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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

 

O escritor brasileiro Jorge Amado e seu filho (quarto da esquerda para a direita) e o jornalista e dramaturgo tcheco Jan Drda (primeiro da esquerda para a direita), em Dobříš, castelo tcheco que serviu de residência para escritores tchecos e internacionais, em 1950. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.


Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

Antes da Covid-19, a cidade de Praga era visitada todos os anos por milhões de turistas em busca de cervejas baratas e arquiteturas espetaculares. Na década de 1950, por outro lado, a capital da então Tchecoslováquia atraiu uma multidão diferente de viajantes: intelectuais de esquerda de todo o mundo procurando ver como era a vida sob o regime socialista.

Muitos desses viajantes vieram da América Latina e dentre eles estavam gigantes da literatura, como Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Há muito esquecida, esta história compartilhada vem sendo aos poucos redescoberta e reavaliada na República Tcheca. 

Com o desenrolar da Guerra Fria, tanto o Ocidente quanto a União Soviética engajaram-se em intensos esforços publicitários a fim de demonstrar a superioridade de seus sistemas políticos e socioeconômicos, de modo geral, visando ao público na Ásia, África, Oriente Médio, e América Latina. E ambos os lados enxergaram na arte uma forma eficaz de transmitir essa mensagem.   

Na União Soviética, a Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros, ou VOKS na sigla em russo, tinha como missão convidar intelectuais e escritores de todo o mundo para os países da União Soviética e do Bloco Oriental, sobre o qual eles foram encorajados a escrever.

Tendo ingressado no Bloco Oriental em 1948, após seu partido comunista orquestrar um golpe, a Tchecoslováquia foi um desses destinos. Além de Jorge Amado e Gabriel García Márquez, o país recebeu escritores da Argentina (Raúl González Tuñón), do Brasil (Graciliano Ramos), do Chile (Ricardo Latcham, Pablo Neruda), de Cuba (Nicolás Guillén) e do México (Efraín Huerta, Luis Suárez). Alguns viajaram sozinhos, outros faziam parte de delegações maiores.  

Sendo assim, a partir dos anos 1950, Praga tornou-se um centro cultural da esquerda, reunindo escritores emergentes e estabelecidos nessa ideologia, como o turco Nazım Hikmet e o soviético Ilya Ehrenburg.

Na realidade, Pablo Neruda pode ter herdado seu nome artístico do escritor, poeta e jornalista tcheco do século 19, Jan Neruda (o poeta chileno nasceu Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto). Ele nunca admitiu essa suposição, contudo, fotos dele caminhando pela rua Neruda em Praga, ou posando diante de restaurantes e pubs sob o nome de “Neruda,” oferecem alguma base sólida para a especulação.

Michal Zourek, foto usada sob permissão.

A Global Voices conversou com Michal Zourek, acadêmico tcheco que enfoca os laços entre o Bloco Oriental e a América Latina. Zourek, autor do livro de 2018 “Československo očima latinskoamerických intelektuálů 1947-1959” (“Tchecoslováquia pelo olhar dos intelectuais latino-americanos de 1947 a 1959″, que também foi publicado em espanhol), explica o que motivou esses intelectuais a aceitarem tais convites:

Houve uma série de regimes autoritários na América Latina que, alegando a necessidade de suprimir forças subversivas de esquerda, reprimiram os direitos humanos de forma massiva. Essa é a razão pela qual artistas latino-americanos a favor da ideologia comunista conseguiriam apoio material e moral da Europa Oriental. A respeito dos testemunhos de suas viagens, os textos escritos nos anos de 1940 e 1950 são, em geral, cheios de entusiasmo. É claro que determinados aspectos das sociedades socialistas impressionaram bastante esses eruditos vindos de países em desenvolvimento, sobretudo, a posição da cena cultural no Leste Europeu. Há muitas referências à alta qualidade das peças teatrais, da infraestrutura das escolas e das bibliotecas públicas, e ao alto nível de escolaridade do povo.

Zourek segue explicando sobre como Praga e Moscou eram um porto seguro para que esses intelectuais fizessem contatos e se encontrassem. “Era comum de intelectuais latino-americanos encontrarem-se pela primeira vez na Europa Oriental”, disse. “Em seus países de origem não era possível, porque os governos anticomunistas e autoritários em vigor não permitiriam”.

A Europa Oriental, diz Zourek, desempenhou um papel crucial na literatura latino-americana, é possível que a lendária geração de escritores da década de 1960 não tivesse sido tão influente, se não fosse pelo movimento internacional comunista, inclusive no ocidente. “As obras de autores engajados saíram em impressões de grande formato (em tcheco, polonês ou russo), bem maiores do que as de suas línguas maternas, e tudo isso aconteceu por trás da Cortina de Ferro”, disse.

Busto de Pablo Neruda no centro de Praga. Foto de Kenyh da Wikipedia, usada sob a licença CC BY-SA  3.0.

Uma terra farta?

Ao visitarem Praga ou outros lugares da Tchecoslováquia, os intelectuais de esquerda, homens em sua maioria, eram tratados como VIPs: hospedavam-se em hotéis luxuosos, tinham as despesas pagas e acesso a guias bilíngues, recebiam honorários pela escrita, e eventualmente, tinham as obras traduzidas para o tcheco ou eslovaco.

Aqueles que receberam residência para escrever permaneceriam por longos períodos, de maneira notável no castelo de Dobříš, o reduto da união dos escritores tchecoslovacos dos anos de 1940 aos anos de 1990. Alguns permaneceram ainda por mais tempo, devido ao asilo político que obtiveram. 

Conforme explica Zourek:

Suas despesas de viagem eram pagas, e durante o programa de viagem, que foi elaborado de forma cuidadosa, receberam a proposta de observar apenas os aspectos mais ideais da vida local. Em troca, os hóspedes estrangeiros espalhariam impressões positivas via relatos de viagem, artigos e conferências. Esse fenômeno de ‘turismo político’ era o componente chave da propaganda soviética, uma estratégia bem planejada que teve início logo após a Revolução Russa de 1917. Um importante papel foi designado aos intelectuais os quais a União Soviética queria ao seu lado, a fim de usá-los mais tarde em sua luta ideológica com o Ocidente.

Jorge Amado (à esquerda) e Nicolás Guillén (à direita) em uma estação de trem da URSS, a caminho da China, janeiro de 1952. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.

Uma exceção interessante nesta visão e descrição idealizada é o colombiano laureado com o Nobel da Literatura, Gabriel García Márques que visitou a Alemanha Oriental, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria e a União Soviética em 1955 e 1957. Viajou parcialmente por conta própria e, quando convidado de forma oficial, encontrou maneiras de escapar do programa oficial para averiguar por conta própria. Em seu livro, “De viaje por Europa del Este” (“Em viagem pela Europa de Leste”), suas descrições da Europa Oriental são muito mais diversificadas.

No primeiro capítulo, García Márquez descreve a Alemanha Oriental em termos nada lisonjeiros, como nesta cena em que o escritor entre em um restaurante para tomar café: “O que as pessoas tomam no café da manhã seria o equivalente a uma refeição completa no restante da Europa (Ocidental), e bem mais barato. Contudo, esses indivíduos aparentam estar destruídos e amargurados, comendo enormes porções de carne e ovos fritos sem nenhuma alegria”.

Em outro capítulo sobre Moscou, escreve sobre o tópico tabu do culto à personalidade de Stalin, citando seu guia russo que diz: “Se Stalin ainda estivesse vivo (estava morto desde 1953), teríamos um Terceiro Mundo. Stalin foi a figura mais sangrenta, mais rancorosa e mais egocêntrica da história russa”.

Gabriel García Márquez (primeiro da esquerda para a direita) na Praça Vermelha, em Moscou, em agosto de 1957. Foto do arquivo de Michal Zourek, usada sob permissão.

Para os tchecos, uma herança redescoberta

O comunismo terminou no outono de 1989 na Tchecoslováquia, e nos estados sucessores da Eslováquia e da República Tcheca, o passado socialista é, com frequência, considerado um período obscuro de violações dos direitos humanos, de restrições de viagens e de obediência forçada a Moscou.

Essa visão influencia a abordagem dos historiadores tchecos e eslovacos sobre os intelectuais de esquerda que visitaram o país durante aquele período. Segundo Zourek, que estudou na República Tcheca e Argentina, destaca:

Durante o tempo em que estudei na universidade, ouvi algumas menções a respeito da estadia de Pablo Neruda e Jorge Amado na Tchecoslováquia, mas não fazia ideia de que tratava-se de um grande fenômeno, de que ambas as regiões mantinham contato mesmo antes da Revolução Cubana, em 1959. É provável que isso tenha acontecido devido ao desprezo, pelo qual hoje esses autores são lembrados na República Tcheca e na Eslováquia: muitos os consideram idealistas ou idiotas inúteis que, ao visitarem o país, apoiaram regimes que incentivaram violências e perseguições. A questão é, sem dúvida, muito mais complexa do que isso.

Embora esses autores sejam celebrados há muito tempo em seus países de origem na América Latina, apenas agora seu legado ressurge no discurso histórico da República Tcheca. Os registros de viagens de García Márquez foi traduzido para o tcheco pela primeira vez em 2018 (“Devadesát dnů za železnou oponou“), enquanto os outros permanecem, em grande parte, desconhecidos.

Zourek compartilha sua experiência pessoal, a fim de explicar por que o processo de reavaliação é tão desafiador:

Visitei o Chile logo após o ensino médio, as universidades eram repletas de bandeiras soviéticas e retratos de Lenin, as livrarias vendiam as obras de Marx e Engels. Pensei que a ideologia estivesse morta, e não conseguia entender como alguém poderia admirar uma ideologia criminosa que impôs limites à liberdade de expressão, que impediu pessoas de entrarem nas universidades e realizarem seus sonhos. Essa posição antagônica de ambas as regiões acerca do comunismo deve-se, sobretudo, a experiências históricas bastante distintas. Por esse motivo, eu penso que, ao avaliar o comunismo, devemos nos distanciar da nossa experiência e história familiar, que muitas vezes nos impedem de enxergar esse fenômeno transnacional em toda a sua diversidade. Infelizmente, essa dissociação ainda não está ocorrendo para muitos historiadores tchecos. Não acho surpreendente que pessoas inseridas no mundo em desenvolvimento tenham mais interesse nas políticas da Tchecoslováquia comunista do que seus pares na República Tcheca. Houve alguma mudança nos últimos anos, e penso que isso se deve à gradual reavaliação do período comunista pela sociedade tcheca. Acredito que nos próximos anos veremos uma série de trabalhos mostrando como a Tchecoslováquia comunista realizou empreendimentos notáveis no mundo em desenvolvimento, os quais foram, em sua maior parte, abandonados após 1989, por exemplo na área da cultura.

GLOBAL VOICES


sábado, 21 de janeiro de 2017

Os últimos dias de Pablo Neruda, segundo seu motorista

Os últimos dias de Pablo Neruda, segundo seu motorista

Manuel Araya, vítima da ditadura de Pinochet, denunciou em 2011 o assassinato do Nobel. “Deram-me uma injeção e estou queimando por dentro”, disse-lhe o poeta


WINSTON MANRIQUE SABOGAL
Madri 9 NOV 2015 - 18:09 COT



Manuel Araya, que foi motorista de Neruda, em Isla Negra.  EL PAÍS


Cerca de quatro horas antes de Pablo Neruda morrer de um “câncer na próstata”, no domingo 23 de setembro de 1973, o homem que cuidava dele não pôde cumprir a sua última missão, interrompida pelos militares: comprar-lhe “um medicamento que, supostamente, aliviaria a dor do poeta”. Quarenta e dois anos depois, Manuel Araya considera que tem de cumprir, ainda, uma última missão para Neruda: “Ajudar a provar que ele foi assassinado”. Ele está convencido de que o poeta não morreu pelas causas divulgadas oficialmente. É a única testemunha direta viva dos últimos dias do Nobel de Literatura, naqueles momentos iniciais do grande túnel que foi a ditadura de Augusto Pinochet, iniciado em 11 de setembro de 1973.
Manuel Araya tinha 27 anos naquele domingo, véspera de uma viagem de Neruda ao México. Dias que ele recorda agora, ao telefone, falando do Chile, aos 69 anos. Por volta das seis e meia da tarde, ele saiu correndo da Clínica Santa María, de Santiago do Chile, pegou o Fiat 125 branco e foi comprar o medicamento. Quatro militares, portando metralhadoras, o fizeram parar. Araya lhes explicou quem ele era: “Sou o secretário, motorista e a pessoa que cuida do senhor Pablo Neruda, o Nobel de Literatura, e estou indo comprar um medicamento para ele com urgência”. Como resposta, fizeram-no descer do veículo, insultaram-no, aplicaram-lhe golpes e deram-lhe um tiro em uma perna... Depois disso, levaram-no a uma delegacia de polícia, onde foi interrogado e torturado, para depois deixa-lo no Estádio Nacional, para onde a ditadura enviava os opositores a fim de lhes aplicar maus tratos ou fazer com que desaparecessem.
Manuel Araya, em Isla Negra, neste mês (20159
Foto de  



Passou a noite ali. No dia seguinte, o arcebispo Raúl Silva Henríquez o reconheceu e, depois da surpresa inicial, lhe disse: “Manuel, veja só, o Pablito morreu esta noite, às dez e meia”. Araya exclamou: “Assassinos!”. O arcebispo pediu aos militares para tirarem o motorista do Estádio. O que só veio a acontecer 42 dias mais tarde, com ele usando roupas emprestadas, uma barba longa e pesando 33 quilos. Seu calvário estava apenas começando.

Única testemunha

Desde a morte de Pablo Neruda até hoje, Manuel Araya se manteve praticamente à sombra, em silêncio. Talvez tenha escapado pela segunda vez da morte quando, em 22 de março de 1976, seu irmão Patricio desapareceu, segundo ele, por terem-no confundido com ele. Nunca mais se soube desse irmão. Para reforçar sua tese, ele recorda que também o secretário pessoal de Neruda, Homero Arce, foi assassinado, em 1977. “Sumiram com todos os colaboradores de Neruda. Eu sou a parte principal do que ainda continua vivo”.
“Certo dia, voltei para Santiago para não continuar expondo minha família. Vivia quase escondido na casa de alguns amigos. Não tinha carteira de identidade nem carta de motorista. Não conseguia trabalho, até que, em 1977, comecei a trabalhar como taxista. A ditadura acabou em 1990. Dois anos depois, comecei a trabalhar na Pullmanbus, no setor administrativo, até 2006, quando me aposentei.”
Seu contato com Matilde Urrutia, a terceira mulher de Neruda, falecida em 1985, se manteve. “Ela nunca quis falar sobre o assassinato. Rompi relações com ela por causa disso. Acabamos criando uma inimizade. Bati em muitas portas esse tempo todo. Inclusive na do presidente Eduardo Lagos. Ninguém me ouviu.”
Passou muitos anos correndo atrás de alguém que pudesse ouvir a sua versão, mas ninguém lhe deu ouvidos: “Nem os políticos, nem os veículos de comunicação. Talvez tivessem medo, não sei”. Até que um jornalista da revista mexicana Proceso publicou a sua história, em 2011. Depois disso, o Partido Comunista e Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, entraram com um pedido de investigação a partir de seu testemunho. Em 2013, o corpo do escritor foi exumado, mas os médicos legistas não encontraram nele resquícios de envenenamento.
O caso voltou à tona com o lançamento da biografia Neruda. El Príncipe de los Poetas [Neruda, o príncipe dos poetas], do historiador alicantino Mario Amorós, cuja principal revelação foi noticiada em primeira mão pelo EL PAÍS na última quinta-feira: o relatório secreto do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior, enviado em 25 de março de 2015 ao juiz Mario Carroza Espinosa, encarregado do processo. O documento, baseado em provas testemunhais e documentais, afirma que “é claramente possível e altamente provável a intervenção de terceiros” na morte do Nobel. Além disso, uma equipe internacional de legistas investiga a presença do estafilococo dourado no corpo do poeta. Trata-se de um germe que, alterado geneticamente e aplicado em doses elevadas, pode ser letal. A equipe científica definiu o prazo até março de 2016 para emitir um parecer sobre um caso sem precedentes: decifrar o DNA desse germe, detectar a sua presença e se ele foi alterado por alguma equipe militar, levando em consideração que a ditadura chilena usou armas químicas para eliminar pessoas, como admitiu Carroza Espinosa.

O golpe de Estado

Araya nasceu em 29 de abril de 1946, no hospital de Melipilla. Foi batizado como Manuel del Carmen Araya Osorio. Era o primogênito do casal Manuel e María, que teria treze filhos. Não terminou os estudos, mas com 14 anos se mudou para Santiago. Lá começou a trabalhar no Partido Comunista. Quando Salvador Allende foi indicado candidato à presidência, em 1970, Araya o acompanhou na campanha. Todos esses dias voltam agora à sua lembrança:
“Em 1972, quando Neruda retorna ao país, deixando a embaixada na França para ajudar Allende no caos que o Chile vivia, o Partido Unidade Popular me manda para ele. Passo a ser seu guarda-costas, seu secretário e seu chofer. Com ele vivi na casa de Isla Negra. Neruda tinha flebite na perna direita e às vezes mancava. Estava em tratamento de câncer de próstata, mas não estava agonizante. Era um homem de mais de cem quilos, robusto, de boa mesa e festas, e muito cordial e bom com as pessoas.”




HISTÓRIA DE UM CASO


Manuel Araya nasce em Melipilla (Chile), em 1946. Com 14 anos vai para Santiago. Começa a trabalhar no Partido Comunista.
Em 1970, participa da campanha de Salvador Allende à presidência.
Em 1972 é cedido a Pablo Neruda para desempenhar as funções de guarda-costas, secretário e motorista.
Em 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado de Pinochet, está com Neruda em sua casa de Isla Negra.
Nos dia 12, um navio de guerra com canhões se instala em frente a Isla Negra, e a casa de Neruda é revistada.
No dia 19, Neruda chega à Clínica Santa María, em Santiago. No dia 22, o embaixador do México combina a ida do poeta para o seu país.
No dia 23, Neruda, segundo Araya, recebe uma injeção no estômago e morre seis horas depois.
Na noite do dia 23, Araya é levado a uma delegacia, onde é interrogado e torturado. Sai 42 dias depois. Vive semioculto.
Em 1977, começa a trabalhar como taxista.
Em 2011, Araya denuncia o assassinato na revista Proceso. O Partido Comunista e Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, abrem um processo.
Em 2016, o juiz Mario Carroza Espinosa ditará o veredicto.

“Em 11 de setembro de 1973, quando Pinochet dá o golpe de Estado, estávamos em Isla Negra. Nesse dia ele ia fazer uma espécie de inauguração de Cantalao, uns terrenos que ele havia comprado, em El Quisco, onde queria construir uma residência para escritores do mundo todo. Mas às quatro da manhã escutei o sininho com que ele me chamava, para me dizer que acabava de escutar numa rádio argentina que um golpe de Estado estava sendo preparado. Nesse dia entram no palácio de La Moneda e assassinam Allende. Eu tinha afrouxado uns tubos da televisão para que ele não visse o que acontecia. Mas fica sabendo, claro. Todo o país entra em toque de recolher. Ficamos sem telefone. Isla Negra se enche de carabineiros. ‘Vão matar todo mundo’, dizia don Pablo. Falava da Guerra espanhola, do que Franco fez… Neruda se dava valor.”
“No dia seguinte, colocam um navio de guerra com canhões em frente a Isla Negra. O embaixador do México lhe oferece asilo. No dia 14 chegam os militares e revistam a casa. Ficamos assustados. Neruda fala com seu médico, o doutor Roberto Vargas Salazar, que lhe diz que em 19 de setembro vagaria o quarto 406 da Clínica Santa María. Os militares não queriam lhe dar o salvo-conduto, então ele precisou dizer que estava mal e que precisava sair para receber tratamento; a única forma de tirá-lo era por razões humanitárias.”
“Nos dia 19 viajamos de carro de Isla Negra a Santiago. Levamos umas cinco horas, quando o normal eram duas. Foi um dia horrível. Pararam-nos várias vezes. Em Melipilla nos fizeram descer e deitar no chão. Fizeram-nos passar medo. A perseguição foi terrível. Chegamos lá pelas seis da tarde. Não deixamos Neruda sozinho em nenhum instante. Todas as noites eu ficava dormindo sentado numa poltrona, e Matilde numa saleta da entrada principal do quarto.”
“Nos dia 22 lhe entregam o salvo-conduto e ele decide com o embaixador mexicano, Gonzalo Martínez Corbalá, viajar na segunda-feira, dia 24. Nesse mesmo dia 22 [o embaixador] o visita na Clínica Radomiro Tomic e lhe conta que Víctor Jara foi assassinado. Neruda se desespera."

Um domingo negro

"No dia seguinte, domingo, dia 23, ele me diz para ir a Isla Negra com La Patoja, como ele chamava Matilde, para trazer a bagagem. Vamos, e ele fica com sua meia irmã Laurita. Quando estamos quase de volta, às quatro da tarde, ele liga para a Hospedaria Santa Helena e pede que digam a Matilde que vá imediatamente para a clínica. Quando chegamos, vejo Neruda com a cara vermelha. ‘O que está havendo, don Pablo!', pergunto. ’Deram-me uma injeção no estômago e estou queimando por dentro’, me respondeu. Fui ao banheiro, peguei uma toalha, molhei-a e a coloquei sobre o estômago. No que estou fazendo isso entra um médico e me diz: ‘Como motorista, você precisa ir comprar Urogotán’. Eu não sabia o que era, só depois soube que era para a gota.”
Manuel Araya, na época em que trabalhava como motorista para Neruda.

Saiu e nunca pôde voltar

“Quando estou no carro, outros dois automóveis me interceptam. Descem quatro homens com minimetralhadoras e me golpeiam. Falam de tudo para mim: filho da mãe, da avó… Digo a eles quem sou. ‘Vamos matar os comunistas!’, gritavam. Levam-me para a delegacia, me interrogam e me torturam. Queriam que eu lhes dissesse onde estavam os líderes comunistas, e com quem Neruda se reunia. Digo a eles que só se reúne com escritores. No final me levam ao Estádio Nacional. No dia seguinte, o arcebispo Silva Henríquez me dá a notícia [da morte de Neruda].”
Em 2011, Manuel Araya diz que Pablo Neruda foi assassinado. Abre-se o processo. O cadáver é exumado em abril de 2013, e em novembro desse mesmo ano a equipe científica opina que não encontrou rastro de veneno. Em janeiro de 2015, a presidenta Michelle Bachelet designa advogados para que investiguem o caso no âmbito do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior. Assim, em 25 de março enviam a conclusão das suas investigações ao juiz Mario Carroza Espinosa, que a incorpora ao sigilo do processo.
Manuel Araya espera o veredicto. Sua última missão com Pablo Neruda está cumprida. Foi ouvido. Em 2016, já com 70 anos, saberá como tudo termina. Agora no Chile é primavera, como naqueles dias de 1973, mas ele sente frio e afirma: “Estou mais tranquilo do que nunca”.



sábado, 28 de maio de 2016

Gael Garcia Bernal é o perseguidor de Pablo Neruda em filme sobre o poeta

Em primeiro plano, Gael García Bernal interpretando o policial que persegue Pablo Neruda em 'Neruda'

Gael Garcia Bernal é o perseguidor de Pablo Neruda em filme sobre o poeta

Ator vive detetive perseguidor do poeta chileno em filme digirido por Pablo Larraín



GREGORIO BELINCHÓN
Cannes 16 MAI 2016 - 16:25 COT

Em 1949, Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto fugiu perseguido pela polícia chilena, pulando de casa em casa, após seu foro de senador ter sido cassado. Na realidade, ele não era um político qualquer, porque era mais conhecido por seu nome artístico como escritor, Pablo Neruda, e aquela não foi só mais uma prisão. O Governo atacava a alma da esquerda chilena, um membro proeminente do Partido Comunista (proibido meses antes) e um dos melhores poetas da história, prêmio Nobel em 1971, que durante esses meses escreveu sua melhor obra,Canto Geral.
Esse coquetel explosivo se transforma em um filme bombástico nas mãos de Pablo Larraín, que apresenta seu Neruda na Quinzena dos Realizadores, uma aproximação complexa de uma figura engolida por sua obra e por certa lembrança naïf de sua vida, provocada por O Carteiro e o Poeta. O próprio Larraín, cineasta que se aprofundou na história e na alma do Chile com Tony ManeroPost MortemNo e O Clube, também nasceu de uma complexidade: vindo de uma proeminente família de direita de seu país, seu cinema ilumina as áreas turvas de sua nação. Neruda, cedo ou tarde, seria tema de seu trabalho.
E em Cannes o cineasta defendeu, com os atores Luis Gnecco (que dá vida ao poeta), Mercedes Morán (à sua esposa) e Gael García Bernal (ao policial que o persegue), que esse Neruda é o seu Neruda. “Foi um processo muito longo, de cinco anos, em que no final percebi que não fiz um filme sobre Neruda, mas sobre o ‘nerudiano’, sobre o que sua figura, seu trabalho e sua poesia produz em nós [mostrando sua equipe]. Entramos em um jogo de ilusões. Tudo foi filmado de forma controlada, com um roteiro estupendo, mas o cinema é um acidente, coisas acontecem, você não sabe para onde será levado, e aqui o enigma foi resolvido na montagem. É um exercício de imaginação”.
Em uma sequência espetacular, uma empregada se aproxima do poeta em uma festa e após lhe perguntar se a revolução comunista irá igualar todos os seres humanos (“Sim, assim será”, responde Neruda), provoca: “Mas seremos iguais a mim ou ao senhor?”. Para Larraín, não é preciso tirar conclusões: “Realmente não existem acertos de conta e olhares cruéis, eu estou apaixonado pelo personagem. Colocar um homem nessas circunstâncias não é corrosivo, pelo contrário, acredito que o humaniza. Queremos ver um Neruda brincando, viajando, amando, comendo. Não sei o quanto esse Neruda se parece com o real. E nunca saberemos. Mas insisto que foi um poeta sumamente perigoso, amante da política. Em Canto Geral existem poemas furiosos contra líderes políticos. Descreveu seu país e a América Latina pela poesia, talvez porque o Chile seja um país de poetas e historiadores”.
Outra das possíveis digressões, do risco artístico corrido por Larraín, está em se Neruda – mostrado aqui como um criador, mas também como um amante das mulheres, um boa-vida assíduo de prostíbulos – esteve realmente em perigo durante a perseguição que terminou com o poeta em Paris. “Neruda nasce da absoluta liberdade de criar esse acidente que é um filme. O cinema é mistério, meus atores são misteriosos e permitem que o espectador viaje através deles. No final fiz um filme sobre um só personagem: porque tanto o poeta como o policial vêm a ser um”.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Relatório oficial / “Altamente provável” que Neruda tenha sido assassinado

Pablo Neruda

Relatório oficial: “altamente provável” que Neruda tenha sido assassinado



Até agora a morte do poeta, em setembro de 1973, era atribuída a um câncer de próstata


    Um documento oficial do Ministério do Interior do Governo do Chile reconhece pela primeira vez que é bem possível que Pablo Neruda tenha sido assassinado. Segundo o documento, ao qual EL PAÍS teve acesso, o poeta e Prêmio Nobel de Literatura de 1971 não morreu “em consequência do câncer de próstata de que padecia”, mas é “claramente possível e altamente provável a intervenção de terceiros”. Neruda morreu em 23 de setembro de 1973, um domingo, às 10 e meia da noite na Clínica Santa María, de Santiago, no Chile. Nesse dia, segundo “está comprovado no processo”, diz o documento oficial, aplicaram-lhe uma injeção ou o fizeram ingerir algo que teria precipitado a sua morte, seis horas e meia depois. Tudo isso, poucas horas antes de o Nobel partir em um avião rumo ao México, onde, como diz o texto do ministério, possivelmente iria liderar um Governo no exílio para denunciar a atuação do general Augusto Pinochet, que havia dado o golpe de Estado em 11 de setembro.
    Essas são as principais conclusões do documento que o Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior do Chile enviou ao magistrado Mario Carroza Espinosa, encarregado da investigação da morte de Pablo Neruda (1904-1973). O documento, com data de 25 de março de 2015, integra a parte confidencial do processo número 1.038-2011. Trata-se da principal revelação incluída na nova biografia de Neruda, escrita pelo historiador alicantino Mario Amorós e intitulada Neruda. El Príncipe de los Poetas. O livro será publicado pelas Ediciones B na próxima quarta-feira na Espanha e no dia 23 no Chile.
    Embora seja verdade que o juiz Carroza Espinosa tenha reconhecido a este jornal a série de coincidências e as provas testemunhais e documentais que levam o Governo a dar um parecer de alta probabilidade de assassinato, o magistrado não estará cem por cento seguro enquanto não tiver as provas científicas que corroborem o fato: “Nós sempre seguimos essa linha de que houve algo estranho nos últimos dias. Neruda tinha câncer, mas não estava agonizando nem em fase terminal. Ainda assim, em 23 de setembro seu mau estado de saúde se acelerou de repente e ele morreu em seis horas”. Mas há um penúltimo achado, e o juiz aguarda: “Estou à espera do resultado de uma última prova científica revelada em maio. Trata-se de uma bactéria, o gérmen do estafilococos aureus, achado no corpo do poeta. Ainda estou recolhendo antecedentes”. Essa bactéria não está presente nos tratamentos do câncer, é um microorganismo que alterado pode ser altamente tóxico e acelerar a morte em qualquer pessoa.
    Em decorrência do relatório e teoria do Programa de Direitos Humanos do Governo, diz Carroza Espinosa, foram iniciadas novas diligências, como a da ficha de ingresso de Neruda na clínica, e foram obtidos outros elementos.


    Atestado de óbito de Pablo Neruda.

    O chofer do poeta

    caso Neruda foi aberto em 2011, quando o motorista do poeta, Manuel Araya, denunciou o assassinato. Na época, o Partido Comunista do Chile apresentou uma queixa. Foi pedida a exumação do cadáver, o que foi feito em 8 de abril de 2013. A investigação científica foi entregue a uma equipe de especialistas internacionais, que em 9 de novembro desse mesmo ano afirmou em um parecer que não havia encontrado agentes ou substâncias estranhas, provenientes de envenenamento, no corpo do poeta. “Chegamos a uma conclusão técnica e científica que deve ser completada com a investigação judicial. A verdade final será determinada pelo juiz Mario Carroza. O que nós observamos é que “não encontramos restos de veneno’, mas isso não significa que não tenha sido envenenado, e outra equipe com outras técnicas pode achar restos”, afirma o médico-legista espanhol Francisco Etxeberria, que participou da investigação de 2013. Em março de 2015 o Governo chileno entregou seu relatório de “altamente provável intervenção de terceiros”, que está na parte confidencial do processo, e em maio uma nova prova científica detectou o gérmen do estafilococos aureus, sobre o qual a entrega do resultado tem como prazo março de 2016.
    Etxeberria, acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade do País Basco, que também participa desta segunda prova pericial, com médicos forenses e especialistas internacionais de países como Estados Unidos, Canadá, Espanha e outras nações europeias, assegura que o juiz Carroza Espinosa aceitou essa nova hipótese levando em conta a concatenação de coincidências e perseguições vividas por Pablo Neruda depois do golpe de Estado de Pinochet, em especial naquele domingo de sua morte. “Nesse dia ele está sozinho na clínica, onde já estava havia cinco dias, seu estado piora, telefona para sua mulher, Matilde Urrutia, para que vá imediatamente para lá porque diz que lhe aplicaram algo e não se sente bem. Por fim, morre pouco depois, para surpresa de todos, em uma clínica boa, e se estabelece a suspeita”, recorda Etxeberria. Quanto à nova prova, o médico acrescenta que “embora seja verdade que o gérmen do estafilococos aureus seja mais ou menos comum, se for alterado e aplicado em altas doses pode produzir a morte de uma pessoa”.
    O que a equipe científica analisa agora é algo inédito na ciência forense, explica Etxeberria: “Tentaremos identificar o DNA desse estafilococos aureus. Ou seja, estabelecer se é o comum da época e da zona, ou se foi manipulado. Há antecedentes disto em arsenais militares que alteraram a cepa. O que procuramos é muito difícil: se era um estafilococo alterado, tentaremos identificar o arsenal ou o país onde pode ter sido manipulado”. Além disso, recorda Etxeberria, há o antecedente da morte do ex-presidente chileno Eduardo Frei em janeiro de 1982, quando passou por uma cirurgia de hérnia de hiato. Dias depois, sua saúde piorou e ele morreu rapidamente, e falava-se de envenenamento. Sobre esse fato, o juiz Carroza Espionsa diz: “No governo militar trabalharam com substâncias químicas em laboratórios para eliminar pessoas, e o presidente Frei é uma das vítimas. O que se supõe é que isto pode ter sido iniciado tão logo começou o golpe de Estado, porque dias depois morreu Neruda, e no seu caso pode ter sido o gérmen”.

    O biógrafo

    A história dessa penúltima suspeita no caso de Pablo Neruda é contada por Mario Amorós, seu biógrafo: “O chefe da Área Jurídica do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior, Rodrigo Lledó, deu a conhecer, em maio, o resultado do relatório proteômico de análise dos restos do poeta, que o doutor Aurelio Luna, catedrático de Medicina Legal e Forense da Universidade de Murcia, havia entregado ao magistrado Carroza. A perícia buscava estabelecer possíveis ‘agentes externos’ que pudessem ter sido administrados e ter acelerado sua morte”. O médico espanhol detectou o estafilococos aureus e esse é o resultado de laboratório que o magistrado Mario Carroza aguarda para ditar a sentença.
    Segundo o relatório do Programa de Direitos Humanos do Ministério do Interior do Chile, no dia anterior à viagem de Neruda ao México, o poeta “morre, atribuindo-se como causa da morte, sem maiores exames nem verificações, o câncer de que padecia. No entanto, é possível se perguntar se a doença aparece como causa efetiva da morte ou como mera justificativa de uma morte abrupta, cujo objetivo era impedir a viagem de D. Pablo Neruda ao México”.
    Em agosto, conta Amorós, a investigação judicial já acumulava mais de 2.400 páginas distribuídas em sete tomos e “a parte separada de relatórios e perícias abrangia quase 900 páginas em três volumes”.
    O biógrafo levou quatro anos e meio estudando a vida de Neruda. E quatro anos e meio demorou a investigação judicial. Logo, diz o escritor, “a equipe internacional de cientistas dirá se houve intervenção de terceiras pessoas na morte do poeta, ou seja, se a ditadura de Pinochet perpetrou o assassinato de Pablo Neruda por meio de uma injeção letal. Tudo estava preparado para sua viagem ao México, como me explicou o embaixador mexicano da época, Gonzalo Martínez Corbalá, e no exílio o poeta teria se convertido na principal voz de denúncia da junta militar. Neruda tinha somente 69 anos, e um mês antes o urologista que o atendia lhe havia dado uma esperança de vida de uns cinco anos em função do câncer de próstata. Foi o que disse em uma infinidade de ocasiões Matilde Urrutia, sua esposa. O golpe de Estado e a derrota da Unidade Popular, a morte do presidente Salvador Allende e a perseguição contra seus companheiros, cuja magnitude finalmente foi desvendada, o levaram a uma agonia física e emocional terrível”.
    As provas testemunhais e os fios condutores dos fatos daqueles dias levam ao diagnóstico do Governo chileno. No entanto, aquele 23 de setembro de 1973, em especial aquela tarde, está enevoada, cheia de meandros intrincados. Ninguém lembra que médico pode ter aplicado ou dado a Neruda aquela substância. O que parece comprovado é que a saúde do poeta se agravou depois de uma injeção e, como diz o documento oficial, seis horas depois ele morreu.