Simpatizantes de Nicolás Maduro marcham por Caracas, em 25 de julho de 2024 — Foto: Fernando Vergara/AP
Campanha eleitoral na Venezuela chega ao fim: governo e oposição medem forças em Caracas
Nas semanas anteriores, a campanha foi dominada pela polarização e pela tensão. Maduro tentará ser reeleito para um terceiro mandato no domingo (28).
Por Associated Press
Simpatizantes de Nicolás Maduro marcham por Caracas, em 25 de julho de 2024 — Foto: Fernando Vergara/AP
Com mobilizações e concentrações de uma ponta a outra da capital venezuelana, o partido no poder e a oposição mediram forças no encerramento da campanha eleitoral, nesta quinta-feira (25). O presidente Nicolás Madurotenta ser reeleito para um terceiro mandado na eleição de domingo (28).
Nas semanas anteriores, a campanha foi dominada pela polarização e pela tensão. Maduro chegou a dizer que uma vitória da oposição, liderada por María Corina Machado com a candidatura de Edmundo González, poderia desencadear um “banho de sangue” no país.
O governista Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) convocou para quinta-feira a "tomada da Grande Caracas", com marchas e eventos em diferentes partes da cidade.
Já a oposição, que promete mudanças para a Venezuela após 25 anos de governos socialistas, convocou os seguidores para um comício em um bairro de classe média.
Em entrevista coletiva nesta quinta-feira, Corina Machado aproveitou para agradecer a todos que acompanharam a jornada da campanha pelo país, além das mensagens de "mudança" e "liberdade".
"Isto vai ficar para a história", disse a dirigente, garantindo que a campanha da oposição "foi o movimento cívico mais profundo que a Venezuela já teve".
Um homem pede esmola sentado na avenida Libertador, na capital da Venezuela.foto de ANDREA HERNÁNDEZ
PANDEMIA DE CORONAVÍRUS
Confinados sem gasolina na Venezuela
A grave escassez de combustível tornou ainda mais feroz a quarentena sob o regime de Nicolás Maduro. Nem sequer os trabalhadores de setores essenciais têm como se deslocar
Às 7h da manhã de uma quarta-feira, com apenas três horas na fila, Freddy Herrera ainda faz planos para o dia. É técnico radiologista numa clínica privada e pela segunda vez tentava encher o tanque de 85 litros de uma Grand Cherokee ano 99, seu único carro. A caminhonete tem um número escrito a giz no para-brisa: 262. Sua esposa dormia dentro. Como trabalhador de um setor considerado essencial —o da saúde, junto com o alimentício, o funcionalismo público, os meios de comunicação e os militares—, tem direito a abastecer em alguns postos de gasolina de Caracas, que desde que começou a pandemia vive, como toda a Venezuela, uma aguda escassez de gasolina enquanto atravessa três meses de quarentena para frear a expansão da covid-19.
Herrera é diabético e hipertenso. Tem 60 anos e chega ao posto de máscara e com o macacão verde de técnico radiologista. Depois de um descanso, pretende retornar ao trabalho para ajustar os equipamentos que tiram as chapas que confirmam as pneumonias decorrentes do vírus. Ele está no grupo de risco, mas sua preocupação hoje é outra. “Se puder encher todo o tanque, poderei buscar meus filhos, que estão retidos há mais de um mês na casa dos avós em Guatire [a 50 quilômetros da cidade]. Se só me derem 20 litros, como estão dizendo, terei que esperar uma semana a mais e voltar a abastecer.” O dia está só começando.
Organizações médicas alertam sobre a escassa disponibilidade de respiradores em todo o país: não chegam a 200 unidades
Ele chegou pouco antes das 4h e, pelo número que lhe coube na fila que cerca o posto de gasolina, achou que tinha chegado tarde. Mas atrás da sua caminhonete em poucas horas se juntaram mais de 100 outros veículos. A fila se perde entre vários quarteirões em torno dos postos. Assim é desde que teve início o racionamento de gasolina. Hoje só foi suficiente para 200 carros.
Os venezuelanos, após 20 anos de revolução bolivariana, entendem muito de filas, racionamentos, listas de espera, pessoas numeradas por algum militar e mercados informais. Mas a Venezuela em quarentena também deixou cenas como a descoberta de um posto de gasolina clandestino em um bairro luxuoso de Caracas, brigas entre motoristas cansados de esperar e a fúria de um bando de motociclistas bloqueando vias expressas em sua sede por gasolina. Sem combustível, o país com as maiores reserva de petróleo parou.
A Venezuela enfrenta o coronavírus com uma grande opacidade epidemiológica, na qual chama a atenção uma reduzida capacidade de verificar os contágios, que em 20 de abril alcançavam 256 confirmados e 9 mortes. O Governo de Nicolás Maduro diz ter feito o maior número de testes na região: 25.000 por dia. Mas quase a totalidade é de testes rápidos, não recomendados para um diagnóstico conclusivo. Há apenas um laboratório capaz de processar 93 exames de PCR por dia em Caracas. Também se assegura que há 23.000 leitos disponíveis (sendo 1.200 de UTI) entre hospitais, clínicas privadas, ambulatórios e hotéis, mas organizações de médicos indicam que a disponibilidade de respiradores no país não chega a 200. Desde 17 de março se aplica uma quarentena que ficou mais severa pela grave escassez de combustível, que agora é racionado. Essa situação que, junto com a falta de insumos médicos e de proteção para o pessoal sanitário e falhas nos serviços básicos, como a água, acendeu protestos em todo o país. A companhia estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA) não consegue produzir os 135.000 barris de gasolina consumidos diariamente. Na última década, uma feroz corrupção que também alimentou o contrabando e a má gestão da empresa levaram a capacidade de refino a apenas 55.000 barris nas duas refinarias que estão operacionais, das seis instaladas. O país que vendia a gasolina mais barata do mundo agora precisa importá-la e paga caro por ela.
Sob essa tempestade, na mesma fila de gasolina com Herrera, espera José Martínez, dono de uma companhia de atendimento médico a domicílio que presta serviços à PDVSA, que lhe deve pagamentos há ano e meio. Mais perto da meta, cochilando, está Josefina Morón, enfermeira de um hospital. Saiu de um plantão para o qual teria que voltar ao anoitecer, mas ficou sem gasolina e teve que comprar dois litros de gasolina por 22 reais para conseguir chegar até o posto. À frente dela, María Dagher faz fila no lugar do filho, médico plantonista em um dos centros de referência para o atendimento dos pacientes da covid-19. “É um Deus nos acuda”, diz, tentando descrever o que seu filho testemunhou nos últimos dias. Com a senha 198 em mãos, aguardava Mercedes Pichardo, de 72 anos, bioanalista em um hospital sem água.
Maduro manobrou nos últimos anos para administrar a crise, e Caracas ainda não tinha sofrido do mal da gasolina que há anos assola o interior do país. Na capital, é longínqua a lembrança da paralisação que o setor empresarial e a oposição promoveram depois de tentar um golpe de Estado contra o projeto de Hugo Chávez e seus primeiros sinais autoritários: um calhamaço de leis habilitantes que lhe permitiriam governar por decreto e ter o controle centralizado da petroleira.
A falta de gasolina em todo o país tornou ainda mais rigoroso o distanciamento social provocado pelo novo vírus que já contaminou 197 venezuelanos, dos quais nove morreram, segundo os dados oficiais. A escassez de combustível também deixou a comida mais distante para 80% dos venezuelanos que não ganham o suficiente para comprá-la, para quem vive do que vendem a cada dia e não pode contratar um serviço de entrega a domicilio, e muito mais longe os remédios, que os doentes de câncer e Aids só conseguem após horas de viagem rodoviária até a fronteira com a Colômbia, agora cheias de controles onde são exigidos salvo-condutos.
O que o “socialismo do século XXI” fez com a Venezuela é um dos piores cataclismos da história
31 Ago 2019
O segundo homem forte da Venezuela, Diosdado Cabello, enfurecido porque, devido à vertiginosa inflação que açoita sua pátria, o bolívar desapareceu de circulação e os venezuelanos só compram e vendem em dólares, pediu a seus compatriotas que recorram ao “escambo” para desterrar do país de uma vez por todas a moeda imperialista.
É certeza que os desventurados venezuelanos não lhe farão o menor caso, porque a dolarização do comércio não é um ato gratuito nem uma livre escolha, como acreditava o dirigente chavista, e sim a única maneira pela qual os venezuelanos podem saber o valor real das coisas em um país onde a moeda nacional se desvaloriza a cada instante pela pavorosa inflação —a mais alta do mundo— à qual a Venezuela foi levada por seus irresponsáveis dirigentes, multiplicando o gasto público e imprimindo moeda sem respaldo. A alusão de Cabello ao escambo é uma diáfana indicação desse retorno à barbárie que a Venezuela vive desde que, em um ato de cegueira coletiva, o povo venezuelano levou o comandante Chávez ao poder.
O escambo é a forma mais primitiva do comércio, aqueles intercâmbios que nossos remotos ancestrais realizavam e que alguns pensadores, como Hayek, consideram o primeiro passo dados pelos homens das cavernas em direção à civilização. Certamente, comercializar é muito mais civilizado que matar-se entre si a pauladas, como faziam as tribos até então, mas suspeito que o ato decisivo para a desanimalização do ser humano tenha ocorrido antes do comércio, quando nossos antecessores se reuniam na caverna primitiva, ao redor de uma fogueira, para contar histórias. Essas fantasias atenuavam o espanto em que viviam, temerosos da fera, do relâmpago e dos piores predadores, as outras tribos. As ficções lhes davam a ilusão e o apetite de uma vida melhor que aquela que viviam, e dali nasceu talvez o primeiro impulso para o progresso que, séculos mais tarde, nos levaria às estrelas.
Neste longo trânsito, o comércio desempenhou um papel principal, e boa parte do progresso humano se deve a ele. Mas é um grande erro acreditar que sair da barbárie e chegar à civilização é um processo fatídico e inevitável. A melhor demonstração de que os povos podem, também, retroceder da civilização à barbárie é o que ocorre justamente na Venezuela. É, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo, e quando eu era criança milhões de pessoas foram para lá procurar trabalho, fazer negócios e em busca de oportunidades. Era, também, um país que parecia ter deixado para trás as ditaduras militares, a grande peste da América Latina de então. É verdade que a democracia venezuelana era imperfeita (todas são), mas, apesar disso, o país prosperava num ritmo sustentado. A demagogia, o populismo e o socialismo, parentes muito próximos, fizeram-na retroceder a uma forma de barbárie que não tem antecedentes na história da América Latina e talvez do mundo. O que o “socialismo do século XXI” fez com a Venezuela é um dos piores cataclismos da história. E não me refiro só aos mais de quatro milhões de venezuelanos que fugiram do país para não morrer de fome; também aos roubos abundantes com os quais a suposta revolução enriqueceu um punhado de militares e dirigentes chavistas cujas gigantescas fortunas fugiram e se refugiam agora naqueles países capitalistas contra os quais clamam diariamente Maduro, Cabello e companhia.
Venezuela é, em potencial, um dos países mais ricos do mundo, milhões de pessoas iam lá a buscar trabalho
As últimas notícias publicadas na Europa sobre a Venezuela mostram que a barbarização do país adota um ritmo frenético. As organizações de direitos humanos dizem que há 501 presos políticos reconhecidos pelo regime, e, apesar disso, isolados e submetidos a tortura sistemáticas. A repressão cresce com a impopularidade do regime. Os corpos de repressão se multiplicam, e o último a aparecer agora opera nos bairros marginais, antigas cidadelas do chavismo, mas transformados, devido à falta de trabalho e à queda brutal dos níveis de vida, em seus piores inimigos. As surras e assassinatos a rodo são incontáveis e querem sobretudo, mediante o terror, fortalecer o regime. Na verdade, conseguem aumentar o descontentamento e o ódio contra o Governo. Mas não importa. O modelo da Venezuela é Cuba: um país sonâmbulo e petrificado, resignado à sua sorte, que oferece praias e sol aos turistas, e que ficou fora da história.
Infelizmente, não só a Venezuela retorna à barbárie. A Argentina pode imitá-la se os argentinos repetirem a loucura furiosa destas eleições primárias, em que repudiaram Macri e deram 15 pontos de vantagem à dupla Fernández/Kirchner. A explicação deste desvario? A crise econômica que o Governo de Macri não conseguiu resolver e que duplicou a inflação que assolava a Argentina durante o mandato anterior. O que falhou? Penso que o chamado ”gradualismo”, o empenho da equipe de Macri em não exigir mais sacrifícios de um povo extenuado pelos desmandos dos Kirchner. Mas não deu certo; mais do que isso, agora os sofridos argentinos responsabilizam o atual Governo —provavelmente o mais competente e honrado que o país teve em muito tempo— das consequências do populismo frenético que arruinou o único país latino-americano que tinha conseguido deixar para trás o subdesenvolvimento e que, graças a Perón e ao peronismo, retornou a ele com perseverante entusiasmo.
A barbárie se assenhora também da Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua esposa, depois de terem massacrado uma corajosa oposição popular, voltou a reprimir e assassinar opositores graças a umas forças armadas “sandinistas” que já se tornaram idênticas àquelas que permitiram a Somoza roubar e dizimar esse desafortunado país. Evo Morales, na Bolívia, dispõe-se a ser reeleito pela quarta vez como presidente da República. Fez uma consulta para ver se o povo boliviano queria que ele fosse novamente candidato; a resposta foi um não taxativo. Mas não lhe importa. Declarou que o direito a ser candidato é democrático e se dispõe a se eternizar no poder graças a eleições manufaturadas à maneira venezuelana.
E o que dizer do México? Escolheu esmagadoramente López Obrador, em eleições legítimas, e no país prosseguem os assassinatos de jornalistas e mulheres a um ritmo aterrador. O populismo começa a carcomer uma economia que, apesar da corrupção do Governo anterior, parecia bem orientada.
É verdade que há países como o Chile que, diferentemente dos já mencionados, progridem a passos de gigante, e outros, como a Colômbia, onde a democracia funciona e parece fazer avanços, apesar de todas as deficiências do chamado “processo de paz”. O Brasil é um caso à parte. A eleição de Bolsonaro foi recebida no mundo inteiro com espanto, por suas saídas de tom demagógicas e suas exortações militaristas. A explicação desse triunfo foi a grande corrupção dos Governos de Lula e Dilma Rousseff, que indignou o povo brasileiro e o levou a votar numa tendência contrária, não uma claudicação democrática. Certamente, seria terrível para a América Latina que também o gigante brasileiro começasse o retorno à barbárie. Mas não ocorreu ainda, e muito dependerá do que o mundo inteiro, e sobretudo a América Latina democrática, faça para impedi-lo.
Em algum dia, não longínquo, se escreverá um grande romance tolstoiano sobre a heroica luta do povo venezuelano contra a ditadura de Chávez e Maduro. E o final será, claro, um final feliz
4 FEV 2019 - 11:28 COT
Algum dia se escreverá um grande livro sobre a heroica luta do povo venezuelano contra a ditadura de Chávez e Maduro, que recorde os sofrimentos que padeceu durante todos estes anos sem deixar de resistir, apesar dos torturados e dos assassinados, da catástrofe econômica — provavelmente a mais atroz que a história moderna recorda — que levou um país potencialmente muito rico à fome coletiva e obrigou quase três milhões de cidadãos a fugirem, a pé, em direção aos países vizinhos para não perecerem pela falta de trabalho, de comida, de remédios e de esperança. Menos mal que o martírio da Venezuela parece chegar ao seu fim, graças ao novo ímpeto inoculado na resistência por Juan Guaidó e outros jovens dirigentes.
Parece impossível, não é mesmo?, que uma ditadura rejeitada por todo o mundo democrático, a OEA, a União Europeia, o Grupo de Lima, as Nações Unidas e no mínimo por três quartas partes de sua população possa sobreviver a esta última arremetida da liberdade com a proclamação, pela Assembleia Nacional da Venezuela (o único organismo mais ou menos representativo do país), de Juan Guaidó como presidente encarregado de convocar novas eleições que devolvam a legalidade perdida à nação. E, entretanto, o tirano ainda continua lá.
Por quê? Porque as Forças Armadas ainda o protegem e armaram um escudo protetor ao seu redor. Vimos na televisão aqueles generais e almirantes atulhados de medalhas, enquanto o ministro da Defesa, general Vladimir Padrino, jurava lealdade ao regime espúrio. O que explica esta suposta lealdade não são afinidades ideológicas. É o medo. O recurso do qual Chávez se valeu, e que Maduro manteve com esta cúpula militar para assegurar sua cumplicidade, foi comprá-la, praticamente lhe entregando o negócio do narcotráfico, de tal maneira que um bom número destes oficiais enriqueceu e têm suas fortunas em paraísos fiscais. Mas quase todos eles estão fichados internacionalmente e sabem que, quando o regime cair, irão para a cadeia. As promessas de anistia que Guaidó lhes fez chegar não os tranquilizam, porque suspeitam que não valham fora do território venezuelano, e suas sujas operações estão perseguidas e serão punidas por tribunais internacionais em todos os cantos do planeta.
É indispensável que os países e instituições internacionais multipliquem a pressão contra Maduro
Mas por que então esses jovens oficiais – tenentes, capitães – e soldados golpeados pela atroz crise econômica não se rebelam contra a tirania de Maduro, assim como o resto da população venezuelana? Por uma razão também muito simples. Pela vigilância estrita e implacável exercida sobre as Forças Armadas da Venezuela pelos técnicos e profissionais de Cuba, a quem o comandante Chávez praticamente entregou o controle da segurança militar e civil do regime que implantou. Trata-se de algo sem precedentes; um país renuncia à sua soberania e entrega a outro o controle total de suas Forças Armadas e policiais. E os comunistas, como já foi comprovado a não mais poder, arruínam a economia, destroem as instituições representativas, arregimentam e esmagam a cultura, mas levaram a censura e a repressão de toda forma de insubmissão e rebeldia a uma perfeição quase artística. Não nos esqueçamos de que todas as instituições militares venezuelanas foram submetidas a expurgos sistemáticos, e que há várias centenas de oficiais expulsos ou encarcerados por não serem considerados “seguros” para a ditadura.
Entretanto, a URSS desmoronou como um castelo de cartas, e também seus satélites centro-europeus desmoronaram e hoje em dia são verdadeiros baluartes contra aquele regime que tinha prometido baixar o paraíso à terra, e na verdade criou as piores satrapias que a história conhece. O regime de Maduro se ufana da proteção fornecida a ele por ditaduras como a russa, a chinesa e a turca, e da solidariedade de outras tiranias latino-americanas, como Cuba, Nicarágua e Bolívia. Tremendos companheiros de viagem, para os quais vale o famoso ditado: “Diga-me com quem andas, e te direi quem és”. No caso da Rússia e da China, ambos os países fizeram empréstimos tão extravagantes à ditadura de Maduro — os quais só serviram para agravar a corrupção reinante — que temem, com muitíssima razão, jamais conseguirem cobrá-los. Bem feito para eles: queriam assegurar fontes de matérias primas para si fortalecendo economicamente uma tirania corrupta, e o mais provável é que acabem sendo também parte de suas vítimas.
A fera que vai morrer se defende com unhas e dentes, e não há dúvida de que o regime, agora que se sente encurralado e pressente seu fim, pode causar muita dor e derramar ainda mais sangre inocente. Por isso é indispensável que os países e instituições democráticas internacionais multipliquem a pressão contra o Governo de Maduro, estendendo os reconhecimentos à presidência de Juan Guaidó e à Assembleia Nacional, e obtendo o isolamento e a orfandade do regime a fim de precipitar sua queda antes que cause mais danos do que já causou à desventurada Venezuela.
As tentativas de diálogo foram frustrados porque a ditadura pretendia utilizar a negociação para ganhar tempo
O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, disse com clareza: “Não há nada que negociar com Maduro”. Todas as tentativas de diálogo se viram frustradas porque a ditadura pretendia utilizar as negociações só para ganhar tempo, sem fazer a menor concessão, e conspirando sem trégua, graças à ajuda que lhe prestavam pessoas ingênuas ou maquiavélicas, para semear a discórdia entre as forças da oposição. As coisas foram já longe demais, e a primeira prioridade agora é acabar o quanto antes com a ditadura de Maduro, a fim de que sejam convocadas eleições livres e os venezuelanos possam finalmente se dedicar à reconstrução de seu país.
A mobilização do mundo democrático, começando pelos países ocidentais, foi algo sem precedentes. Não me recordo de ter visto nada parecido nos muitos anos que tenho. Ao mesmo tempo em que diversos Governos, começando pelos Estados Unidos e Canadá e os principais países europeus, reconheciam Guaidó como presidente, a União Europeia, a OEA, as Nações Unidas e todos os países democráticos latino-americanos, com exceção do Uruguai e México (algo previsível), rompiam com a ditadura e se mobilizavam a fim de apressar a queda do regime sanguinário de Maduro. Não se deve esquecer, nestes momentos em que finalmente se vê uma luz ao final deste longo caminho, que nada disto teria sido possível sem o sacrifício do povo da Venezuela, que, se em um primeiro momento se rendeu aos cantos de sereia de Chávez, depois reagiu com exemplar coragem e manteve sua resistência por todos estes anos, sem se deixar intimidar pela ferocidade da repressão.
Obrigado a Julio Borges, María Corina Machado, Leopoldo López, Lilian Tintori, Henrique Capriles, Antonio Ledezma, Juan Guaidó e aos milhares e milhares de mulheres e homens que os seguiram por todos estes anos, demonstrando nas ruas, e nos calabouços e no exílio, que a América Latina já não é, como no passado, terra de sátrapas e de ladrões, e que um povo que ama a liberdade não pode ser indefinidamente acorrentado. Algum dia, não longínquo, o rebento de um desses grandes escritores que a Venezuela já deu à língua espanhola escreverá esse grande romance tolstoiano sobre o que ocorreu e está ocorrendo por lá. E o final será, claro, um final feliz.
Os discursos do psiquiatra em Sangue no divã parecem-se aos do comandante Chávez, virando uma chuva de injurias contra a corrupta democracia e prometendo o paraíso a seus crentes
Mario Vargas Llosa
8 DEZ 2018 - 18:00 COT
Por seu prontuário, seu narcisismo, seus delírios e seus crimes, parece um homem inventado, mas o doutor Edmundo Chirinos existiu, e os espanhóis que vão ao teatro acabam de comprová-lo vendo em cena o espetáculo Sangre en el Diván, dirigido e protagonizado pelo diretor e ator venezuelano Héctor Manrique.
Nesse monólogo de uma hora e meia que mantém o público sobressaltado e meio afogado pelas gargalhadas, o próprio doutor Chirinos nos conta sua odisseia: foi psiquiatra, reitor da Universidade Central da Venezuela, membro de sua Assembleia Constituinte, candidato à presidência lançado pelo Partido Comunista, e teve entre seus pacientes nada menos que três presidentes da República: Jaime Lusinchi, Rafael Caldera e o comandante Hugo Chávez. Homem influente e poderoso, por seu consultório passaram milhares de pacientes, dos quais abusou com frequência e inclusive assassinou, como a estudante Roxana Vargas, um crime pelo qual passou seus últimos anos de vida na prisão.
O mais extraordinário do espetáculo talvez não seja a esplêndida recriação que Héctor Manrique faz de tal personagem, vestindo-se e desvestindo-se, cantando, dançando e delirando sem trégua, exibindo sua egolatria e excesso até extremos disparatados, mas sim que tudo aquilo que o doutor Chirinos diz no palco ele disse de verdade a uma jornalista, Ibéyise Pacheco, que gravou e depois publicou o material em um livro que leva o mesmo título da peça teatral, adaptada e dirigida pelo próprio Héctor Manrique.
Conheci Héctor há muitos anos, em Caracas, porque dirigiu uma peça minha, Al Pie del Támesis – uma bela montagem, diga-se de passagem –, que depois levou à Colômbia. O comandante Chávez estava só começando a obra de demolição de uma Venezuela cuja vida cultural ainda fosforescia por sua diversidade e riqueza. Não só o teatro como também a dança, a pintura, a música e a literatura. Mas o país vivia um perigoso deslumbramento com o militar golpista, cujo levante contra o Governo legítimo de Carlos Andrés Pérez havia sido reprimido por um Exército leal às leis e à Constituição. Como é sabido, o comandante sedicioso, em vez de ser julgado, foi indultado pelo presidente Rafael Caldera e se tornou em pouco tempo um líder popular que arrasou nas eleições.
Custava-me entender isso. Como um país que tinha sofrido ditaduras tão ferozes no passado e que tinha lutado com tanta fidalguia contra o regime espúrio de um Marcos Pérez Jiménez podia cair rendido à demagogia de um novo caudilhozinho truculento, inculto e mal falado? Com uma exceção, entretanto: os intelectuais. Eles foram muito mais lúcidos que seus compatriotas. Com poucas exceções – praticamente caberiam numa só mão –, mantiveram-se na oposição ou pelo menos guardando uma distância prudente, sem participar do deslumbramento coletivo, da absurda crença, tantas vezes desmentida pela história, de que um homem fortepoderia resolver todos os problemas sem as tramas burocráticas da inepta democracia.
A Venezuela daqueles anos, com suas grandes exposições, seus festivais internacionais de música e de teatro, com suas editoras flamejantes, seus museus e seus encontros e congressos que atraíam a Caracas os pensadores, escritores e artistas mais celebrados no mundo, agora está morta e enterrada. E levará muitos anos e enormes esforços para ser ressuscitada.
Os discursos que o delitivo doutor Edmundo Chirinos regurgita perante o público em Sangre en el Diván se parecem muito com os do comandante Chávez, lançando uma chuva de impropérios contra a morosa e corrupta democracia e prometendo o paraíso imediato a seus crentes. Os venezuelanos que acreditaram nele se deram tão mal quanto os iludidos pacientes do psiquiatra que terminavam deixando seu sangue no divã. Muitos deles agora comem só o que encontram no lixo.
A peça que Héctor Manrique interpreta não foi proibida na Venezuela – pelo contrário, acumula quatro anos em cartaz e muitas dezenas de milhares de espectadores –, talvez porque os censores sejam menos perceptivos do que seu triste ofício exigiria, e, também porque, à primeira vista, Sangre en el Divánpoderia parecer um caso à parte, o de um indivíduo fora do comum, a tão famosa exceção à regra, a “mosca branca”.
Entretanto, não é assim. Muito do que depois viria a ocorrer na Venezuela é mostrado, de forma resumida sobre o palco, na sinistra odisseia do doutor Edmundo Chirinos, no seu poder acumulado a partir da fraude e sua loquacidade doentia. Renunciar à razão pode dar frutos extraordinários nos campos da poesia, a ficção e a arte, como sustentaram o surrealismo e outros movimentos de vanguarda. Mas entregar-se à injustiça, ao puramente emotivo e passional, é muito perigoso na vida social e política, um caminho seguro para a ruína econômica, a ditadura, enfim, para todos esses desastres que levaram um dos países mais ricos do mundo a se tornar um dos mais pobres e a ver milhões de seus habitantes se lançarem ao exílio, mesmo que seja andando, para não morrer de fome.
De nada disso falamos com Héctor Manrique quando desci aos camarins do teatro para lhe dar um abraço e parabenizá-lo. Perguntei-lhe se é verdade que não há uma palavra em seu monólogo que o doutor Chirinos não tenha dito de verdade, e me confirmou que é assim, e me apresentou ainda a Ibéyise Pacheco, que foi quem o entrevistou durante muitas horas na cela da prisão onde estava confinado pelo assassinato de uma paciente. Eu gostaria de ter recordado com Héctor aqueles lindos anos em que a literatura e o teatro nos pareciam as coisas mais importantes do mundo, e também toda a Venezuela parecia acreditar nisso, a julgar pelas revistas culturais que saíam a cada semana e pela quantidade de novos escritores, artistas e companhias de teatro e de concertos que surgiam e disputavam as noites de Caracas. Aquilo ocorria não só na capital, mas também no interior do país, onde apareciam novas universidades e novos artistas. A Venezuela inteira parecia tomada então por uma avidez frenética de cultura e criatividade. E de lembrar grandes amigos que já não estão mais aqui, como Salvador Garmendia e Adriano González León, o autor de País Portátil, um magnífico romance, que, dizem-me, caiu subitamente morto no bar onde sempre tomava a saideira, e daquele grupo revoltoso de jovens, El Techo de la Ballena, que semeou Caracas de escândalos anarquistas.
A única coisa boa das ditaduras é que, embora provoquem desastres, sempre morrem. Com o passar do tempo, sua lembrança vai se empobrecendo e, às vezes, os povos que as padecem chegam a se esquecer que as padeceram. Mas duvido que ocorra tão cedo com a que transformou a Venezuela num país que não é nem sombra daquele que conheci em meados dos anos sessenta. Tomara que o horror que viveu todos estes anos, transformada praticamente em um dos sanguinários delírios do doutor Edmundo Chirinos, a poupe de no futuro voltar a renunciar à razão e à sensatez, que na política são a única garantia de não perder a liberdade.