.
Miguel de Cervantes

Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1547-1616) – Composto por dois tomos, o primeiro lançado em 1605 e o segundo dez anos depois, trata-se da obra mais completa da história da literatura universal. Paródia dos romances de cavalaria, ilustra à perfeição o eterno embate entre racionalismo e idealismo. Há várias traduções, mas recomendo a de Sergio Molina, pela Editora 34.
Enquanto agonizo, de William Faulkner (1897-1962) – Embora não seja a mais conhecida das obras do autor, este romance, publicado em 1930, lança luz sobre os Bundren, família pobre do sul dos Estados Unidos, que busca cumprir o último desejo da matriarca. Disponível apenas numa edição de bolso da L&PM, com tradução de Wladyr Dupont.
Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac (1799-1850) – Lucien de Rubempré é um dos mais fascinantes personagens da literatura. Intelectual provinciano, busca firmar-se em Paris no início do século XIX. Egoísta e arrogante, mas também ingênuo, vê seus sonhos ruírem, após descartado pela mesma sociedade que o adotara. Publicado em 1837, possui seis diferentes traduções disponíveis.
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908) – Dedicado “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, este romance, de 1881, marca a entrada de Machado de Assis no rol dos maiores autores da literatura universal. Cínico e sarcástico, Brás Cubas fala ao Brasil de todos os tempos. Há inúmeras edições disponíveis, das excelentes às péssimas.

Moby Dick, de Herman Melville (1819-1891) – Publicado em 1851, este verdadeiro compêndio de possibilidades narrativas possui uma dimensão épica que nos remete à própria criação do mundo – o tema ultrapassa, em muito, a perseguição da grande baleia branca pelo capitão Ahab. A melhor edição é da Cosac Naify, com tradução de Alexandre Barbosa da Silva e Irene Hirsch.
No coração das trevas, de Joseph Conrad (1857-1924) – Neste libelo anticolonialista, lançado em 1902, acompanhamos o narrador Charles Marlow penetrando no âmago da África Central em busca de um enigmático personagem chamado Kurtz. O que ele encontra é apenas o horror. Há algumas edições disponíveis: recomendo a tradução de José Roberto O’Shea, pela Hedra.

O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald (1896-1940) – Romance da era do jazz, publicado em 1925, mostra os bastidores da vida luxuosa da classe média endinheirada da Costa Leste dos Estados Unidos. Por trás da futilidade e da loucura, a solidão e o vazio que prenunciam a tragédia. Há pelo menos sete diferentes versões disponíveis no mercado.
O leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) – Somente publicado dois anos após a morte do autor, este é o depoimento do fim de uma época, a da decadente aristocracia refinada e parasita. Tem uma das frases mais emblemáticas do exercício da política: “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude”. Fora de catálogo, disponível apenas em sebos.
O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë (1818-1848) – O amor entre a complicada Cathy Earnshaw e o rancoroso Heathcliff ultrapassa as convenções sociais, o tempo e até mesmo a morte. Publicado em 1847, é a narrativa da paixão cega e da vingança a qualquer preço, desenvolvida nos grotões de uma Inglaterra selvagem. Disponível em pelo menos sete versões diferentes.
O mundo se despedaça, de Chinua Achebe (1930-2013) – A chegada do homem branco a uma remota área habitada pela etnia ibo, às margens do rio Níger, desestabiliza a sociedade local, de religião anímica e regras próprias. A introdução do cristianismo desintegra rapidamente algo que durava desde tempos imemoriais. A edição original é de 1958. Fora de catálogo.

O processo, de Franz Kafka (1883-1924) – Romance antecipatório da aniquilação da subjetividade, que caracterizaria o século XX. A força de sua ficção engendrou até mesmo um adjetivo, kafkiano, para designar situações absurdas. Publicação póstuma, de 1925, conta com duas boas traduções, de Modesto Carone e Marcelo Backes, pela Cia das Letras e L&PM.
O vermelho e o negro, de Stendhal (1783-1842) – Egoísta e ambicioso, Julien Sorel usa, sem escrúpulos, seu charme e simpatia para galgar um lugar na exclusivista sociedade francesa pós-napoleônica, com resultados trágicos. Lançado em 1830, é um monumento do realismo psicológico. Recomendo a edição da Cosac Naify, traduzida por Raquel Prado.
Oblómov, de Ivan Goncharóv (1812-1891) – Publicado em 1859, é um retrato da derrocada da sociedade russa. O aristocrata Iliá Ilitch Oblómov, incapaz de tomar qualquer atitude prática na vida, até mesmo de se levantar da cama, assiste seu mundo sucumbir à inércia e à indiferença. Publicado pela Cosac Naify, com tradução de Rubens Figueiredo.
Os Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) – Lançado em 1879, narra a complexa relação do avaro Fiódor Karamázov com seus três filhos: Dmitri, o primogênito, e seus meio-irmãos, o intelectualizado Ivan e o místico Aleksiei. Esse romance antecipa vários temas que seriam depois discutidos pela psicanálise. Recomendo a tradução de Paulo Bezerra, pela Editora 34.

Pedro Páramo, de Juan Rulfo (1917-1986) – “Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um certo Pedro Páramo”. Comala e Pedro Páramo, aos poucos, se fundem nesta narrativa a um só tempo realista e fantástica, construída em fragmentos aparentemente desconexos. Lançado em 1955, é editado no Brasil pela Record, com tradução de Eric Nepomuceno.
Viagem sentimental pela França e Itália, de Laurence Sterne (1713-1768) – Publicado em 1768, é uma narrativa satírica que coloca em xeque a própria forma do romance. Inicia-se abruptamente e termina com uma vírgula, sem sequer alcançar a Itália, objetivo aparente do personagem, se levarmos a sério o título. Tem uma edição pela Hedra, com tradução de Luana Ferreira de Freitas.
Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1667-1745) – Numa época em que pululavam livros de naturalistas que descreviam terras desconhecidas, o autor imagina seu personagem, Lemuel Gulliver, visitando lugares improváveis, criando, assim, uma poderosa sátira sobre a sociedade europeia. Recomendo a edição da Cia das Letras, com excelente tradução de Paulo Henriques Britto.