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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Gaza, além da faixa

Gaza

Gaza, além da faixa

Gaza não é uma estreita faixa de terra, mas uma imensa região que sangra copiosamente em, pelo menos, três hematomas



Com o cessar-fogo, é mais fácil avaliar a extensão do incêndio: logo se percebe que Gaza não é uma estreita faixa de terra semiarrasada, com seis ou doze quilômetros de largura. É uma imensa região -- coração do Oriente Médio -- que sangra copiosamente em, pelo menos, três hematomas.
O conflito Israel versus Hamas, ora suspenso, é apenas um deles. Outro é a guerra civil na Síria onde o governo enfrenta há três anos rebeldes de diferentes etnias e convicções. O terceiro localiza-se no Iraque, parcialmente ocupado por um levante de fundamentalistas de origem waabita (a mesma dos sauditas), que pretendem chegar à Síria para formar um novo califado, o Estado Islâmico do Iraque e Levante.
No momento, ameaçam arrasar o enclave dos curdos no norte do Iraque, razoavelmente próspero e autônomo, para chegar às montanhas onde se abrigam os yazidis (minoria também curda, oriunda do zoroastrismo).
A nova ofensiva do exército pró-califado, nesta quinta, levou o presidente Barack Obama a autorizar os ataques aéreos a alvos selecionados no Iraque, três anos depois da retirada das tropas americanas do país. Considerando que o chamado Curdistão compreende não apenas o Iraque, mas também parte da Síria e principalmente a Turquia, evidencia-se a extensão desta Grande Gaza que a trégua informal entre Israel e o Hamas permite entrever.
Esta assustadora convulsão ao sul de um império russo subitamente tornado insano com a derrubada do seu títere, Viktor Yanukovich, na Ucrânia, recria justo no centenário da Grande Guerra um cenário de entrelaçamentos e vinculações, efeitos-dominó e efeitos-cascata de triste memória. As rememorações com entonação pacifista começam a ser substituídas por um “espelhismo” compulsivo que tenta assemelhar dissemelhanças mesmo em circunstâncias, momentos e com teores diametralmente opostos.
Aflitas Cassandras já se movimentam: agosto com seus habituais desgostos e setembro com a lembrança do início da 2ª Guerra Mundial, ao invés de estimular remissões inspiradoras cria um culto determinista e fatalista que só agrava a asperezas da realidade.
O tabuleiro da 3ª Guerra Mundial não está armado, sequer pode ser cogitado. O impensável permanece impensável, distante. A atual turbulência tem ingredientes capazes de desativa-la e mesmo crenças baseadas na autoimolação e no sacrifício são insuficientes para anular no ser humano a sua capacidade de gozar os frutos do seu espírito e talento.
Já tivemos momentos de igual gravidade e os líderes por eles forjados souberam perceber as brechas por onde avançar.



quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Eliane Brum / Limites da linguagem

Bento Barbosa
Menino tirando espinho do pé, 1897

Limites da linguagem

Uma história em que faltam cada vez mais palavras



A entrevista estava marcada na casa dele, numa das favelas mais pobres de Fortaleza. Era o dia do jogo do Brasil contra o México, e o menino com nome de poeta fazia parte de uma seleção que jogou a Copa do Mundo dos Meninos de Rua. De manhã bem cedo, eu e o fotógrafo esperávamos, na porta de uma ONG ainda fechada, o educador que nos levaria até aquele emaranhado de endereços desencontrados, um território dividido por duas quadrilhas rivais do tráfico de drogas. O menino apareceu de repente, vestido com uma camiseta do Brasil. Sem olhar para mim, ele disse: “Na minha casa, não.” Não dizia o porquê. Apenas sacudia a cabeça em sinal de negativa explícita. Ele era pequeno para os seus 15 anos, mas o seu “não” era enorme.
A porta da ONG abriu, e ele entrou. Sentou-se na cadeira da recepção e tentou ligar o computador. Me agachei ao lado dele e arrisquei algumas perguntas. Ele só me atirava monossílabos. Passou-se muito tempo, talvez quase uma hora de silêncios entre nós, interrompidos por uma ou outra palavra que servia ao menino apenas como demarcação do território. O território que ele não queria que eu alcançasse, as palavras curtas marcando que não haveria palavras longas. Eu não sabia se tinha o direito de continuar ali, talvez nunca saiba. Mas ele também não ia embora. Ficamos os dois, eu tentando entrar, ele se esforçando para que eu não entrasse, o que era uma forma de conexão, já que nos mantinha ambos ali.
Então a cozinha da ONG abriu. E, de um salto, ele já estava lá. Como se eu fosse um vira-lata esquecido, me chamou com displicência. Mas continuava sem me olhar. Sentei-me diante dele e o vi devorar um pão em menos de um minuto. No segundo pão, ele me enxergou pela primeira vez. Me ofereceu um pedaço. A certa altura, parecendo com pena de mim, disse:
- Você entende só um pouco de português, né?
O menino tinha razão. Eu não falava o português dele, como conto na reportagem que escrevi. Não alcançava a riqueza da sua língua portuguesa, que dava conta de um Brasil diverso, com palavras nascidas ali mesmo. Expressões gestadas na necessidade de dar conta de uma realidade na qual era necessário, por exemplo, nomear o momento-limite em que o gatilho da arma é acionado, mas a bala não sai.
Mas era mais do que isso. Eu demorei a lê-lo. Eu era analfabeta dele. O seu “não” da altura de um edifício, a postura do seu corpo, entre acuada e pronta para saltar no meu pescoço, o seu medo de mim, que às vezes beirava a raiva, era fome. Algumas vezes me deparei com essa fome, a fome que é um substantivo sem adjetivo possível. E em todas elas foi difícil para mim reconhecê-la, porque esse alfabeto, irredutível e irrepresentável, me é inacessível.
O menino me leu muito antes de eu a ele. Percebeu que eu era estrangeira ao seu Brasil. Estranhou a cor da minha pele, a tonalidade do meu cabelo, a forma e o som das minhas palavras. Estranhou que eu precisasse de tradução para algumas de suas frases. Estranhou porque havia que estranhar.
Contei essa história, na versão resumida de um parágrafo, em minha participação na FLIP (Festa Literária de Paraty), na semana passada. Penso que quem escreve está sempre nessa condição de estrangeiro. Não turista, jamais turista. Mas estrangeiro, aquele que estranha e que é estranhado, movimento duplo que nos torna capazes de escutar um outro ser-estar na linguagem – e também fora da linguagem. Ser capaz de estranhar para não cometer a traição de encaixotar o outro num escaninho seguro onde ele é reduzido a uma daquelas borboletas mortas presas por um alfinete.
A literatura é a experiência da alteridade, que só se completa na incompletude refletida no olhar do outro. Por isso demanda o movimento de abertura para o desconhecido, mesmo que o sentimento seja incômodo ou mesmo perturbador. Mesmo que não se possa nomear o contato com as palavras disponíveis, mesmo que seja preciso escutar no tempo do outro.
Depois que o menino com nome de poeta me dá um lugar, o de estrangeira, ele de súbito me aperta num abraço. Ele me acolhe com minhas faltas, ele completa com explicações as ausências que ainda tenho de sua língua portuguesa, na qual sou uma ouvinte aprendiz. Ele me reconhece como uma pessoa. A condição estrangeira que encontramos num e noutro nos torna, paradoxalmente, sem fronteiras. Como pessoas, transitamos entre um e outro. É por isso que nossos corpos podem se tocar para muito além da carne.
O menino então me leva à sua casa. Há nela um velho móvel-geladeira, o único lugar para guardar comida. Ele hesita em me mostrar. Ainda não sabe se pode abrir mais essa fechadura. Mas ele abre, porque eu insisto. (E não deveria ter insistido, porque não tinha esse direito.) Eu enfio a cabeça dentro da boca do móvel-geladeira e vejo. Eu faço o que costumo fazer quando enxergo mais do que deveria: baixo os olhos e garrancho anotações no meu bloquinho. Ele diz: “não”. Não conte. Eu não conto. E, porque não conto, não posso esquecer.
Às vezes acontece assim. Há pessoas que continuo lendo e lendo e lendo porque escrevi sobre elas e as palavras continuam faltando. E quanto mais escrevo, mais as palavras faltam. É uma vertigem, quase uma alucinação, em que as palavras avançam e o texto aumenta, mas o espaço em branco é maior, sempre maior. Por escrito, o menino com nome de poeta é assim.
Eu me equilibrava sobre as pedras de Paraty nos últimos dias, entre escritores e leitores, e o menino era o livro para sempre incompleto que carregava comigo. Há livros que não podem ser terminados, e isso é brutal. A vida avança no tempo, e com ela as páginas que jamais serão concluídas, as páginas que denunciam nossa impotência, vão ficando mais numerosas. De todas as páginas em branco que carrego comigo as da fome talvez sejam as piores. Porque só tenho uma palavra, fome, e ela tão pouco diz. E me faltam todas os substantivos que alimentam.
Num desses dias abri um livro de Octavio Paz. A epígrafe é um texto do poeta espanhol Antonio Machado. Evoca a resistência do “outro” diante das tentativas de torná-lo o “mesmo”.
“O outro não existe: essa é a fé racional, a crença incurável da razão humana. Identidade=realidade, como se, afinal de contas, tudo tivesse que ser, absoluta e necessariamente um e sempre o mesmo. Mas o outro não se deixa eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de roer no qual a razão humana perde os dentes”.
Um livro é como o móvel-geladeira do menino com nome de Poeta que me tratou como Pessoa. Se abrir, o risco é seu. E é para sempre.









quinta-feira, 24 de julho de 2014

Gaza / Efeitos colaterais

Moradores correm em busca de refúgio na Faixa de Gaza. / Hatem Ali (AFP) / HATEM ALI (AFP)

Efeitos colaterais

A questão central é que Israel nunca permitiria um Estado palestino soberano


O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu afirma que o propósito da invasão de Gaza é destruir os túneis que ligam a Faixa com Israel, por onde escorregam os terroristas do Hamas. Por que, então, os 10 dias de bombardeios prévios à invasão terrestre? Por que o Hamas recusou um cessar-fogo que teria diminuído a carnificina? E, se isso tem sentido, quem sai ganhando ou perdendo com o massacre?
O grande perdedor só pode ser o povo palestino, que sofreu uma orgia de efeitos colaterais, ou seja, mulheres e crianças entre as várias centenas de mortos, milhares de feridos e detidos, inumeráveis casas destruídas, e a demolição total ou parcial de seus já exíguos serviços públicos.
A opinião israelense e de seu primeiro-ministro é sim, ao que parece, de confiança de ter ganhado, pelo menos no curto prazo. Netanyahu sabe que uma campanha assim produz uma união em apoio ao Exército, que com sua Operação Limite Protetor combate tanto a ameaça dos foguetes e as infiltrações do Hamas, quanto procura manter sob controle sua extrema direita, que pede a reocupação da Faixa e uma punição ainda mais exemplar, como se a matança não fosse suficiente. E, em uma estranha simetria, o Hamas pode pensar que ganha também porque, em comparação com a Autoridade Palestina de Mahmud Abbas, pode se ufanar de ser o único que enfrenta os invasores.
Há limites, no entanto, para tanta ganância. Ao establishment israelense não interessa a destruição completa do inimigo, se isso fosse possível, porque o vazio assim criado seria preenchido por uma dúzia de facções, a maioria divisões do Hamas, de um jihadismo ainda mais radical, enquanto que a organização que governa a Faixa cumpre com perfeição um útil propósito político: permite a Israel afirmar que não há negociação de paz possível com terroristas, condenados à destruição do Estado sionista.
Como destaca o jornalista libanês Rami G. Khouri, tanto quanto a destruição dos túneis, o que importa a Netanyahu é “cortar a grama” sob os pés da guerrilha, destruir a infraestrutura do Hamas, operação que, pelo visto, convém repetir por vários anos —a última vez foi em 2008-2009, com um saldo de 1.400 palestinos e 13 israelenses mortos— para impedir que a organização reconstrua seu aparato militar, ao mesmo tempo em que a mantém permanentemente na defensiva. Isso explicaria os 10 dias de bombardeios, antes do início da busca dos túneis.
Longe do teatro da ação aparece, no entanto, outro grande perdedor: Barack Obama, ou a viva imagem da impotência. A matança dispara e o presidente norte-americano expressa “sua preocupação” por telefone a Netanyahu, e quando este dê por finalizada a operação, até deverá agradecê-lo. A questão central, em qualquer caso, foi manifestada pelo primeiro-ministro israelense em uma entrevista coletiva, com a invasão já mediada, ao dizer que Jerusalém nunca permitiria a existência de um Estado palestino plenamente soberano. E sua justificativa chama-se Hamas.