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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Transpondo sátiras / Duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Texto de Majling, original em eslovaco, com os nomes modificados de Dostojevzski (Dostoiévski), Tolsztoi (Tolstói) e Toorgenef (Turguêniev). Foto de Filip Noubel, usada com permissão.


Transpondo sátiras: duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Para tradutores literários, nada é mais desafiador, e talvez mais inspirador, do que textos de humor, pois necessitam de uma tradução dupla: linguística e cultural. A Global Voices pediu para duas tradutoras que trabalharam com a obra “Ruzká klazika“, do escritor eslovaco Daniel Majling, um livro de sátiras sobre literatura clássica russa, contarem sobre suas estratégias para essa delicada transposição.

Podemos descrever a coletânea de contos de Majling como pastiche, um termo que se refere à imitação artística, e que também indica mescla de elementos. De fato, em seu livro, Majling faz referências a autores clássicos russos, mas distorce os nomes e os coloca em situações grotescas cheias de humor ácido. Além das ironias, o livro tem o subtítulo “Zostavil a preložil Daniel Majling”, que significa “organizado e traduzido por Daniel Majling”, como se o texto eslovaco original fosse em si uma tradução, semelhante a apresentação de Cervantes no clássico Dom Quixote.

Retrato de Weronika Gogola, foto usada com permissão.

Weronika Gogola é uma premiada escritora polonesa de Bratislava, que também traduz do ucraniano e eslovaco para o polonês. Sua tradução do livro de Majling será publicada no fim do ano na Polônia. Ela explicou a estratégia para transposição de humor, que muitas vezes depende de substituições e alusões veladas:

Em algumas partes do texto o humor na tradução polonesa foi menos ácido, em outras mais do que no original. Eu tive sorte de conhecer Majling pessoalmente e pude conversar sobre alguns temas, e também inseri algumas notas no caso de pequenas imprecisões no texto original. O próprio Majling sugeriu, que nessas notas, eu comentasse ironicamente a inabilidade dele com certos assuntos.

O tom do livro permite uma certa liberdade, o que podemos chamar de “efeito Majling”. Uma oportunidade assim é rara no trabalho de tradução — mas para ser clara, eu discuti todas essas questões com o autor.

Retrato de Julia Sherwood, foto usada com permissão.

Para Julia Sherwood, uma veterana em traduções da literatura eslovaca, juntamente com seu marido Peter, a tradução parcial do início do livro foi uma oportunidade de ser criativa na tradução de nomes, além de outros aspectos:

Cada história de “Ruzká klazika” (o título é uma variação de ‘Clássicos Russos’ com letras trocadas) é uma paródia do estilo de um escritor russo, então a tradução precisa atingir o mesmo efeito. A introdução do livro não foi difícil de traduzir, nem a história “The Rebirth of the Orthodox Faith in Our Town” (O renascimento da fé ortodoxa em nossa cidade), que é um pastiche de um conto folclórico, e eu espero termos conseguido fazer a tradução funcionar. Fazer uma versão em inglês dos nomes de personagens foi complicado, mas divertido; o personagem “tulák Arťom Skočdopoľa-Prašivý” se tornou “the vagrant Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin” (o vagabundo Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin). As letras trocadas não foram um problema, exceto no título do livro: Nós colocamos como “Rushian Clashics”, mas outras versões são possíveis. Vocês colocaram como “Roosyan Klassiks” em um artigo da Global Voices, e eu também vi a tradução “The Ruzzian Clazzics”. Um dia, se uma editora de língua inglesa for publicar o livro completo, o título pode ficar diferente novamente.

Uma escolha incomum: literaturas menos conhecidas

Traduzir um texto é apenas metade do trabalho para a maioria dos tradutores literários que trabalham com as chamadas “línguas menores”; línguas raramente traduzidas e com literaturas geralmente desconsideradas por editoras, como é o caso ainda da literatura eslovaca. Nesses casos, tradutores atuam como agentes literários e promotores de reinos literários menos conhecidos e menos valorizados, como explica Gogola:

No caso de “literaturas menores”, a regra é que os tradutores tomem a iniciativa sozinhos. Isso também aconteceu no meu caso. Fiquei maravilhada com o livro de Majling, com seu humor rasgado e a liberdade que ele se permitiu.

Porém, Sherwood, que também tem um podcast em inglês sobre literatura eslovaca, acredita que as atitudes estão mudando no mundo editorial global anglófono:

É verdade que, comparado com a literatura tcheca, polonesa ou húngara, escritores eslovacos são muito menos conhecidos, mas, felizmente, isso começou a mudar recentemente. Obras de autores eslovacos contemporâneos como Balla, Jana Bodnárová, Jana Beňová, Ivana Dobrakovová, Pavel Rankov, Monika Kompaníková e Uršuľa Kovalyk, têm sido traduzidos para o inglês. Autores eslovacos também têm recebido mais reconhecimento internacional, por exemplo, “Piata loď “(Boat Number Five – Barco número cinco), de Monika Kompaníková, traduzido por Janet Livingstone, foi uma das finalistas do concurso literário EBRD Literature Prize em 2022. De fato, “Boat Number Five” foi um dos dois primeiros livros da série de literatura eslovaca lançada pela editora Seagull Books, uma esplêndida pequena editora de Calcutá com distribuição mundial que publica muita literatura traduzida.

No fim, na verdade, a motivação da maioria dos tradutores literários é a paixão por um texto, e a decisão de traduzir e promover, mesmo que a publicação demore muitos anos. Quando perguntada sobre porque escolheu Majling, Gogola admite: “Definitivamente porque Majling é imprevisível. Quando você começa a ler, não consegue adivinhar o que vai acontecer no fim da história, é o que faz você realmente gostar do texto”.

Sherwood, que compartilha esse entusiasmo, também relaciona o livro com o novo contexto da invasão russa na Ucrânia:

O que eu mais gosto no livro é a irreverência e diversão. Nos últimos meses, diante da guerra na Ucrânia, muitas pessoas rejeitaram a cultura russa em geral e a literatura russa em particular. Ainda que essa resposta emocional seja compreensível, certamente por parte dos ucranianos, para mim foi longe demais, e fico feliz de ver em sua entrevista com Daniel Majling, que ele também pensa assim. Por outro lado, a literatura russa é frequentemente colocada em um pedestal e tratada como algo sacrossanto, e por isso a abordagem irreverente de Majling é tão refrescante. De certa forma, faz parte do espírito da literatura russa, pois, tirando os escritores dos livros pesados e solenes, sempre houve autores com um toque mais leve e senso do absurdo. Até mesmo o grande Pushkin é conhecido por ter escrito um poema sujo.

Gogola também fala do contexto atual na sua última resposta, sobre a questão das “literaturas menores”:

Talvez o livro de Majling seja um bom pretexto para redefinir o lugar da cultura russa no mundo europeu. Rir de algumas coisas pode nos ajudar a “ventilar” nossa angústia com o ataque russo à Ucrânia. Isso não significa que devemos parar de ler clássicos russos, mas precisamos lembrar que o status da língua ucraniana sempre foi incerto: os ucranianos precisaram provar por décadas que possuem uma língua e literatura próprias. Apoiar a literatura em línguas menores ajuda à sua sobrevivência. Infelizmente, a política russa impediu esse tipo de abordagem desde o período imperial. Simbolicamente, então, como leitores, nós podemos nos opor à Rússia pela leitura da literatura das “nações menores”.


GLOBAL VOICES

 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

 

O escritor brasileiro Jorge Amado e seu filho (quarto da esquerda para a direita) e o jornalista e dramaturgo tcheco Jan Drda (primeiro da esquerda para a direita), em Dobříš, castelo tcheco que serviu de residência para escritores tchecos e internacionais, em 1950. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.


Durante a Guerra Fria, intelectuais latino-americanos encontraram conforto na comunista Praga

Antes da Covid-19, a cidade de Praga era visitada todos os anos por milhões de turistas em busca de cervejas baratas e arquiteturas espetaculares. Na década de 1950, por outro lado, a capital da então Tchecoslováquia atraiu uma multidão diferente de viajantes: intelectuais de esquerda de todo o mundo procurando ver como era a vida sob o regime socialista.

Muitos desses viajantes vieram da América Latina e dentre eles estavam gigantes da literatura, como Jorge Amado e Gabriel García Márquez. Há muito esquecida, esta história compartilhada vem sendo aos poucos redescoberta e reavaliada na República Tcheca. 

Com o desenrolar da Guerra Fria, tanto o Ocidente quanto a União Soviética engajaram-se em intensos esforços publicitários a fim de demonstrar a superioridade de seus sistemas políticos e socioeconômicos, de modo geral, visando ao público na Ásia, África, Oriente Médio, e América Latina. E ambos os lados enxergaram na arte uma forma eficaz de transmitir essa mensagem.   

Na União Soviética, a Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros, ou VOKS na sigla em russo, tinha como missão convidar intelectuais e escritores de todo o mundo para os países da União Soviética e do Bloco Oriental, sobre o qual eles foram encorajados a escrever.

Tendo ingressado no Bloco Oriental em 1948, após seu partido comunista orquestrar um golpe, a Tchecoslováquia foi um desses destinos. Além de Jorge Amado e Gabriel García Márquez, o país recebeu escritores da Argentina (Raúl González Tuñón), do Brasil (Graciliano Ramos), do Chile (Ricardo Latcham, Pablo Neruda), de Cuba (Nicolás Guillén) e do México (Efraín Huerta, Luis Suárez). Alguns viajaram sozinhos, outros faziam parte de delegações maiores.  

Sendo assim, a partir dos anos 1950, Praga tornou-se um centro cultural da esquerda, reunindo escritores emergentes e estabelecidos nessa ideologia, como o turco Nazım Hikmet e o soviético Ilya Ehrenburg.

Na realidade, Pablo Neruda pode ter herdado seu nome artístico do escritor, poeta e jornalista tcheco do século 19, Jan Neruda (o poeta chileno nasceu Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto). Ele nunca admitiu essa suposição, contudo, fotos dele caminhando pela rua Neruda em Praga, ou posando diante de restaurantes e pubs sob o nome de “Neruda,” oferecem alguma base sólida para a especulação.

Michal Zourek, foto usada sob permissão.

A Global Voices conversou com Michal Zourek, acadêmico tcheco que enfoca os laços entre o Bloco Oriental e a América Latina. Zourek, autor do livro de 2018 “Československo očima latinskoamerických intelektuálů 1947-1959” (“Tchecoslováquia pelo olhar dos intelectuais latino-americanos de 1947 a 1959″, que também foi publicado em espanhol), explica o que motivou esses intelectuais a aceitarem tais convites:

Houve uma série de regimes autoritários na América Latina que, alegando a necessidade de suprimir forças subversivas de esquerda, reprimiram os direitos humanos de forma massiva. Essa é a razão pela qual artistas latino-americanos a favor da ideologia comunista conseguiriam apoio material e moral da Europa Oriental. A respeito dos testemunhos de suas viagens, os textos escritos nos anos de 1940 e 1950 são, em geral, cheios de entusiasmo. É claro que determinados aspectos das sociedades socialistas impressionaram bastante esses eruditos vindos de países em desenvolvimento, sobretudo, a posição da cena cultural no Leste Europeu. Há muitas referências à alta qualidade das peças teatrais, da infraestrutura das escolas e das bibliotecas públicas, e ao alto nível de escolaridade do povo.

Zourek segue explicando sobre como Praga e Moscou eram um porto seguro para que esses intelectuais fizessem contatos e se encontrassem. “Era comum de intelectuais latino-americanos encontrarem-se pela primeira vez na Europa Oriental”, disse. “Em seus países de origem não era possível, porque os governos anticomunistas e autoritários em vigor não permitiriam”.

A Europa Oriental, diz Zourek, desempenhou um papel crucial na literatura latino-americana, é possível que a lendária geração de escritores da década de 1960 não tivesse sido tão influente, se não fosse pelo movimento internacional comunista, inclusive no ocidente. “As obras de autores engajados saíram em impressões de grande formato (em tcheco, polonês ou russo), bem maiores do que as de suas línguas maternas, e tudo isso aconteceu por trás da Cortina de Ferro”, disse.

Busto de Pablo Neruda no centro de Praga. Foto de Kenyh da Wikipedia, usada sob a licença CC BY-SA  3.0.

Uma terra farta?

Ao visitarem Praga ou outros lugares da Tchecoslováquia, os intelectuais de esquerda, homens em sua maioria, eram tratados como VIPs: hospedavam-se em hotéis luxuosos, tinham as despesas pagas e acesso a guias bilíngues, recebiam honorários pela escrita, e eventualmente, tinham as obras traduzidas para o tcheco ou eslovaco.

Aqueles que receberam residência para escrever permaneceriam por longos períodos, de maneira notável no castelo de Dobříš, o reduto da união dos escritores tchecoslovacos dos anos de 1940 aos anos de 1990. Alguns permaneceram ainda por mais tempo, devido ao asilo político que obtiveram. 

Conforme explica Zourek:

Suas despesas de viagem eram pagas, e durante o programa de viagem, que foi elaborado de forma cuidadosa, receberam a proposta de observar apenas os aspectos mais ideais da vida local. Em troca, os hóspedes estrangeiros espalhariam impressões positivas via relatos de viagem, artigos e conferências. Esse fenômeno de ‘turismo político’ era o componente chave da propaganda soviética, uma estratégia bem planejada que teve início logo após a Revolução Russa de 1917. Um importante papel foi designado aos intelectuais os quais a União Soviética queria ao seu lado, a fim de usá-los mais tarde em sua luta ideológica com o Ocidente.

Jorge Amado (à esquerda) e Nicolás Guillén (à direita) em uma estação de trem da URSS, a caminho da China, janeiro de 1952. Foto do arquivo de Paloma Amado, usada sob permissão.

Uma exceção interessante nesta visão e descrição idealizada é o colombiano laureado com o Nobel da Literatura, Gabriel García Márques que visitou a Alemanha Oriental, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria e a União Soviética em 1955 e 1957. Viajou parcialmente por conta própria e, quando convidado de forma oficial, encontrou maneiras de escapar do programa oficial para averiguar por conta própria. Em seu livro, “De viaje por Europa del Este” (“Em viagem pela Europa de Leste”), suas descrições da Europa Oriental são muito mais diversificadas.

No primeiro capítulo, García Márquez descreve a Alemanha Oriental em termos nada lisonjeiros, como nesta cena em que o escritor entre em um restaurante para tomar café: “O que as pessoas tomam no café da manhã seria o equivalente a uma refeição completa no restante da Europa (Ocidental), e bem mais barato. Contudo, esses indivíduos aparentam estar destruídos e amargurados, comendo enormes porções de carne e ovos fritos sem nenhuma alegria”.

Em outro capítulo sobre Moscou, escreve sobre o tópico tabu do culto à personalidade de Stalin, citando seu guia russo que diz: “Se Stalin ainda estivesse vivo (estava morto desde 1953), teríamos um Terceiro Mundo. Stalin foi a figura mais sangrenta, mais rancorosa e mais egocêntrica da história russa”.

Gabriel García Márquez (primeiro da esquerda para a direita) na Praça Vermelha, em Moscou, em agosto de 1957. Foto do arquivo de Michal Zourek, usada sob permissão.

Para os tchecos, uma herança redescoberta

O comunismo terminou no outono de 1989 na Tchecoslováquia, e nos estados sucessores da Eslováquia e da República Tcheca, o passado socialista é, com frequência, considerado um período obscuro de violações dos direitos humanos, de restrições de viagens e de obediência forçada a Moscou.

Essa visão influencia a abordagem dos historiadores tchecos e eslovacos sobre os intelectuais de esquerda que visitaram o país durante aquele período. Segundo Zourek, que estudou na República Tcheca e Argentina, destaca:

Durante o tempo em que estudei na universidade, ouvi algumas menções a respeito da estadia de Pablo Neruda e Jorge Amado na Tchecoslováquia, mas não fazia ideia de que tratava-se de um grande fenômeno, de que ambas as regiões mantinham contato mesmo antes da Revolução Cubana, em 1959. É provável que isso tenha acontecido devido ao desprezo, pelo qual hoje esses autores são lembrados na República Tcheca e na Eslováquia: muitos os consideram idealistas ou idiotas inúteis que, ao visitarem o país, apoiaram regimes que incentivaram violências e perseguições. A questão é, sem dúvida, muito mais complexa do que isso.

Embora esses autores sejam celebrados há muito tempo em seus países de origem na América Latina, apenas agora seu legado ressurge no discurso histórico da República Tcheca. Os registros de viagens de García Márquez foi traduzido para o tcheco pela primeira vez em 2018 (“Devadesát dnů za železnou oponou“), enquanto os outros permanecem, em grande parte, desconhecidos.

Zourek compartilha sua experiência pessoal, a fim de explicar por que o processo de reavaliação é tão desafiador:

Visitei o Chile logo após o ensino médio, as universidades eram repletas de bandeiras soviéticas e retratos de Lenin, as livrarias vendiam as obras de Marx e Engels. Pensei que a ideologia estivesse morta, e não conseguia entender como alguém poderia admirar uma ideologia criminosa que impôs limites à liberdade de expressão, que impediu pessoas de entrarem nas universidades e realizarem seus sonhos. Essa posição antagônica de ambas as regiões acerca do comunismo deve-se, sobretudo, a experiências históricas bastante distintas. Por esse motivo, eu penso que, ao avaliar o comunismo, devemos nos distanciar da nossa experiência e história familiar, que muitas vezes nos impedem de enxergar esse fenômeno transnacional em toda a sua diversidade. Infelizmente, essa dissociação ainda não está ocorrendo para muitos historiadores tchecos. Não acho surpreendente que pessoas inseridas no mundo em desenvolvimento tenham mais interesse nas políticas da Tchecoslováquia comunista do que seus pares na República Tcheca. Houve alguma mudança nos últimos anos, e penso que isso se deve à gradual reavaliação do período comunista pela sociedade tcheca. Acredito que nos próximos anos veremos uma série de trabalhos mostrando como a Tchecoslováquia comunista realizou empreendimentos notáveis no mundo em desenvolvimento, os quais foram, em sua maior parte, abandonados após 1989, por exemplo na área da cultura.

GLOBAL VOICES


segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Clássicos da literatura russa precisam de uma nova interpretação após a invasão da Ucrânia? / Entrevista com a professora Ani Kokobobo

 

Dostoievsky


Clássicos da literatura russa precisam de uma nova interpretação após a invasão da Ucrânia? Entrevista com a professora Ani Kokobobo

Desde o século 19, a literatura é certamente uma das áreas em que a Rússia vem exercendo com mais força o seu “poder sutil”. Autores como Tchekhov, Tolstói, Dostoiévski, além de poetas como Pushkin, Akhmátova, Tsvetaeva e Brodsky são amplamente lidos, traduzidos e estudados no mundo todo. É comum vê-los como símbolos da cultura de seu país. Esse fato, porém, faz com que eles também sejam alvos de um número crescente de tentativas de cancelar a cultura russa, agora que a invasão à Ucrânia liderada por Moscou está próxima de completar 100 dias.

A Global Voices conversou com Ani Kokobobo, pesquisadora de literatura e cultura russas que leciona no Departamento de Línguas e Literaturas Eslavas e Eurasianas na Universidade do Kansas, como professora associada e chefe de departamento, a fim de saber a sua perspectiva sobre a crescente tendência da cultura do cancelamento nesse contexto:

Professora associada Ani Kokobobo, foto usada sob permissão.

 


O que eu percebi desde que a Rússia invadiu a Ucrânia foi, antes de tudo, um interesse em não promover a arte russa patrocinada pelo Estado. Também ouvi e li a respeito de maneiras pelas quais a cultura russa pode ocultar outros aspectos do genocídio que está sendo perpetrado, neste exato momento, pelas tropas da Federação Russa na Ucrânia. Suspeito que essas afirmações têm a ver com o fato de que muitas ideias presentes na literatura e na cultura russa se transformaram em armas e foram utilizadas para legitimar as ações ilegais do governo na Ucrânia.
Eu não sei se a verdadeira solução para esse problema está em não ter contato com as ideias russas. Acredito que, ao contrário, nós devamos ter um contato crítico com elas. Por outro lado, vale notar que, quando falamos da literatura e da cultura da região, costumamos privilegiar a literatura e as ideias russas em detrimento de outras existentes no Leste Europeu e na Eurásia; e eu espero que isso mude.
Não é de se estranhar que os ucranianos tenham uma certa atitude diante da cultura de seus invasores nesse momento. Mas eu vejo tais posicionamentos como posicionamentos de indivíduos confrontados com o genocídio russo. E eu não os culpo; culpo o genocídio. No fim das contas, a entidade mais responsável pelo impulso do cancelamento da cultura russa é o próprio governo russo.

Na verdade, diferentes governos russos — o tzarista, o soviético, o moderno — sempre perceberam a sua cultura como essencialmente imperial, e em poucos casos, questionaram os elementos colonialistas presentes na projeção que faziam da sua própria cultura. Kokobobo concorda que o Kremlin tem pouco incentivo para se engajar em uma missão de descolonização, se é que tem algum. Ela também levanta uma questão importante acerca da representatividade:


Como eu não tenho certeza se a Rússia teve um governo representativo adequado nos últimos tempos, não sei o que queremos dizer quando falamos em Rússia; há muitas Rússias. Penso que algumas dessas Rússias estão procurando se descolonizar, e nós já pudemos perceber sentimentos separatistas na Sibéria e em outras regiões.

Parte da especialidade acadêmica de Kokobobo é algo chamado, informalmente, de “Tolstoiévski”, ou seja, o estudo de Tolstói e Dostoiévski. Ambos os autores escreveram páginas e mais páginas, em obras de ficção e não ficção, sobre o destino e a missão da Rússia e de sua literatura, o seu posicionamento em relação às culturas europeias e asiáticas, e a sua visão da guerra e da violência. A questão que se transformou em um debate acalorado está em como abordar esses textos diante da guerra de 2022, da destruição da Ucrânia e de sua cultura, e das exigências de cancelamento da cultura russa por parte de certas entidades. Kokobobo, que já escreveu sobre o assunto, responde:


Penso que devemos estar atentos ao nacionalismo e ao sentimento de excepcionalismo russo em Dostoiévski, e também devemos levar em consideração como ele retrata outras culturas que não a de seu país. Pessoalmente, não acredito que Dostoiévski teria apoiado essa guerra, com certeza não depois das primeiras notícias da morte de civis inocentes. Porém, considero que suas outras ideias sobre a grandeza da Rússia podem ser usadas como armas perigosas, e elas têm sido usadas. Nós devemos lê-las de forma crítica e procurar vozes minoritárias em seus textos, para que nossos estudantes tenham uma imagem mais completa de Dostoiévski. Também não acho que devamos esconder as inconveniências desse autor. Na minha opinião, Dostoiévski e Tolstói não são tão frágeis a ponto de não suportar alguns escrutínios profundos de suas ideias mais problemáticas.

Kokobobo também observa que os posicionamentos mudam: se Tolstói foi um pacifista em seus anos finais e faz menção ao colonialismo russo na novela Khadji-Murát, é verdade que ele começou a sua carreira como intelectual público de outra maneira. Ela diz que:


Em “Kadji-Murát”, ele critica a violência contra os poloneses, tomando uma atitude que eu considero uma retrospectiva tolstoiana do seu sentimento anti-polonês em “Guerra e Paz”, onde retrata soldados poloneses se afogando por causa daquilo que, para ele, era a sua admiração servil a Napoleão. Sem dúvidas, a revolta polonesa de 1863 contra o domínio tzarista suscitou certos sentimentos no Tolstói da década de 1860; mas é positivo vê-lo voltar atrás e fazer uma revisão de si mesmo, rejeitando certas ideias prévias. Acredito que as leituras críticas de Tolstói costumam surgir de sua própria autocrítica, já que a sua ideologia era bem menos estável que a de Dostoiévski; nós o vemos reescrevendo e criticando a si próprio diversas vezes ao longo dos anos.

Descolonizar a própria academia

Perguntada a respeito de uma possível mudança para mais estudos sobre a Ucrânia no contexto acadêmico norte-americano, Kokobobo disse que, de fato, deveria haver mais interesse nessa área, uma vez que os estudos eslavos costumam ser dominados por estudos sobre a Rússia, o que se repete nas academias do mundo inteiro. Ela também observa que:


A língua russa simplesmente recebe mais matrículas de estudantes do que outras línguas, mas eu acredito que esse padrão também faz parte de uma história colonial mais ampla. Nós vemos coisas parecidas quando comparamos as matrículas no espanhol e as matrículas em línguas indígenas na América Latina. Para mim, descolonizar a área como um todo começa, antes de tudo, com incrementações. Começa com a integração, nas grades curriculares, de vozes ucranianas e bielorrussas, assumindo perspectivas russófonas ou não russófonas. Da mesma maneira, cabe a nós questionar a missão imperial da Rússia quando formos apresentar a sua cultura aos estudantes, tanto inserindo perspectivas, que normalmente são apagadas, quanto explicando a história do colonialismo russo.

Ela conclui dizendo que não há necessidade de a academia ser um jogo de tudo ou nada:


Agora vou ser impertinente, mas sincera: ofereço para todos os meus colegas, como um recurso, o nosso curso on-line de ucraniano na Universidade do Kansas. Às vezes, estudantes avançados de russo são os melhores candidatos para esse tipo de curso. Não se trata de uma proposta de “um ou outro”, e não há necessidade de ser territorial nesses assuntos. Eu não creio que os estudos russos vão acabar de vez se nós abrirmos espaço, em nossas unidades, para os estudos ucranianos ou se olharmos para o Leste/Centro Europeu e a Eurásia de forma mais holística, como uma região composta por muitas identidades e culturas, todas ricas e dignas de serem estudadas.

GLOBAL VOICES