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sexta-feira, 14 de julho de 2023

Cinema e Psicanálise / Uma aproximação

Cena mítica de "Um cão andaluz" (dirigido por Buñuel em parceria com Dalí em 1929), considerado o maior representante do cinema surrealista


Cinema e Psicanálise

Uma aproximação

28 JANEIRO 2017, 

Luís Buñuel, cineasta e surrealista, disse um dia:

bastaria à branca pupila da tela do cinema poder refletir a luz que lhe é própria para fazer explodir o universo.

O que é o cinema? (Pode parecer uma questão demasiado óbvia). De que maneira nos relacionamos com um dos textos mais poderosos do Século XX? E do XXI também. (Já não é tão óbvio assim). Pois mesmo que tenha perdido o estatuto de ser o ecrã para onde todos os olhos se voltavam, hoje a TV, o DVD e os ecrãs do computador ocupam mais espaço, alcançou outro estatuto. Deixa de ser o centro fornecedor de imagens, e converte-se ele mesmo, numa grande fonte referencial. É nele que os outros se alimentam ou se alimentaram. Como ele um dia, se alimentou do real. Assim, o cinema, neste instante, chega mesmo a ocupar o lugar do real na produção da iconografia contemporânea.

Cinema e psicanálise surgem, praticamente, ao mesmo tempo: em 1895, quando os irmãos Lumière traziam à luz o seu invento, (ou melhor, uma versão aperfeiçoada do aparelho de Edson), Freud publicava, com Breuer, os Estudos Sobre a Histeria. É interessante notar que Freud nunca se ocupou desta nova arte, apesar de ter feito analogias entre o aparelho psíquico e alguns aparelhos óticos. Foi Lou Andreas Salomé que em 1913 disse:

“a técnica cinematográfica é a única que permite uma rápida sucessão de imagens e que corresponde mais ou menos às nossas faculdades de representação.”

E continua: “O futuro do filme poderá contribuir muito para a nossa constituição psíquica”. É interessante observar o percurso de aproximação que estes dois textos, a psicanálise e o cinema, tão fundamentais no século XX, ao longo da história. E mais ainda é interessante perceber que tanto um como o outro, colocam em evidência o sujeito e é através dele que vão se constituir enquanto instrumento de compreensão ou de sedução da mente humana. O sujeito passa a se reconhecer como lugar originário do sentido. Os aparelhos óticos, quando surgem, servem para tirar o sujeito deste centro, é só pensarmos na era de Galileu e no fim do geocentrismo. Mas são também os aparelhos óticos que recolocam o homem no centro da produção imagética ocidental. Através da câmara obscura, o Renascimento reorganiza o espaço privilegiando o olho do homem, elemento central, princípio da coerência e da ordem.

O espaço geometrizado do Renascimento subverte as hierarquias da imagética medieval e o aparente caos é substituído por uma nova ordem. Se os artistas da renascença alimentaram pretensões demiúrgicas, de competir com Deus na criação do universo, (aliás é nesta altura que o artista passa a ser chamado CRIADOR), concretizam suas pretensões na criação de um universo imagético mais que perfeito, hiper-real, criando, ao mesmo tempo, a ilusão de que estavam apenas a reproduzir O REAL. E este olhar é incorporado pela câmara, o homem volta a ter um lugar na iconografia ocidental, depois de ter sido violentamente banido pelas vanguardas que tenderam de uma maneira ou de outra, para a abstração e dissolução do sujeito. E a câmara, como um olho aperfeiçoado, passeia pelo corpo do homem, reconstruindo, metafórica e metonimicamente o sujeito.

Falar de cinema é também fazer uma opção por um modelo que melhor se adeque aquilo que queremos sublinhar. Assim, quando falo de cinema neste momento, falo do Modo de Representação Institucional, conforme Noel Burch, termo que substitui e aprofunda um conceito, o de cinema clássico, produto de Hollywood. E porque nos interessamos particularmente por este? Por ser exatamente o modelo que mais vai ser explorado por todos àqueles que se aproximaram do objeto cinema como espaço de investigação utilizando o instrumental analítico da psicanálise.

Em 1916 Hugo Munsterberg escreve aquela que é considerada a primeira teoria do cinema, The photoplay: a psychological study. Nesta obra defendia, já a partida, que o cinema que realmente interessava era o narrativo. Numa altura em que o cinema descobria a sua gramática e se organizava enquanto linguagem, Munsterberg já vaticinava qual deveria ser a vocação do cinema: contar histórias através das imagens. E vai analisar de que modo o cinema se organiza enquanto dispositivo de representação e, neste processo, encontra imensas similitudes entre o cinema e o funcionamento da mente humana. Para Musnterberg era óbvio que as propriedades cinemáticas eram também propriedades mentais, e que o cinema não acontece no ecrã, onde é projetado, mas é a nossa mente, que organiza o relato, da mesma maneira que organiza também o mundo que a circunda. Tomemos, por exemplo, o mecanismo da atenção. A mente não vive apenas num mundo em movimento, ela organiza esse mundo através da propriedade da atenção. Somos capazes de hierarquizar aquilo que nos rodeia e construir o nosso próprio percurso no real. O cinema utiliza este mesmo mecanismo só que de uma maneira bastante perversa. Ele manipula a nossa atenção, obrigando-nos a ver apenas aquilo que o olho da câmara capta. Além daquela imagem ali plasmada, só há o escuro da sala que nos circunda.

E o escuro da sala que nos circunda, além da manipulação do nosso olhar, é um tema que vai gerar os mais profícuos estudos na área do cinema produzidos, como já disse, com instrumental da psicanálise. É através da compreensão de uma situação cinema que teóricos como Mauerhofer, Christian Metz, Jean-Louis Baudry, Oudart, Barthes e Emile Benveniste, dentre muitos outros, vão penetrar nos mecanismos ideológicos deste texto cultural que é, ao mesmo tempo, instituição, dispositivo e linguagem.

Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz:

“ver a si mesmo metamorfoseado diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra pessoa”.

Fala-nos aqui da identificação, necessária para o gozo e catarse diante do texto que se desenrola perante os nossos olhos. E ao falarmos do cinema, esta sua afirmação torna-se ainda mais precisa, pois, conforme Baudry, o cinema é um aparelho de simulação que não se contenta em fabricar imagens simulacros, percebidas como representação da realidade, mas, dirige-se ao espectador, como sujeito psíquico, provocando o “efeito-cinema”, o retorno a um narcisismo relativo, a uma forma de realidade envolvente onde os limites do próprio corpo e a sua relação com o exterior não são muito precisos.

O corpo se expande através do olhar. “Os acontecimentos, diz Emile Benveniste, são dispostos como se estivessem se produzindo à medida que aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui. Os acontecimentos parecem se narrar a eles próprios.” Daí a preferência de alguns estudiosos pelo Modo de Representação Institucional, pois é ele que necessita, mais do que qualquer outro, de ser desvendado. Desmascarado. O cinema clássico escamoteia o discurso, ou melhor, escamoteia a sua condição de discurso, provocando, no sujeito, uma identificação maior do que em qualquer outra arte do espetáculo. A análise da situação-cinema é apenas uma das vertentes de aproximação da psicanálise ao cinema. Mas, para mim é, sem dúvida, uma das mais interessantes.

Nos anos 60 Mauerhofer vai analisar o que leva um sujeito a se entregar, desarmado, quase sempre, a esta relação com o cinema. Ele nos fala da entrada na sala escura, do corte com a realidade exterior que seria ainda mais perfeito numa sala de cinema ideal, completamente às escuras. E neste escuro, que para Barthes, cria a mesma sensação do devaneio crepuscular, que coloca o sujeito num estado pré-hipnótico, surgem também outras condições que desempenham papéis decisivos na situação cinema, tais como: sensação alterada de tempo e espaço, tédio incipiente e exacerbação da atividade da imaginação. Além disso, Baudry acrescenta mais alguns aspetos fundamentais para se compreender a situação do espectador. Utilizando o mito da caverna platónica, Baudry vê o espectador do cinema numa situação similar: ele está ali “amarrado” à cadeira, numa caverna escura (uterina, segundo Barthes), onde só tem acesso ás sombras projetadas no ecrã. Imobilidade em uma sala escura provoca o retorno a um estado antigo do psiquismo, a uma regressão, da pessoa que dorme. O dispositivo fílmico é vizinho ao dispositivo do sonho. (Por isso os surrealistas se interessaram tanto pelo cinema e por isso acreditavam verdadeiramente na sua capacidade transgressora).

Imaginemos agora o sujeito na situação cinema, diante de um filme narrativo clássico, cujo tema central quase sempre recai no herói que sai de casa, para depois de cumprir a sua tarefa, regressar. Maria Rita Kehl, psicanalista brasileira, faz uma análise interessante deste cinema do eterno retorno. Para ela, o cinema americano típico está sempre a mostrar o herói a romper com a ordem para, logo de seguida, restabelecê-la. Ele sai de casa numa situação marginal, periférica, passa por provas que o reconstroem e o fortalecem (mito do herói) e voltam para ocupar um lugar central, o lugar do pai. Recriando assim o mito descrito em Totem e Tabu, onde se torna necessário matar o pai primitivo para voltar e inscrever o mito na linguagem. E, como disse Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e a linguagem do cinema vai ajudando a construir e reorganizar o real, também ele partícipe ativo deste jogo que estabelecemos quotidianamente na tentativa de instaurar e inscrever novos sentidos. Lou Andreas Salomé tinha razão quando afirmou, em 1913, a importância do cinema em relação á nossa constituição psíquica.

Além da situação cinema, há que se ressaltar outra relação importante que o cinema mantém com o nosso psiquismo. A pulsão escópica. A relação, na pulsão escópica, repousa na ausência do objeto percebido, daí o carácter imaginário do seu significante, que se torna uma miragem percetiva. O cinema pode ser visto como um encontro fracassado, conforme Christian Metz, entre um voyeur, o espectador e um exibicionista, o ator. E, ao mesmo tempo, é estabelecido um jogo da identificação, que pode ser, no caso do cinema, primária, “eu vivo” e secundária, “eu vejo”. E é no espaço entre, ou seja, não no que efetivamente vejo, mas naquilo que o cinema me faz ver, que nos deixamos dominar pelo filme. O filme que opera, em todos os níveis, provocando tensões.

Por exemplo, tensão entre o fluxo narrativo e o close up, matéria cara às teóricas da teoria feminista do cinema, que analisam assim a erotização do rosto feminino no cinema clássico de Hollywood. O rosto, destacado do fluxo narrativo, provoca stasis e cria uma retórica do não-movimento, uma pequena morte, um instante de prazer. Que justifica o impulso à escopofilia e reitera o ponto de vista marcadamente masculino deste tipo de cinema. A femme fatale revela e oculta. Seu rosto, despido no ecrã, ainda esconde segredos. Segredos que irão aguçar o desejo do desvelamento, imbricação de epistemofilia com escopofilia: desejo de conhecer e de ver, mas ao mesmo tempo reconhecer que o visível não está ao alcance da mão, mas está ou esteve ali. Porque é antes de mais nada fotografia em movimento, com carácter ontológico que nos relembra uma presença, agora ausente. O isso foi do Barthes. Na foto, como no filme, a presença fica impressa pela luz, no fotograma. E esta presença emana provocando o desejo. Desejo que nem sempre deve ser explicitado, daí a necessidade de sublimação ou recalque. Ele está ali, só que não deve ser presentificado ou exposto. Se o cinema serve como mecanismo de recalque ou sublimação, serve também para revelar o não-dito. Para mostrar o que o espaço das paredes, entre as janelas, esconde. Para algumas vezes, deixar que o fora de campo invada o cenário e dialogue com ele abertamente. Mas isso, no cinema do entretenimento, no cinema do M.R.I., no tipo de cinema que triunfou, acontece muito pouco. E é por isso que Buñuel, que havia celebrado o poder transgressor do cinema, acaba por dizer: “Mas, por ora, podemos dormir em paz, porque a luz cinematográfica encontra-se devidamente dosada e aprisionada.”


MEER



terça-feira, 20 de julho de 2021

Quentin Tarantino / “Só um ‘nerd’ se referiria a si mesmo como cinéfilo”

 

O diretor norte-americano Quentin Tarantino.
ART STREIBER


Quentin Tarantino: “Só um ‘nerd’ se referiria a si mesmo como cinéfilo”

Cineasta estreia como romancista com uma adaptação de seu nono filme, ‘Era uma vez... em Hollywood’. “Este é o primeiro livro de vários”


LUIS PABLO BEAUREGARD
Los Angeles - 11 JUL 2021 - 19:52 COT

No ano da pandemia, transportou para as páginas de um livro seu nono filme, Era uma vez... em Hollywood, o filme de 2019 interpretado por Leonardo DiCaprio (Rick Dalton), Brad Pitt (Cliff Booth) e Margot Robbie (Sharon Tate). Quentin Tarantino (Knoxville, Tennessee, 58 anos) leva para o papel uma ficção cinematográfica que impedia que a Família Charles Manson ―seita que levava o nome de seu líder― assassinasse a atriz Sharon Tate, esposa de Roman Polanski. O diretor conseguiu levar à prosa seu inconfundível estilo cinematográfico, mesclando-o com referências eruditas a obscuras séries de televisão e filmes que aparecem na história e em suas conversas. “Você deve reconhecer que tem mérito não ser da Espanha e conhecer os irmãos Marchent!”, diz a certa altura da entrevista ao EL PAÍS, referindo-se aos pioneiros do western espanhol que infiltrou em seu filme.

Tarantino está de bom humor. Veste camisa de manga curta azul e acaba de terminar seu almoço, que tirou de uma lancheira de metal do Bounty Law, o programa fictício em que o ator interpretado por DiCaprio fica famoso no longa. Sobre a mesa da suíte de um hotel de luxo em Beverly Hills está um elegante exemplar de seu primeiro livro (publicado em português pela editora Intrínseca, com tradução de André Czarnobai). A edição é apenas para a promoção. Os exemplares que inundaram as livrarias dos Estados Unidos são de bolso e custam 9,99 dólares. O design, do diretor, imita os livros baseados em filmes que cresceu lendo nos anos setenta. Como quase todo primeiro romance, tem ecos autobiográficos e recordações de uma cidade à qual chegou quando tinha quatro anos.

Pergunta. Seu primeiro romance começa com uma cena muito própria, com muitos diálogos. Foi uma declaração de intenções?

Resposta. Esta história sempre começou com Rick e Marv [seu agente Marvin Schwarz, que é interpretado por Al Pacino no filme]. Primeiro o pensei como um romance, depois como uma peça de teatro; quando o pensei como um filme foi sempre com essa primeira cena. Não há muito enredo, mas há algo. Mostra Rick, confrontado com o dilema em que se encontra, que é uma coisa do passado para esta nova geração de protagonistas em Hollywood. Marv explica isso a ele, o que lhe permite percorrer toda a sua filmografia, a carreira, e informar o público.

P. Pouco depois, mostra sua intenção de fazer de Cliff um personagem central. Muito mais sinistro e complexo do que o da tela.

R. Sempre busquei isso para Cliff. No filme, os assassinos da família Manson deparam-se com Cliff em vez de com Sharon [Tate]. A ideia não era que se deparassem com um herói masculino. A ideia é que se deparassem com alguém 15 vezes mais perigoso do que eles. Alguém que era um assassino total, no sentido que a Família Manson queria.


Tarantino, Pitt e DiCaprio no set de ‘Era Uma Vez... em Hollywood’.
Tarantino, Pitt e DiCaprio no set de ‘Era Uma Vez... em Hollywood’.


P. Ao mesmo tempo, é um homem que só vai ao cinema para ver filmes de arte. Muitos pensariam que o gosto cinematográfico de Cliff não é o seu.

R. Eu concordo com muito do que Cliff pensa, mas não sou eu. É Cliff falando. Concordamos em muita coisa, mas por razões diferentes. Cliff nunca se referiria a si mesmo como cinéfilo. Apenas um nerd se referiria a si mesmo como cinéfilo. Mais do que falar sobre Kurosawa, ele gostaria de falar sobre motores e carburadores. Ele não vai ao cinema para ter emoções, para isso anda de motocicleta.

P. Não lhe preocupa que as pessoas comparem o romance com o filme?

R. Eu assumo. Quando estava escrevendo, fiquei convencido de que pelo menos nos próximos dois anos, 97% dos leitores terão visto o filme. Estou em paz com isso. Usarei isso a meu favor.

P. Espera que se transforme em algo próprio?

R. Seria muito interessante artisticamente se fosse apenas uma peça de acompanhamento ou se conversasse com o filme. Não pensava nisso quando estava escrevendo. Só acreditava que poderia ser um bom livro. Chegará o momento em que as pessoas o lerão sem ter visto o filme, mas demorará um pouco.
Pitt e DiCaprio, como Cliff e Rick, em ‘Era Uma Vez... em Hollywood’ (2019).
Pitt e DiCaprio, como Cliff e Rick, em ‘Era Uma Vez... em Hollywood’ (2019).


P. Começou com ideias da história quando estava fazendo À prova de morte (2007). Quando soube que tinha um livro?

R. Tudo começou como um romance. O primeiro capítulo que tinha não está aqui. Era um livro cinematográfico sobre Rick Dalton, seus filmes, algo que alguém que acompanhou sua trajetória escreveria em profundidade. O capítulo seguinte foi o de Aldo Ray...

P. Uma parte muito triste. Um ator alcoólatra na vida real que está filmando em Almería.

R. É um personagem fascinante de Hollywood. Há algo comovente em uma decadência tão pública. Onde estava e quão baixo caiu. Hollywood está cheia de estrelas que vivem momentos difíceis 20 anos depois, mas Aldo Ray é o santo padroeiro de todos eles. Ele também é um grande personagem. É patético, mas também acho que o retratei com dignidade. Queria colocá-lo com Cliff, outro herói da Segunda Guerra Mundial, em condições semelhantes em um hotel sem ar condicionado na Espanha durante as filmagens.

P. Hollywood continua triturando vidas assim?

R. Posso estar errado, mas acho que não. O equivalente a Aldo Ray nos anos cinquenta, e ainda teve uma queda acentuada até 1978, talvez fossem alguns atores dos anos noventa. Talvez houvesse pessoas que eram estrelas na época e agora estão na televisão sem serem protagonistas. Mas não é a situação de Aldo. Não existem pessoas que chegaram ao topo e acabaram fazendo pornografia ou filmes que vão direto para o vídeo.

P. Como você fez a pesquisa para este livro?

R. Tudo sobre a família Manson está em quatro ou cinco livros que têm a história oral e eu a conto novamente com minhas próprias palavras. Mas a carreira deste ou de outro ator, os lugares de Hollywood, os programas e filmes... passei minha vida inteira enchendo a cabeça com esse tipo de coisa. Quando estava escrevendo o roteiro, fiquei surpreso com a quantidade de coisas que tinha retido desde que tinha nove anos. Carregava 70 quilos de peso extra no meu cérebro. Eu não precisava mais deles porque agora as pessoas digitam algo no computador e têm as respostas imediatamente. Eu me orgulhava de ter aquilo na minha cabeça, mas agora me pergunto por quê.

P. Acredita que isso torna este romance a única adaptação literária possível de seus filmes?

R. Sim. Sabia que queria novelizar um filme. Tinha me apaixonado pela ideia. Tinha nove para escolher e isso tirava um pouco de pressão. Pensei que era este porque era o mais recente, as pessoas gostaram e os personagens tinham causado sensação. Também porque contém certos aspectos históricos da indústria e desta cidade.

P. Por que se colocou como personagem?

R. Simplesmente aconteceu. Quando tive a ideia de que o grupo de atores fosse beber alguma coisa depois de filmar, escolhi um lugar que conhecia. Meu padrasto tocava piano lá. Eu o visitei algumas vezes. Talvez uma vez à noite, quando ele estava tocando. Normalmente, se eu estava lá, era porque ele tinha ido me buscar na escola. Minha mãe era enfermeira, mas ele tocava à noite e estava disponível de manhã. E me levava de vez em quando com ele para receber cheques. Era um lugar fascinante. Então coloquei meu padrasto e fui com ele. Pareceu-me algo doce.
No filme ‘Era Uma Vez... em Hollywood’, de Quentin Tarantino, Margot Robbie interpreta a atriz assassinada Sharon Tate.
No filme ‘Era Uma Vez... em Hollywood’, de Quentin Tarantino, Margot Robbie interpreta a atriz assassinada Sharon Tate.SONY PICTURES


P. Teve que buscar uma voz para seu estilo narrativo?

R. Acho que não batalhei muito. Escrevo roteiros há muito tempo. E é muito fácil. É algo que flui... Um romance é algo parecido. Não quero dizer que foi difícil, mas também não foi fácil. Você escreve muitos capítulos, acha que fez muito bem, volta a lê-los e percebe que são horríveis... mas ao menos conseguiu colocar algumas ideias no papel. Depois você reescreve e fica um pouco melhor. Nos roteiros eu consigo o que quero muito mais rápido.

P. Aprendeu alguma coisa?

R. Sim, sou um escritor melhor depois de terminar um romance.

P. Manteve segredo por muito tempo que estava escrevendo um livro.

R. Só queria comentários positivos (risos). Contei quando tinha quatro ou cinco capítulos e percebi que escreveria o livro inteiro. Três ou quatro pessoas recebiam os textos. E era emocionante porque agora estava escrevendo para alguém. Já não era algo estranho que fazia apenas para mim.

P. Sentou-se para escrever com algumas das críticas do filme na cabeça? Gerou muito debate que no filme o personagem de Margot Robbie quase não tivesse diálogos, por exemplo.

R. Procurei que não, porque se isso me afetasse seria deixá-los ganhar a partida.

P. No romance agora lemos uma Sharon Tate de carne e osso, com uma história por trás.

R. Sim e não. Rejeito completamente a ideia de que um personagem se define apenas pelo número de frases que tem. Não conheço nenhum ator que pense isso, a menos que seja um ególatra. Não conheço nenhum dramaturgo que acredite nisso e, francamente, nenhum crítico. É um argumento absurdo. Poderia ter inventado uma melhor amiga com a qual conversasse sem parar e cumpriria a cota. Ou poderia tê-la colocado com Dr. Saperstein, seu cachorro, fazendo comentários. E isso teria resolvido a polêmica, mas não teria feito dela um personagem melhor.

P. Sentiu-se mais livre escrevendo um romance?

R. A grande diferença é que o filme custou 95 milhões de dólares e foi investido ainda mais para vendê-lo em todo o mundo. E não tem um para-raios diante das controvérsias. É bom ser parte da conversa, mas não a ponto de ser um demérito para seus parceiros comerciais. Mas este é um livro de 9,99 dólares. Quem diabos se importa com o que está dentro?

P. Entrou em um novo território, o literário, e a crítica disse que escreve como Elmore Leonard. Sente-se confortável com isso?

R. Não escrevo como ele, mas sou fã dele. Estou contente. Esperava que alguns críticos fossem duros, mas não, eles foram generosos comigo. Muitos pensam que é um livro divertido. O filme é muito engraçado, mas o livro é ainda mais.

P. Está experimentando novos terrenos agora que o sol está se pondo em sua carreira cinematográfica?

R. Sim, mas sempre fui identificado como escritor. E este é o primeiro livro de vários.

P. Escreveu um romance com um menino de 15 meses em casa. Como?

R. Funcionou muito bem. A pandemia chegou e todo mundo estava em quarentena. Eu tinha planejado ficar esse ano em casa por causa do bebê e para trabalhar no livro, um trabalho solitário. Foi grandioso. Ia ao meu escritório enquanto minha esposa ficava com ele, depois almoçava com eles, brincava e dava banho nele. Foi genial.

P. Está gostando de ser pai?

R. Amo cada segundo. Está sendo uma maravilha.

P. Já mostrou o primeiro filme a ele?

R. Sim. Foi Meu malvado favorito 2.

P. Você se identifica com Rick, alguém que tenta dizer adeus a Hollywood?

R. Não. Ele vem de um lugar cheio de ansiedade e eu não. Ele está na obsolescência, de onde eu não estou nem perto. Uma das coisas engraçadas sobre minha relação com Rick é que gosto do personagem e é muito fácil para as pessoas sentirem pena dele. Leo [DiCaprio] sabia que eu não me identificava de maneira alguma com ele. Penso que é um chorão. Sua carreira não é ruim. É uma carreira muito boa, ignoro que é demasiado egoísta para apreciá-la!

P. Não está preparando o terreno para sua aposentadoria?

R. Não, ao contrário. Se há algo que estou dizendo com este romance, é “Olá!”.


segunda-feira, 9 de março de 2020

Morre o ator Max von Sydow, de 'O exorcista' e 'Game of thrones', aos 90 anos


Max von Sydow

Morre o ator Max von Sydow, de 'O exorcista' e 'Game of thrones', aos 90 anos

09/03/22020

O ator sueco Max von Sydow morreu aos 90 anos de idade. A morte foi confirmada pela mulher do artista, a produtora Catherine Brelet. Von Sydow ficou internacionalmente conhecido por seus papéis nos filmes de Ingmar Bergman e no clássico do terror "O exorcista", de 1973.
Uma das últimas participações de von Sydow foi na série "Game of thrones", como o Corvo de Três Olhos, personagem mítico que tem um papel fundamental na trama de fantasia. Outra aparição recente foi em "Star Wars: O despertar da força", em 2015.
Nascido em Lund, em uma família de acadêmicos, von Sydow estudou teatro na escola de drama nacional da Suécia. Ele conheceu Bergman em 1955 e, dois anos depois, estrelaria "O sétimo selo", filme que gerou uma de suas imagens mais conhecidas: na clássica fantasia, ele é Antonius Block, o cavaleiro que joga xadrez com a morte.
O sucesso de "O sétimo selo" alavancou tanto a carreira de Bergman quanto a de von Sydow. Os dois seguiram a parceria em mais outros dez filmes, entre eles "Morangos silvestres" (1957) e "No limiar da vida" (1958).
Ao longo de sua prolífica carreira, von Sydow participou de mais de 120 filmes em doze países diferentes. Foi indicado ao Oscar duas vezes, por "Pelle, o conquistador" (1987) e "Tão forte e tão perto" (2011).
Outras participações memoráveis incluem "Dune" (1984), de David Lynch, e "Hannah e suas irmãs" (1986), de Woody Allen. Também participou de empreitadas mais populares: em "Flash Gordon" (1980), viveu o vilão Ming. Em "Conan, o Bárbaro" (1982), apareceu como o rei Osric.
Entre 1951 e 1979, von Sydow foi casado com a atriz Christina Inga Britta Olin, com quem teve dois filhos. Em 1997, se casou com a francesa Catherine Brelet. O ator adotou a nacionalidade da mulher, tornando-se cidadão francês.


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Parasita /um canto de amor ao cinema


Parasita, um canto de amor ao cinema

Bong Joon-Hu dirige um filme que é comédia, tragédia grotesca, noir e história de terror. Não perca este filme, alheio a uma sutileza de prestígio, direto e quase lindamente literal

Marta Sanz
7 de noviembre de 2019


Não é minha intenção usurpar o posto de nenhum crítico de cinema do EL PAÍS. Deus me livre. No entanto, toda vez que encontro um tempo para o “lazer” –sempre escrevo e pronuncio entre aspas–, libertando-me de um cotidiano alienado, hiperconectado e medroso em relação ao trabalho, descubro excelentes filmes no escurinho dos cinemas. O que eu digo não nasce do deslumbramento de uma garota abduzida pelo desejo desmaterializador de aproximar o dedo da tela para desintegrá-lo em moléculas coloridas de luz ou, inversamente, para encarniçar imagens sempre fantasmagóricas.

Estremeci com Parasitafilme que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e que foi eleito melhor filme na Mostra de Cinema de São Paulo, dirigido pelo coreano Bong Joon-Hu. Primeiro, por causa do vício hitchcockiano de me sentir desafiada por filmes que começam parecendo uma coisa e acabam sendo outra e outra e outra. Como em Psicose: começamos fugindo ao lado de uma bela delinquente e acabamos em um porão aterrorizante. Vejo Parasita e descubro pelo menos três ou quatro filmes que convergem em um que me interessa por causa de sua maneira de se conectar com Hitchcock, Losey, Chabrol, com o picaresco e a servidão de canino retorcido de Tom Jones, de Henry Fielding. Como eu gosto dos retratos dessa gente do serviço que, em vez de dedicar suas vidas aos patrões –os bonzinhos de Downton Abbey–, os suplantam e se banham em bolhas de sabão que não lhes tiram o cheiro de roupa fervida nem a rusticidade de seus modos. Como eu gosto daquelas criadas que furtam e vão aos programas de fofocas para revelar as intimidades daqueles que as exploram. A ardente quebra de confidencialidade, comprada com uns trocados, me excita.


Bong Joon-Hu dirige um filme que é comédia, tragédia grotesca, noirhistória de terror e da desiludida fosforerita, denuncia as relações de poder –familiares, sexuais, educacionais, trabalhistas– que definem a convivência na Coreia do Sul. Com A Vegetariana, o excelente romance de Han Kang, escritora também sul-coreana, entendemos até que ponto a fusão Ocidente-Oriente, através da roda-viva da globalização, acaba sendo grosseira e selvagem: uma simulação sempre destrutiva e paródica de famílias felizes à moda norte-americana. Simulações de ricas que se liberam comprando. Crianças com traumas de Illinois. Professores de inglês. Churrascos. Abaixo, no subsolo, a realidade dos percevejos e piolhos nos quais repousam as riquezas, o perigo de que detone um explosivo rancor de classe.

A lógica do capitalismo enfrenta o espírito criativo e empreendedor dos patrões com a preguiça e as emanações etílicas de motoristas e empregadas domésticas. Os professores fazem parte do serviço e cada capricho se compra com dinheiro. Os de cima, estadosunidenizados mais do que ocidentalizados, não toleram os que de baixo “passem dos limites”. Para os de cima, os de baixo cheiram mal, por mais que precisem deles; os de baixo lutam entre si e sublimam sua merda –as águas fecais entre as quais literalmente vivem– com a fantasia cômica de seus privilégios em relação ao grande monstro norte-coreano. E até aí posso ler. Não perca este filme, alheio a uma sutileza de prestígio, direto, quase lindamente literal e ao mesmo tempo um canto de amor ao cinema. Eu, que tento servir sem ser serva, me sinto infectada por esses parasitas. A infecção se relaciona com o mundo em que vivemos e com minha propensão a pegar piolhos no cinema quando era pequena.

EL PAÍS