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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Transpondo sátiras / Duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Texto de Majling, original em eslovaco, com os nomes modificados de Dostojevzski (Dostoiévski), Tolsztoi (Tolstói) e Toorgenef (Turguêniev). Foto de Filip Noubel, usada com permissão.


Transpondo sátiras: duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Para tradutores literários, nada é mais desafiador, e talvez mais inspirador, do que textos de humor, pois necessitam de uma tradução dupla: linguística e cultural. A Global Voices pediu para duas tradutoras que trabalharam com a obra “Ruzká klazika“, do escritor eslovaco Daniel Majling, um livro de sátiras sobre literatura clássica russa, contarem sobre suas estratégias para essa delicada transposição.

Podemos descrever a coletânea de contos de Majling como pastiche, um termo que se refere à imitação artística, e que também indica mescla de elementos. De fato, em seu livro, Majling faz referências a autores clássicos russos, mas distorce os nomes e os coloca em situações grotescas cheias de humor ácido. Além das ironias, o livro tem o subtítulo “Zostavil a preložil Daniel Majling”, que significa “organizado e traduzido por Daniel Majling”, como se o texto eslovaco original fosse em si uma tradução, semelhante a apresentação de Cervantes no clássico Dom Quixote.

Retrato de Weronika Gogola, foto usada com permissão.

Weronika Gogola é uma premiada escritora polonesa de Bratislava, que também traduz do ucraniano e eslovaco para o polonês. Sua tradução do livro de Majling será publicada no fim do ano na Polônia. Ela explicou a estratégia para transposição de humor, que muitas vezes depende de substituições e alusões veladas:

Em algumas partes do texto o humor na tradução polonesa foi menos ácido, em outras mais do que no original. Eu tive sorte de conhecer Majling pessoalmente e pude conversar sobre alguns temas, e também inseri algumas notas no caso de pequenas imprecisões no texto original. O próprio Majling sugeriu, que nessas notas, eu comentasse ironicamente a inabilidade dele com certos assuntos.

O tom do livro permite uma certa liberdade, o que podemos chamar de “efeito Majling”. Uma oportunidade assim é rara no trabalho de tradução — mas para ser clara, eu discuti todas essas questões com o autor.

Retrato de Julia Sherwood, foto usada com permissão.

Para Julia Sherwood, uma veterana em traduções da literatura eslovaca, juntamente com seu marido Peter, a tradução parcial do início do livro foi uma oportunidade de ser criativa na tradução de nomes, além de outros aspectos:

Cada história de “Ruzká klazika” (o título é uma variação de ‘Clássicos Russos’ com letras trocadas) é uma paródia do estilo de um escritor russo, então a tradução precisa atingir o mesmo efeito. A introdução do livro não foi difícil de traduzir, nem a história “The Rebirth of the Orthodox Faith in Our Town” (O renascimento da fé ortodoxa em nossa cidade), que é um pastiche de um conto folclórico, e eu espero termos conseguido fazer a tradução funcionar. Fazer uma versão em inglês dos nomes de personagens foi complicado, mas divertido; o personagem “tulák Arťom Skočdopoľa-Prašivý” se tornou “the vagrant Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin” (o vagabundo Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin). As letras trocadas não foram um problema, exceto no título do livro: Nós colocamos como “Rushian Clashics”, mas outras versões são possíveis. Vocês colocaram como “Roosyan Klassiks” em um artigo da Global Voices, e eu também vi a tradução “The Ruzzian Clazzics”. Um dia, se uma editora de língua inglesa for publicar o livro completo, o título pode ficar diferente novamente.

Uma escolha incomum: literaturas menos conhecidas

Traduzir um texto é apenas metade do trabalho para a maioria dos tradutores literários que trabalham com as chamadas “línguas menores”; línguas raramente traduzidas e com literaturas geralmente desconsideradas por editoras, como é o caso ainda da literatura eslovaca. Nesses casos, tradutores atuam como agentes literários e promotores de reinos literários menos conhecidos e menos valorizados, como explica Gogola:

No caso de “literaturas menores”, a regra é que os tradutores tomem a iniciativa sozinhos. Isso também aconteceu no meu caso. Fiquei maravilhada com o livro de Majling, com seu humor rasgado e a liberdade que ele se permitiu.

Porém, Sherwood, que também tem um podcast em inglês sobre literatura eslovaca, acredita que as atitudes estão mudando no mundo editorial global anglófono:

É verdade que, comparado com a literatura tcheca, polonesa ou húngara, escritores eslovacos são muito menos conhecidos, mas, felizmente, isso começou a mudar recentemente. Obras de autores eslovacos contemporâneos como Balla, Jana Bodnárová, Jana Beňová, Ivana Dobrakovová, Pavel Rankov, Monika Kompaníková e Uršuľa Kovalyk, têm sido traduzidos para o inglês. Autores eslovacos também têm recebido mais reconhecimento internacional, por exemplo, “Piata loď “(Boat Number Five – Barco número cinco), de Monika Kompaníková, traduzido por Janet Livingstone, foi uma das finalistas do concurso literário EBRD Literature Prize em 2022. De fato, “Boat Number Five” foi um dos dois primeiros livros da série de literatura eslovaca lançada pela editora Seagull Books, uma esplêndida pequena editora de Calcutá com distribuição mundial que publica muita literatura traduzida.

No fim, na verdade, a motivação da maioria dos tradutores literários é a paixão por um texto, e a decisão de traduzir e promover, mesmo que a publicação demore muitos anos. Quando perguntada sobre porque escolheu Majling, Gogola admite: “Definitivamente porque Majling é imprevisível. Quando você começa a ler, não consegue adivinhar o que vai acontecer no fim da história, é o que faz você realmente gostar do texto”.

Sherwood, que compartilha esse entusiasmo, também relaciona o livro com o novo contexto da invasão russa na Ucrânia:

O que eu mais gosto no livro é a irreverência e diversão. Nos últimos meses, diante da guerra na Ucrânia, muitas pessoas rejeitaram a cultura russa em geral e a literatura russa em particular. Ainda que essa resposta emocional seja compreensível, certamente por parte dos ucranianos, para mim foi longe demais, e fico feliz de ver em sua entrevista com Daniel Majling, que ele também pensa assim. Por outro lado, a literatura russa é frequentemente colocada em um pedestal e tratada como algo sacrossanto, e por isso a abordagem irreverente de Majling é tão refrescante. De certa forma, faz parte do espírito da literatura russa, pois, tirando os escritores dos livros pesados e solenes, sempre houve autores com um toque mais leve e senso do absurdo. Até mesmo o grande Pushkin é conhecido por ter escrito um poema sujo.

Gogola também fala do contexto atual na sua última resposta, sobre a questão das “literaturas menores”:

Talvez o livro de Majling seja um bom pretexto para redefinir o lugar da cultura russa no mundo europeu. Rir de algumas coisas pode nos ajudar a “ventilar” nossa angústia com o ataque russo à Ucrânia. Isso não significa que devemos parar de ler clássicos russos, mas precisamos lembrar que o status da língua ucraniana sempre foi incerto: os ucranianos precisaram provar por décadas que possuem uma língua e literatura próprias. Apoiar a literatura em línguas menores ajuda à sua sobrevivência. Infelizmente, a política russa impediu esse tipo de abordagem desde o período imperial. Simbolicamente, então, como leitores, nós podemos nos opor à Rússia pela leitura da literatura das “nações menores”.


GLOBAL VOICES

 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Clássicos da literatura russa precisam de uma nova interpretação após a invasão da Ucrânia? / Entrevista com a professora Ani Kokobobo

 

Dostoievsky


Clássicos da literatura russa precisam de uma nova interpretação após a invasão da Ucrânia? Entrevista com a professora Ani Kokobobo

Desde o século 19, a literatura é certamente uma das áreas em que a Rússia vem exercendo com mais força o seu “poder sutil”. Autores como Tchekhov, Tolstói, Dostoiévski, além de poetas como Pushkin, Akhmátova, Tsvetaeva e Brodsky são amplamente lidos, traduzidos e estudados no mundo todo. É comum vê-los como símbolos da cultura de seu país. Esse fato, porém, faz com que eles também sejam alvos de um número crescente de tentativas de cancelar a cultura russa, agora que a invasão à Ucrânia liderada por Moscou está próxima de completar 100 dias.

A Global Voices conversou com Ani Kokobobo, pesquisadora de literatura e cultura russas que leciona no Departamento de Línguas e Literaturas Eslavas e Eurasianas na Universidade do Kansas, como professora associada e chefe de departamento, a fim de saber a sua perspectiva sobre a crescente tendência da cultura do cancelamento nesse contexto:

Professora associada Ani Kokobobo, foto usada sob permissão.

 


O que eu percebi desde que a Rússia invadiu a Ucrânia foi, antes de tudo, um interesse em não promover a arte russa patrocinada pelo Estado. Também ouvi e li a respeito de maneiras pelas quais a cultura russa pode ocultar outros aspectos do genocídio que está sendo perpetrado, neste exato momento, pelas tropas da Federação Russa na Ucrânia. Suspeito que essas afirmações têm a ver com o fato de que muitas ideias presentes na literatura e na cultura russa se transformaram em armas e foram utilizadas para legitimar as ações ilegais do governo na Ucrânia.
Eu não sei se a verdadeira solução para esse problema está em não ter contato com as ideias russas. Acredito que, ao contrário, nós devamos ter um contato crítico com elas. Por outro lado, vale notar que, quando falamos da literatura e da cultura da região, costumamos privilegiar a literatura e as ideias russas em detrimento de outras existentes no Leste Europeu e na Eurásia; e eu espero que isso mude.
Não é de se estranhar que os ucranianos tenham uma certa atitude diante da cultura de seus invasores nesse momento. Mas eu vejo tais posicionamentos como posicionamentos de indivíduos confrontados com o genocídio russo. E eu não os culpo; culpo o genocídio. No fim das contas, a entidade mais responsável pelo impulso do cancelamento da cultura russa é o próprio governo russo.

Na verdade, diferentes governos russos — o tzarista, o soviético, o moderno — sempre perceberam a sua cultura como essencialmente imperial, e em poucos casos, questionaram os elementos colonialistas presentes na projeção que faziam da sua própria cultura. Kokobobo concorda que o Kremlin tem pouco incentivo para se engajar em uma missão de descolonização, se é que tem algum. Ela também levanta uma questão importante acerca da representatividade:


Como eu não tenho certeza se a Rússia teve um governo representativo adequado nos últimos tempos, não sei o que queremos dizer quando falamos em Rússia; há muitas Rússias. Penso que algumas dessas Rússias estão procurando se descolonizar, e nós já pudemos perceber sentimentos separatistas na Sibéria e em outras regiões.

Parte da especialidade acadêmica de Kokobobo é algo chamado, informalmente, de “Tolstoiévski”, ou seja, o estudo de Tolstói e Dostoiévski. Ambos os autores escreveram páginas e mais páginas, em obras de ficção e não ficção, sobre o destino e a missão da Rússia e de sua literatura, o seu posicionamento em relação às culturas europeias e asiáticas, e a sua visão da guerra e da violência. A questão que se transformou em um debate acalorado está em como abordar esses textos diante da guerra de 2022, da destruição da Ucrânia e de sua cultura, e das exigências de cancelamento da cultura russa por parte de certas entidades. Kokobobo, que já escreveu sobre o assunto, responde:


Penso que devemos estar atentos ao nacionalismo e ao sentimento de excepcionalismo russo em Dostoiévski, e também devemos levar em consideração como ele retrata outras culturas que não a de seu país. Pessoalmente, não acredito que Dostoiévski teria apoiado essa guerra, com certeza não depois das primeiras notícias da morte de civis inocentes. Porém, considero que suas outras ideias sobre a grandeza da Rússia podem ser usadas como armas perigosas, e elas têm sido usadas. Nós devemos lê-las de forma crítica e procurar vozes minoritárias em seus textos, para que nossos estudantes tenham uma imagem mais completa de Dostoiévski. Também não acho que devamos esconder as inconveniências desse autor. Na minha opinião, Dostoiévski e Tolstói não são tão frágeis a ponto de não suportar alguns escrutínios profundos de suas ideias mais problemáticas.

Kokobobo também observa que os posicionamentos mudam: se Tolstói foi um pacifista em seus anos finais e faz menção ao colonialismo russo na novela Khadji-Murát, é verdade que ele começou a sua carreira como intelectual público de outra maneira. Ela diz que:


Em “Kadji-Murát”, ele critica a violência contra os poloneses, tomando uma atitude que eu considero uma retrospectiva tolstoiana do seu sentimento anti-polonês em “Guerra e Paz”, onde retrata soldados poloneses se afogando por causa daquilo que, para ele, era a sua admiração servil a Napoleão. Sem dúvidas, a revolta polonesa de 1863 contra o domínio tzarista suscitou certos sentimentos no Tolstói da década de 1860; mas é positivo vê-lo voltar atrás e fazer uma revisão de si mesmo, rejeitando certas ideias prévias. Acredito que as leituras críticas de Tolstói costumam surgir de sua própria autocrítica, já que a sua ideologia era bem menos estável que a de Dostoiévski; nós o vemos reescrevendo e criticando a si próprio diversas vezes ao longo dos anos.

Descolonizar a própria academia

Perguntada a respeito de uma possível mudança para mais estudos sobre a Ucrânia no contexto acadêmico norte-americano, Kokobobo disse que, de fato, deveria haver mais interesse nessa área, uma vez que os estudos eslavos costumam ser dominados por estudos sobre a Rússia, o que se repete nas academias do mundo inteiro. Ela também observa que:


A língua russa simplesmente recebe mais matrículas de estudantes do que outras línguas, mas eu acredito que esse padrão também faz parte de uma história colonial mais ampla. Nós vemos coisas parecidas quando comparamos as matrículas no espanhol e as matrículas em línguas indígenas na América Latina. Para mim, descolonizar a área como um todo começa, antes de tudo, com incrementações. Começa com a integração, nas grades curriculares, de vozes ucranianas e bielorrussas, assumindo perspectivas russófonas ou não russófonas. Da mesma maneira, cabe a nós questionar a missão imperial da Rússia quando formos apresentar a sua cultura aos estudantes, tanto inserindo perspectivas, que normalmente são apagadas, quanto explicando a história do colonialismo russo.

Ela conclui dizendo que não há necessidade de a academia ser um jogo de tudo ou nada:


Agora vou ser impertinente, mas sincera: ofereço para todos os meus colegas, como um recurso, o nosso curso on-line de ucraniano na Universidade do Kansas. Às vezes, estudantes avançados de russo são os melhores candidatos para esse tipo de curso. Não se trata de uma proposta de “um ou outro”, e não há necessidade de ser territorial nesses assuntos. Eu não creio que os estudos russos vão acabar de vez se nós abrirmos espaço, em nossas unidades, para os estudos ucranianos ou se olharmos para o Leste/Centro Europeu e a Eurásia de forma mais holística, como uma região composta por muitas identidades e culturas, todas ricas e dignas de serem estudadas.

GLOBAL VOICES




 

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

75 anos após a bomba de Hiroshima, a ameaça nuclear ressurge em um novo tabuleiro geopolítico


Manifestantes com máscaras de Trump e Putin posam sobre duas bombas falsas durante protesto contra armas atômicas em Berlim, na Alemanha.
Manifestantes com máscaras de Trump e Putin posam sobre duas bombas falsas durante protesto contra armas atômicas em Berlim, na Alemanha.FABIAN SOMMER 

75 anos após a bomba de Hiroshima, a ameaça nuclear ressurge em um novo tabuleiro geopolítico

Enquanto Trump e Putin desmantelam a rede de tratados de controle de armas nucleares, o surgimento de novas potências como a China desenha um cenário mais instável para o planeta


PABLO GUIMÓN
|MARÍA R. SAHUQUILLO

Washington / Moscou - 06 AGO 2020 - 07:54 COT

Há exatamente 75 anos os Estados Unidos se tornaram o primeiro e único país do mundo a atacar um inimigo com uma arma nuclear, com o bombardeio da cidade japonesa de Hiroshima, durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje, o tabuleiro geopolítico mudou significativamente, mas permanecem as tensões e incertezas sobre como garantir que nenhum país volte a usar novamente as armas atômicas. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirma que ele e seu colega russo, Vladimir Putin, trabalham juntos para reduzir a ameaça de uma guerra nuclear, mas a verdade é que ambos passaram pelo menos os últimos três anos e meio desenvolvendo armas nucleares e destruindo tratados destinados ao seu controle. Embora a o governo norte-americano reconheça que considerou retomar os testes nucleares interrompidos há quase três décadas, ninguém descarta uma nova corrida armamentista com a Rússia e, agora, com a China.

Passo a passo, o sistema de segurança criado no período final da Guerra Fria por Washington e Moscou está se desintegrando. O fim, no ano passado, do histórico Tratado de Controle de Armas Nucleares de Alcance Intermediário (INF), assinado em 1987 por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, foi o início de uma nova era. Hoje, Washington e Moscou não limitam mais o armazenamento, teste ou implantação de mísseis terrestres de alcance intermediário ( entre 500 e 5,5 mil quilômetros).

Washington também decidiu abandonar o Tratado de Céus Abertos, que permitia voos de inspeção para fomentar a confiança entre os países. E o presidente Trump ainda indicou que não renovará o Novo START, o último grande tratado de controle de armas nucleares entre Washington e Moscou, a menos que a China também aceite se vincular às limitações impostas pelo acordo. Sem ele, não haverá tratado algum que controle os dois maiores arsenais nucleares do mundo. O acordo expira em fevereiro, pouco depois da posse do ganhador das presidenciais americanas marcadas para novembro.

A cidade japonesa de Hiroshima após o ataque nuclear de 6 de agosto de 1945.
A cidade japonesa de Hiroshima após o ataque nuclear de 6 de agosto de 1945. PRISMA BY DUKAS / UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY


Trump fez da assinatura de um acordo nuclear com a Rússia e a China uma prioridade, mas Pequim até agora rejeitou os convites para participar do debate. A responsabilidade dos Estados Unidos de liderar o controle e a eliminação progressiva de armas nucleares, como primeiro e único país a tê-las usado, baseou a política nuclear de Washington desde o início. Durante mais de 60 anos, presidentes de ambos os partidos, de Eisenhower a Obama, tentaram reduzir o arsenal de armas nucleares e as possibilidades de serem utilizadas. Mas o presidente Trump, como em tantas outras áreas, rejeitou os vínculos históricos. Apenas dois meses atrás, Marshall Billingslea, o principal negociador norte-americano para acordos de controle armamentista, confirmou que a Administração estudou a realização do primeiro teste nuclear desde 1992. “A possibilidade de a Administração Trump retomar os testes de armas nucleares é tão temerária quanto perigosa”, disse Joe Biden, adversário democrata de Trump.

A evaporação destes tratados, combinada com o surgimento de novas potências nucleares como a China, desenha um cenário mais instável e com menos limites, no qual as novas armas tecnológicas desempenham um papel destacado. Robôs assassinos, mísseis hipersônicos e armas cibernéticas se juntam à corrida, como evidenciou o preciso ataque norte-americano com um drone que matou o general iraniano Qasem Soleimani em Bagdá nos primeiros dias deste ano.

Putin já anunciou novas armas hipersônicas, que viajam a pelo menos cinco vezes a velocidade do som, muito mais difíceis de rastrear e interceptar. Moscou garante que seu sistema estratégico Avangard, que descreve como uma de suas “armas invencíveis” e que é composto por um foguete balístico intercontinental equipado com ogivas que podem ser manobradas em planos verticais e horizontais e mudar de rumo “já está em serviço”. A Rússia afirma que pode voar em 15 minutos para o território norte-americano. Além disso, garante que já estão quase prontos seus mísseis de cruzeiro hipersônicos antitanque Zirkon, que podem ser implantados em navios de superfície, atualmente na fase final de testes, de acordo com o Ministério da Defesa. Assim como seu drone nuclear submarino Poseidon, projetado para ser transportado por submarinos, embora especialistas ocidentais tenham questionado o quão avançado está o desenvolvimento desse tipo de armas.

Também os EUA, China, Índia, Japão e outros países estão desenvolvendo mísseis hipersônicos. E a corrida armamentista tem um novo campo de batalha: o espaço, onde as duas históricas potências se acusam mutuamente de testar armas.



quinta-feira, 11 de julho de 2019

Obsessão russa por literatura está diminuindo





Obsessão russa 

por literatura 

está diminuindo

Ainda assim, 59% dos russos leem livros todos os dias - a segunda posição no ranking mundial, atrás apenas da China. Foi na era soviética russos se alfabetizaram em massa e hábito da leitura se difundiu, mas, conquanto os leitores quisessem abrir novos horizontes com literatura que não era publicada na URSS, após sua queda e abertura do mercado a leitura vem diminuindo.

Um estudo global sobre a leitura de livros realizado pela empresa GfK em 2017 mostra que  59% dos russos leem todos os dias - ou pelo menos uma vez por semana. Assim, o país ocupa segundo lugar no ranking mundial da leitura de livros, atrás apenas da China.
Ainda pode gerar dúvidas o fato de que o estudo é baseado apenas nas respostas das pessoas. Mas, se estiver correto, ele dificilmente surpreenderá alguém na Rússia: o país, historicamente, sempre foi “literaturacêntrico”. Na Rússia, como escreveu o poeta Evguêni Ievtuchenko, “um poeta é mais do que um poeta”. E o mesmo é verdadeiro sobre quem escreve em prosa.
Tomemos Lev Tolstói, por exemplo. Nos anos 1900, ele era tão grande quanto os Beatles na década de 1960 ou a Beyoncé hoje. Quiçá ele tenha sido ainda mais popular que o próprio imperador!

Depois que o escritor passou a bater de frente com a Igreja Ortodoxa e o jovem tsar Nikolai 2° em 1901, exigindo igualdade e direitos humanos para os camponeses, o editor Aleksêi Suvôrin escreveu: “Temos dois tsares: Nikolai 2° e Lev Tolstói. Quem é mais forte? Nikolai 2° não pode fazer nada sobre Tolstói, não pode abalar seu trono - mas Tolstói, sim, balança o trono da dinastia do outro”.
É claro que o caso de Tolstói foi muito peculiar: desde a década de 1880, ele virou algo mais próximo de filósofo e figura pública do que escritor de ficção. Mas outros gigantes da literatura do século 19 e 20 - como Fiódor Dostoiévski, Ivan Turguênev, Antôn Tchékhov, Maksím Górki e outros - também tiveram impacto sobre a opinião pública russa com seus romances humanísticos, o que certamente eram mais influente do que qualquer ministro tsarista e suas ordens. Foi aí que se iniciou a obsessão da Rússia pela literatura.
Literatura no lugar de política

“Entre os séculos 18 e 20, a vida pública na Rússia estava toda voltada à literatura”, explica Lev Oborin, poeta e crítico literário. Enquanto, no Ocidente, os monarcas cediam aos poucos o poder aos sistemas parlamentares, o tsar gozava de monopólio sobre todas as formas de poder. Por isso, o único lugar onde criticar os poderes constituídos estava nas páginas dos romances.
"Devido à ausência de políticas reais, os escritores se tornaram defensores da liberdade e iluministas", escreve Oborin. Eles não tinham outra escolha, senão escrever sobre o estado de espírito dos russos comuns, os males da servidão, a estranha natureza da alma russa que balançava entre o Ocidente e o Oriente etc. Para tanto, usavam metáforas e alegorias para escapar à censura.
Infelizmente, porém, a grande maioria dos russos não sabia nada sobre a luta intelectual de seus escritores – já que não sabia ler. De acordo com um censo nacional do final do século 19 e início do século 20, pelo menos 60% dos russos adultos ainda eram analfabetos em 1913. Somente o governo soviético foi capaz de educar seu povo e fazê-lo ler os grandes escritores da era imperial.
Os soviéticos abraçam os clássicos

Apesar de brutal ao destruir seus rivais políticos (e depois, seus próprios aliados), foram os bolcheviques que melhoraram o nível de educação russa: em 1939, 87% dos cidadãos soviéticos sabiam ler e escrever, e o sempre controlador Estado fez seu melhor para fornecer ao povo toda a literatura de que ele precisava - contanto que ela estivesse de acordo com os ideais marxistas.
Foi durante o período soviético que se formou o cânone literário do programa escolar. Assim, o que os russos leem hoje na escola é uma leve variação do que os soviéticos instituíram: Aleksandr Púchkin, Lev Tolstói, Antôn Tchékhov etc.
"Esses escritores eram todos dissidentes do regime tsarista... A ideologia soviética se beneficiava de tomar como seus aliados os chamados 'democratas revolucionários'... Apesar de nem todos terem sido socialistas", explica Lev Oborin.
O desonesto império das publicações
É claro que o Estado decidia o que publicar. Clássicos russos? Obviamente! Uma prosa estrangeira não provocativa demais (Hemingway, Remarque, Salinger)? Tudo bem! Mas não se esqueça das obras completas de Lênin, Marx e Engels. E, por exemplo, memórias de Leoníd Brêjnev sobre sua experiência na Segunda Guerra Mundial – que ganharam 20 milhões de cópias em 1978.
A URSS não poupava papel em tiragens: na década de 1980, vendiam-se bilhões de cópias. "Havia quase 50 bilhões de cópias em bibliotecas pessoais [por toda a URSS]", escreve o historiador Aleksandr Govorov em seu “A História do Livro”. Esta foi a base para a URSS ser chamada "a nação que mais lê" - uma fórmula que ainda é muito popular e surge toda vez que alguém se regozija com a nostalgia dos grandes tempos soviéticos.
O único problema era a total ausência de escolha. “As tiragens aumentavam, mas a demanda pública continuava insatisfeita”, explica Govorov. As pessoas queriam literatura de ficção e entretenimento, mas o Estado continuava fornecendo livros marxistas, espalhados aos montes em livrarias sem vender.
"Eles publicavam livros suficientes em termos de quantidade, mas o que publicavam ditando ideologia e economia não refletia o que os clientes queriam ler", diz Govorov.
Atualmente

Durante a Perestroika, no final da década de 1980, que foi seguida pela queda da URSS, os leitores finalmente tiveram sua chance. É uma história longa e bastante peculiar a de como o mercado de livros emergiu e se desenvolveu na Rússia contemporânea. Mas, mesmo que os russos tenham sido a nação que mais lia, eles já não o são mais.
Segundo a pesquisa de 2017 da GfK supramencionada, a Rússia estaria em segundo lugar mundial no ranking da leitura de livros. Mas os profissionais da indústria editorial russa duvidam de uma classificação tão otimista.
"Acompanhamos as vendas no mercado de livros e, atualmente, elas não crescem na Rússia", diz a editora-chefe da revista Indústria do Livro, Elena Solovióva.
Realmente, as tiragens vêm caindo paulatinamente nos últimos 10 anos: de 760 bilhões de cópias impressas, em 2008, para 432 bilhões, em 2018. Mas a questão é muito complexa para a pesquisa devido ao aumento das vendas de livros eletrônicos e ao mercado da pirataria.
De qualquer forma, o interesse atual da Rússia em relação à literatura é estável, mas as perspectivas futuras não são encorajadoras - não há nenhum Lev Tolstói no horizonte e os anos de impressão megalomaníaca soviética terminaram.
Hoje, os russos preferem outros tipos de entretenimento: o esforço e resistência da literatura têm que competir com o Netflix, o YouTube e zilhões de páginas da Web. Assim, as chances de vitória não são muito boas. Mas a  tendência é global.
“Em todo o mundo, o interesse pela leitura está em declínio, e a Rússia, infelizmente, segue a mesma tendência. Mas, nos últimos anos, ficou absolutamente claro: a leitura tem um público estável e central que nunca trocará o livro por outros tipos de entretenimento”, afirma a crítica literária Galina Iuzefovitch.
Assim, a Rússia pode estar lendo menos do que antes. Mas é muito pouco provável que ela desista para sempre de fazê-lo


quinta-feira, 4 de julho de 2019

Nádia Rucheva / A incrível artista soviética que morreu aos 17 anos deixando milhares de obras


Retrato de Nádia Rucheva.