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quarta-feira, 23 de março de 2022

Lu Xun / Livro de autor ícone da literatura chinesa é traduzido para o português pela primeira vez

Lu Xun

Livro de autor ícone da literatura chinesa é traduzido para o português pela primeira vez

Lu Xun, pai da literatura moderna chinesa, agora pode ser lido no Brasil, em edição bilíngue


6 AGO 2021

Editora da Unicamp lança o primeiro título da nova série Clássicos da Literatura Chinesa. Trata-se da coletânea de memórias de Lu Xun, Flores matinais colhidas ao entardecer. Lu Xun é um ícone do modernismo chinês e pioneiro no uso do chinês vernacular, uma forma de chinês escrito que incorpora as variedades linguísticas de todo o país. Trata-se de uma oposição ao chinês clássico, cuja escrita é padronizada e adotada na China imperial até o início do século XX.

Para apresentar um pouco da obra, a Editora da Unicamp entrevistou a tradutora dos textos, Peggy Yu, mestre em linguística aplicada pela Unicamp, e um dos diretores do Instituto Confúcio, Bruno De Conti. A diretora da Editora, Edwiges Morato, também responde sobre a importância da parceria com o Instituto e sobre a coletânea deste clássico da prosa moderna chinesa.

Editora da Unicamp – Qual a ideia ao lançar a série Clássicos da Literatura Chinesa e qual a expectativa para a série?

Edwiges Morato: Com este belo volume de Flores matinais colhidas ao entardecer, de Lu Xun, um clássico da prosa moderna chinesa, a Editora da Unicamp abre uma parceria com o Instituto Confúcio sob a forma de um projeto editorial caracterizado como série, que tem também uma bela e delicada identidade visual. Esta parceria com a Editora da Unicamp é um dos braços culturais de um acordo de cooperação, celebrado em 2014, que abrange várias áreas do conhecimento – a tecnologia, a economia e a cultura.

A série Clássicos da Literatura Chinesa inicia-se com Flores matinais, obra à qual devem se seguir outras publicações, de diferentes autores e gêneros literários. O objetivo é fornecer ao mercado editorial brasileiro, em edição bilíngue, obras clássicas da literatura chinesa. A coletânea constitui-se como um importante instrumento didático para estudantes lusófonos de mandarim, bem como para chineses que estudam a língua portuguesa ou se interessam por ela. Vale também notar que os livros contam com prefácios críticos, que salientam e contextualizam aspectos importantes da história e da cultura da China.

A ideia é que, sendo uma coletânea bilíngue, possamos não apenas estimular a aproximação do Brasil com a língua e a cultura chinesas, como também pavimentar, pela linguagem literária, um caminho de interesse mútuo entre duas culturas. Isso é parte de uma interação envolvente entre dois povos, entre dois países. Estimular o contato qualificado entre distintas experiências humanas, entre distintas formas de vida, é uma das características da cultura do livro e uma das funções principais de uma editora universitária, como a Editora da Unicamp.

Editora da Unicamp: Como foi o processo de tradução de Lu Xun, que é um autor tão proeminente na literatura moderna chinesa? Como tradutora, o que sentiu ao trazer sua coletânea de memórias ao português pela primeira vez?

Peggy Yu: Para responder à pergunta, acredito que posso dividir o processo tradutório em três etapas: compreensão, tradução e apreciação. Hoje, refletindo sobre a trajetória de tradução, imediatamente vem à minha cabeça um ditado chinês com o qual me comparo: “um bezerro que não tem medo do tigre”. Ou seja, eu fui inocente e também destemida ao sugerir a publicação de Flores matinais colhidas ao entardecer e ao traduzir o livro. Recordo-me que a primeira tarefa que me propus a fazer foi ler os dez capítulos que compõem o livro de uma só vez, para me ambientar com o espírito de Lu Xun. Ele envolve sua maneira peculiar de dizer as coisas, seu estilo ímpar de abordar determinados assuntos e seu olhar crítico e cínico para observar o mundo. Com medo de não captar os sentidos implícitos dessa obra de Lu Xun, recorri a estudos bibliográficos. Essa etapa de compreensão me fez refletir sobre a condição do tradutor como bom leitor: aquele que disseca criticamente um texto e mergulha nas ideias abordadas, mais, talvez, do que o próprio autor. Claro, sempre mantive uma distância saudável, para não correr o risco de superinterpretar o texto.

Depois disso, entrei na tradução propriamente dita. Mas a fase anterior não deixou de ser uma tradução, porém, interlingual. Foi um grande desafio traduzir um autor expoente, considerado o “pai da literatura moderna chinesa”, que, naturalmente, porta um valor literário significativo. Confesso que o processo foi bastante desafiador e sofrido, no bom sentido. Sofrido (novamente, no bom sentido), pela dificuldade em transmitir a mensagem crítica de Lu Xun e seu estilo para a língua alvo, no caso, o português. A professora doutora Márcia Schmaltz, grande pesquisadora, tradutora e intérprete do chinês para o português, tem um texto chamado “Lu Xun e a anatomia de um povo”. Nele, falava que “normalizar” o estilo do autor para transpô-lo ao português é um desafio.

Como tradutora, senti que o desafio de decifrar as “intenções” do autor, somado às dificuldades encontradas na tradução, culminaram em responsabilidade. Eu não estava “só” traduzindo as memórias de uma pessoa, mas transmitindo, por meio da tradução, uma crítica social que pode levar o povo brasileiro a entender como a China se transformou no que ela é hoje. Assim, cada escolha e decisão que eu tomava carregava não só o conteúdo textual em si, mas uma pista para acessar uma China que estava entrando na modernidade. Por isso, senti muita responsabilidade!

No fim, o que eu chamei de “apreciação” foi minha leitura como leitora de língua portuguesa. Nessa etapa, li as traduções que fiz tentando sentir os efeitos das palavras – críticas, irônicas e cínicas – que senti ao ler o livro no idioma original. Foi um momento de ajustes da tradução, durante o qual me perguntava: “se você fosse brasileira, você entenderia?”; “captaria a ironia?” etc. Era como se eu ignorasse minha identidade chinesa e questionasse a tradução para poder melhorá-la! E, claro, não posso deixar de agradecer as preparadoras e revisoras que melhoraram muito a tradução!

Editora da Unicamp: Houve capítulos ou trechos cujas traduções foram mais desafiadoras? Quais e por quê?

Peggy Yu: Sim! Principalmente, quando a narrativa trouxe expressões culturalmente carregadas ou que fizeram alusões muito específicas à cultura chinesa. Esses desafios foram mais evidentes nos capítulos 4 e 5, respectivamente, “A procissão dos cinco deuses temerosos” e “Wuchang ou A-vida-é-impermanente”, porque, nesses capítulos, Lu Xun aborda cenários que são tipicamente chineses, com descrições culturalmente carregadas. No capítulo 4, por exemplo, o autor descreve, a partir do seu olhar quando era bem jovem, os deuses da procissão folclórica chinesa, que envolve deuses de rostos coloridos, o Rei Dragão, que fazia chover, os “monstros” do mar, a Virgem Mei, entre outras figuras. As imagens escritas são numerosas e vívidas.

Fiquei conjecturando, durante a tradução, se o povo brasileiro, acostumado com o catolicismo, que é monoteísta, entenderia o entusiasmo de Lu Xun criança diante da procissão dos deuses. E também, não posso deixar de comentar o fato de o pai do menino Lu Xun ter pedido ao filho para “memorizar” e “recitar” um texto clássico se quisesse ir à procissão. Acredito que não faça parte da educação brasileira pedir para crianças “decorarem” os textos clássicos (ou estou enganada?), e, por isso, durante o processo tradutório desse capítulo, tomei especial atenção para que a narrativa não ficasse “sem pé nem cabeça”.

O capítulo 5, também envolve seres fantásticos tipicamente chineses, como Rei dos Mortos, os rostos pintados, os Cabeça-de-boi, etc. Inicialmente, quis associar a imagem do protagonista, Wuchang – A-vida-é-impermanente –, à do Ceifador ou da Morte. Mas logo desisti, porque ia ser uma tradução domesticadora demais. Tanto no caso acima quanto no anterior, tive que decidir se transcreveria foneticamente o nome dessas criaturas fantasmagóricas ou se traduziria literalmente os termos. No fim, decidi fazer a tradução literal, para o texto em português não perder a fluência.

Outras dificuldades, além desses desafios advindos de diferenças culturais, eram os jogos de palavras e as ironias usados pelo autor. Há jogos de palavras no texto original que advém do fato de a língua chinesa ser tonal e apresentar termos homófonos com significados diferentes. Em casos assim, não consegui escapar da nota de rodapé, como com o termo “yangguizi”, no capítulo 7, “A doença do meu pai”.

Por fim, não posso deixar de falar sobre a dificuldade em traduzir trechos que eram respostas aos ataques que Lu Xun sofria na época de seus colegas literatos. Certa capacidade de intertextualidade foi necessária para primeiro compreender e identificar trechos que eram “respostas” e reescrevê-los de forma que não ficassem muito deslocados do contexto da narrativa. Lógico que em alguns casos, as notas de rodapé eram recorridas para explicar o contexto, um recurso que também existe na versão em chinês.

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Editora da Unicamp: Lu Xun foi pioneiro no uso do chinês vernacular, forma escrita que traz as variedades da língua usadas em toda a China à sua literatura. Como você diria que isso influência o estilo narrativo desse autor?

Peggy Yu: Ainda que a linguagem utilizada por Lu Xun seja bastante próxima do chinês moderno, os recursos de linguagens literária e tradicional que usou deixam as narrativas um tanto obscuras em algumas passagens. Por isso, além de seu estilo cínico e irônico, os contos não eram fáceis de ser entendidos sem um olhar apurado e atento. Assim, precisei pesquisar e me apoiar em artigos que discorrem sobre essas narrativas, para não deixar escapar as mensagens nas entrelinhas.

Para transpor essa linguagem muito específica ao português, refleti muito sobre o tipo de registro a que eu deveria recorrer para compor as narrativas traduzidas. Pensei nos textos de Gil Vicente, que introduziu elementos populares na sua escrita. Mas era um português renascentista! O chinês pré-moderno de Lu Xun certamente não era obscuro assim (se é que estou fazendo uma comparação correta).

A reflexão me levou também a pensar no estilo de Machado de Assis, irônico e pessimista. Lembro-me de ter relido alguns contos machadianos para saber se esse tipo de registro cabia na minha tradução. A experiência foi ótima, porque de certa maneira, encontrei algum paralelismo nos estilos dos dois autores. No fim, como diria a professora Schmaltz, “normalizei” esse tipo de linguagem no português, tomando cuidado com a ordem de construção das orações, com o emprego das aspas e com a escolha das palavras – simples, mas não óbvias o suficiente, para que permanecesse certa ironia.

Editora da Unicamp: O livro Flores matinais colhidas ao entardecer é o primeiro da nova série Clássicos da Literatura Chinesa, fruto da parceria entre o Instituto Confúcio e a Editora da Unicamp. Qual o objetivo dessa parceria?

Bruno De Conti: Eu diria que a parceria cumpre três funções importantes. O objetivo principal é contribuir para a redução de uma lacuna na formação da maior parte da população brasileira, que diz respeito a um profundo desconhecimento sobre a cultura chinesa. Essa ideia de traduzir obras clássicas chinesas foi gestada durante uma das visitas de professores da Unicamp à China, organizadas anualmente pelo Instituto Confúcio com o apoio da Diretoria Executiva de Relações Internacionais (DERI) da Unicamp.

Em 2018, nossa comitiva contou com o então reitor da Unicamp, professor doutor Marcelo Knobel. Em meio às atividades que fizemos por lá, o professor Marcelo ficou chocado ao perceber que não conhecíamos nada sobre algumas referências culturais que são fundamentais para os chineses. Diante disso, ele sugeriu a mim e à professora doutora Márcia Abreu que nos acompanhava na comitiva e que, à ocasião, dirigia a Editora da Unicamp – que pensássemos sobre a possibilidade de realizar traduções de clássicos chineses para o português.

Foi a partir daí que as conversas tiveram início e, logo depois, o trabalho começou a ser desenvolvido, com um importante apoio dos funcionários da Editora da Unicamp e do Instituto Confúcio. Em 2021, a professora Edwiges Morato assumiu a direção da Editora e acolheu o projeto da melhor forma possível, não apenas o apoiando, mas institucionalizando essa parceria por meio da criação da série Clássicos da Literatura Chinesa, que temos agora o prazer de lançar. Ou seja, foi um projeto abraçado por muita gente que partilha da percepção de ser necessário conhecermos mais sobre a China e sua cultura no Brasil.

De fato, por razões históricas, mas também políticas e econômicas, sempre tivemos um olhar apurado sobre a produção cultural dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, mas com uma negligência tremenda em relação ao restante do mundo. E essa negligência não é fruto do acaso, mas, construída. Pior do que uma mera miopia em relação às áreas mais distantes do globo, trata-se de uma subordinação acrítica à visão do Ocidente, que ao longo da história atribuiu a si mesmo o status de “mundo civilizado”, criador de cultura e de ciência, em oposição ao Oriente exótico – quando não bárbaro. Essa visão preconceituosa em relação ao Oriente em geral, soma-se, no caso da China, a um elemento que gerou (e gera) turbulências nesse contato intercultural: o fato de ser uma nação que passou por uma revolução socialista e que, até hoje, define-se como um país socialista. Isso, infelizmente, contribui para que, por uma postura maniqueísta – também característica do Ocidente – sejam reforçados os estereótipos em torno da China.

O resultado é um desconhecimento tremendo em relação à China e à cultura chinesa. Em todos os âmbitos. Não sabemos quase nada sobre música chinesa, cinema chinês, artes plásticas e literatura chinesa. Aprendi com meu amigo Antonio Florentino Neto, grande especialista da cultura e do pensamento tradicional chinês, que o mundo ocidental simplesmente rejeitou que o pensamento chinês pudesse ser enquadrado como filosófico. Vejam aonde chegam os preconceitos! Para contornar esse problema, criaram a categoria da “sinologia”, colocando lá o que não queriam rotular como uma filosofia chinesa.

Felizmente, há um movimento que procura enfrentar essa cegueira cultural, não apenas em relação à China, mas a países e povos do chamado “Sul global” – que inclui, e de forma muito importante, os nossos próprios povos nativos da América. Assim, nesse diálogo entre Reitoria, Editora da Unicamp e Instituto Confúcio, percebemos a pertinência de oferecer uma singela contribuição a esse processo, apresentando ao público brasileiro – ou lusófono – a tradução de obras clássicas da literatura chinesa. Então, o primeiro objetivo da série é esse: dar ao público brasileiro acesso a obras importantes da literatura chinesa. De forma associada, há um segundo objetivo, também muito importante. Sobretudo em função da ascensão da China como grande potência global econômica e política, cresce o interesse da população brasileira em estudar mandarim.

Aqui, no Instituto Confúcio da Unicamp, temos alunos de ensino médio (Cotuca e Cotil) e de graduação e pós-graduação dos mais distintos cursos (letras, economia, engenharias, medicina, etc.), além de professores estudando mandarim. E a série que estamos lançando publica livros bilíngues, com os textos originais, em mandarim, e suas versões em português. Trata-se, assim, de um instrumento didático extremamente útil para os alunos de mandarim da Unicamp e do Brasil todo.

Reciprocamente, o material poderá ser usado pelos estudantes de português lá na China. Na universidade parceira no Instituto Confúcio, a Beijing Jiaotong (BJTU), há cursos de português e algumas edições de cada livro que for lançado serão enviadas a eles. Temos também um contato próximo com a Universidade de Macau, já que, nessa ex-colônia portuguesa, cada vez menos as famílias têm usado o português no dia-a-dia, e, por isso há políticas públicas para o resgate do estudo do português, até mesmo para que a região seja usada como entreposto de comunicação das relações entre China e Brasil, além de todo o mundo lusófono. Dessa maneira, a série que estamos lançando será lida pelos interessados na literatura chinesa, mas será também um instrumento didático muito importante para alunos de mandarim ou português de diversas partes do globo.

Por fim, os livros que estamos publicando terão sempre um prefácio acadêmico, contextualizando a obra. Em Flores matinais colhidas ao entardecer, por exemplo, o Prefácio é de Fan Xing, da Universidade de Pequim, grande conhecedora das literaturas chinesa e brasileira. Em seu interessante texto, elaborado especialmente para nossa edição, ela apresenta Lu Xun ao público brasileiro por meio de referências a Graciliano Ramos. Assim, o terceiro objetivo da série é fornecer um rico material bibliográfico para pesquisas acadêmicas sobre literatura chinesa ou sobre os autores e as obras que estamos traduzindo.

Editora da Unicamp: Por que a coletânea de memórias de Lu Xun foi escolhida como a primeira obra a integrar a série?

Bruno De Conti: A escolha foi feita a partir de um diálogo entre a Editora da Unicamp, o Instituto Confúcio e a Peggy Yu, grande conhecedora da língua e da cultura chinesas, que fez o belo trabalho de tradução da obra. Nosso intuito era escolher um(a) autor(a) clássico(a) da literatura chinesa, mas pouco conhecido(a) no Brasil – justamente para dar ao público brasileiro a oportunidade de conhecê-lo(a). Há alguns anos, em uma visita de trabalho a Xangai – onde Lu Xun passou parte da vida –, li referências sobre o escritor, que indicavam-no como um dos autores de maior importância para a literatura chinesa moderna.

Não sou um especialista em literatura – longe disso! –, mas ler é um dos meus maiores prazeres. Assim, fiquei atônito por ainda não conhecer Lu Xun e, ao mesmo tempo, muito curioso para ler seus livros. Lá mesmo, comprei um deles, em inglês, e gostei muito, sobretudo do seu olhar crítico – e de uma divertida ironia – sobre a sociedade chinesa de seu tempo (as primeiras décadas do século XX). Quando estávamos discutindo sobre a obra a ser traduzida, sugeri, portanto, o Lu Xun. Aí, fizemos uma pesquisa para ver os títulos já traduzidos e foi a Peggy quem sugeriu Flores matinais colhidas ao entardecer, ainda sem tradução para português – nem aqui, nem em Portugal. Acolhemos de imediato a sugestão e ficamos todos muito felizes com o resultado.

Editora da Unicamp: Especialmente em tempos em que a diplomacia entre o Brasil e a China é comprometida pelos comentários irresponsáveis e grosseiros do ex-ministro Abraham Weintraub, de Eduardo Bolsonaro e do próprio presidente Bolsonaro, como a troca cultural entre nossos países pode reforçar a relação amistosa entre os povos chinês e brasileiro?

Bruno De Conti: Eu diria que essa troca cultural é absolutamente crucial para reduzir os efeitos negativos de atitudes tão deploráveis quanto as dessas figuras que, lamentavelmente, alcançaram uma posição de importância no cenário nacional – o que facilita que essas barbaridades ecoem. Há um conceito formulado pelo sociólogo italiano Pietro Basso que se aplica como uma luva ao que estamos hoje verificando no Brasil, que é o de “racismo de Estado”. Um racismo construído por cima e que, infelizmente, tem consequências pesadas para os chineses que vivem no Brasil e para as relações entre os dois países.

Em relação a esses sujeitos que você mencionou na pergunta, não vejo solução, pois suas declarações são fruto de ignorância, mas não só. São também fruto de má fé. De uma estratégia de governo. O atual governo tenta manter popularidade por meio de um conjunto de atitudes nefastas, dentre as quais, essa de difundir o racismo no país. Mas, em relação à grande maioria da população brasileira, tenho convicção de que um maior conhecimento da China e da cultura chinesa pode ajudar muito na redução dos mal-entendidos; na consolidação dessa relação amistosa à qual você faz referência.

Não tenho a menor dúvida de que o diálogo intercultural aproxima os povos. A globalização traz um conjunto de problemas para o mundo, sobretudo para os países periféricos, como o Brasil. Mas é inegável que há também aspectos positivos. E um dos principais é justamente a possibilidade que hoje temos – mais do que em qualquer outro momento da história – de conhecer outras culturas e de aprender com elas. Infelizmente, as relações de poder, que discuti há pouco, criam obstáculos a esse processo, mas é justamente contra esses obstáculos que devemos lutar.

A China tem uma cultura milenar. Como o Brasil, é um país continental e muito diverso dos pontos de vista étnico, religioso e, claro, cultural. Tem, portanto, expressões culturais e artísticas das mais variadas. E belíssimas! No contato com a cultura chinesa, é evidente que cada um de nós terá suas preferências, pode ser que alguns não gostem de uma coisa ou de outra, como acontece com as manifestações culturais de qualquer outro país. Mas é preciso conhecê-las. Não é possível que, em pleno século XXI e com todas as facilidades tecnológicas que nos rodeiam, que ainda sejamos reféns de um macarthismo da pior espécie; de um obscurantismo construído. É preciso lutar contra essa hierarquia das culturas.

Voltando agora à pergunta, vejo que o povo brasileiro tem muito interesse na cultura chinesa. E tenho convicção de que um conhecimento maior dessa cultura – conjugada, claro, com um conhecimento maior da cultura brasileira pelos chineses – fortalecerá a amizade entre os povos. Para não gerar nenhum mal-entendido, é preciso apenas destacar que essa relação amistosa entre brasileiros e chineses tende a ser a regra. As atitudes execráveis de membros do atual governo é que são a exceção. Mas, justamente, um conhecimento maior da cultura chinesa e do povo chinês por parte da população brasileira a tornará mais imune às tentativas do atual governo de criar essa cisma entre os povos.


JOURNAL DA UNICAMP




quinta-feira, 6 de agosto de 2020

75 anos após a bomba de Hiroshima, a ameaça nuclear ressurge em um novo tabuleiro geopolítico


Manifestantes com máscaras de Trump e Putin posam sobre duas bombas falsas durante protesto contra armas atômicas em Berlim, na Alemanha.
Manifestantes com máscaras de Trump e Putin posam sobre duas bombas falsas durante protesto contra armas atômicas em Berlim, na Alemanha.FABIAN SOMMER 

75 anos após a bomba de Hiroshima, a ameaça nuclear ressurge em um novo tabuleiro geopolítico

Enquanto Trump e Putin desmantelam a rede de tratados de controle de armas nucleares, o surgimento de novas potências como a China desenha um cenário mais instável para o planeta


PABLO GUIMÓN
|MARÍA R. SAHUQUILLO

Washington / Moscou - 06 AGO 2020 - 07:54 COT

Há exatamente 75 anos os Estados Unidos se tornaram o primeiro e único país do mundo a atacar um inimigo com uma arma nuclear, com o bombardeio da cidade japonesa de Hiroshima, durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje, o tabuleiro geopolítico mudou significativamente, mas permanecem as tensões e incertezas sobre como garantir que nenhum país volte a usar novamente as armas atômicas. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirma que ele e seu colega russo, Vladimir Putin, trabalham juntos para reduzir a ameaça de uma guerra nuclear, mas a verdade é que ambos passaram pelo menos os últimos três anos e meio desenvolvendo armas nucleares e destruindo tratados destinados ao seu controle. Embora a o governo norte-americano reconheça que considerou retomar os testes nucleares interrompidos há quase três décadas, ninguém descarta uma nova corrida armamentista com a Rússia e, agora, com a China.

Passo a passo, o sistema de segurança criado no período final da Guerra Fria por Washington e Moscou está se desintegrando. O fim, no ano passado, do histórico Tratado de Controle de Armas Nucleares de Alcance Intermediário (INF), assinado em 1987 por Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, foi o início de uma nova era. Hoje, Washington e Moscou não limitam mais o armazenamento, teste ou implantação de mísseis terrestres de alcance intermediário ( entre 500 e 5,5 mil quilômetros).

Washington também decidiu abandonar o Tratado de Céus Abertos, que permitia voos de inspeção para fomentar a confiança entre os países. E o presidente Trump ainda indicou que não renovará o Novo START, o último grande tratado de controle de armas nucleares entre Washington e Moscou, a menos que a China também aceite se vincular às limitações impostas pelo acordo. Sem ele, não haverá tratado algum que controle os dois maiores arsenais nucleares do mundo. O acordo expira em fevereiro, pouco depois da posse do ganhador das presidenciais americanas marcadas para novembro.

A cidade japonesa de Hiroshima após o ataque nuclear de 6 de agosto de 1945.
A cidade japonesa de Hiroshima após o ataque nuclear de 6 de agosto de 1945. PRISMA BY DUKAS / UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY


Trump fez da assinatura de um acordo nuclear com a Rússia e a China uma prioridade, mas Pequim até agora rejeitou os convites para participar do debate. A responsabilidade dos Estados Unidos de liderar o controle e a eliminação progressiva de armas nucleares, como primeiro e único país a tê-las usado, baseou a política nuclear de Washington desde o início. Durante mais de 60 anos, presidentes de ambos os partidos, de Eisenhower a Obama, tentaram reduzir o arsenal de armas nucleares e as possibilidades de serem utilizadas. Mas o presidente Trump, como em tantas outras áreas, rejeitou os vínculos históricos. Apenas dois meses atrás, Marshall Billingslea, o principal negociador norte-americano para acordos de controle armamentista, confirmou que a Administração estudou a realização do primeiro teste nuclear desde 1992. “A possibilidade de a Administração Trump retomar os testes de armas nucleares é tão temerária quanto perigosa”, disse Joe Biden, adversário democrata de Trump.

A evaporação destes tratados, combinada com o surgimento de novas potências nucleares como a China, desenha um cenário mais instável e com menos limites, no qual as novas armas tecnológicas desempenham um papel destacado. Robôs assassinos, mísseis hipersônicos e armas cibernéticas se juntam à corrida, como evidenciou o preciso ataque norte-americano com um drone que matou o general iraniano Qasem Soleimani em Bagdá nos primeiros dias deste ano.

Putin já anunciou novas armas hipersônicas, que viajam a pelo menos cinco vezes a velocidade do som, muito mais difíceis de rastrear e interceptar. Moscou garante que seu sistema estratégico Avangard, que descreve como uma de suas “armas invencíveis” e que é composto por um foguete balístico intercontinental equipado com ogivas que podem ser manobradas em planos verticais e horizontais e mudar de rumo “já está em serviço”. A Rússia afirma que pode voar em 15 minutos para o território norte-americano. Além disso, garante que já estão quase prontos seus mísseis de cruzeiro hipersônicos antitanque Zirkon, que podem ser implantados em navios de superfície, atualmente na fase final de testes, de acordo com o Ministério da Defesa. Assim como seu drone nuclear submarino Poseidon, projetado para ser transportado por submarinos, embora especialistas ocidentais tenham questionado o quão avançado está o desenvolvimento desse tipo de armas.

Também os EUA, China, Índia, Japão e outros países estão desenvolvendo mísseis hipersônicos. E a corrida armamentista tem um novo campo de batalha: o espaço, onde as duas históricas potências se acusam mutuamente de testar armas.



sábado, 29 de fevereiro de 2020

Pacientes curados que voltam a dar positivo por coronavírus inquietam médicos


Pacientes curados que voltam a dar positivo por coronavírus inquietam médicos

Wuhan, epicentro da crise, impõe 14 dias de isolamento àqueles que recebem alta



MACARENA VIDAL LIY
Pekín - 28 FEB 2020 - 20:01COT


Um pai e sua filha na cidade de Xuzhou, na província chinesa de Jiangsu, se transformaram nos últimos casos conhecidos até agora de um grupo que não para de aumentar: o de pacientes contaminados pelo novo coronavírus que se recuperam para, poucos dias ou semanas depois, voltar a dar positivo nos testes. Um fenômeno que preocupa os médicos, pois pode fazer a Covid-19, a doença causada pelo vírus, mais difícil de erradicar.



Como publicou a imprensa estatal chinesa, o pai, o primeiro caso confirmado nessa cidade, havia recebido alta do hospital há duas semanas, mas em um novo teste voltou a dar positivo como portador do vírus. Sua filha pequena, que também havia sido declarada curada, teve o mesmo resultado. Os dois voltaram a ser internados.

Dois dias antes, o governo local da prefeitura de Osaka, no Japão, confirmou outro caso semelhante: o de uma guia turística de quarenta anos que havia ficado doente em janeiro e recebido alta no começo de fevereiro. Voltou a mostrar sintomas, como tosse seca e dor no peito, e em 26 de fevereiro deu positivo nos testes. A paciente não havia voltado a trabalhar, permaneceu em sua casa, não manteve contato próximo com ninguém e sempre ao sair havia usado máscara.


Em toda a China foram detectados outros casos de novos positivos entre pessoas declaradas curadas anteriormente. Um estudo elaborado entre pacientes que saíram do hospital na província de Cantão, no sudeste, mostrou que 14% dos casos davam positivo novamente, como informou no terça-feira a revista Caixin.

A preocupação por possíveis reinfecções levou as autoridades de Wuhan, a cidade em que a epidemia se originou, a ordenar que os doentes de Covid-19 que recebam alta do hospital tenham que passar por uma quarentena de catorze dias em um local especialmente habilitado antes de voltar à vida normal.



Os especialistas veem várias possíveis explicações no fato de um infectado que recebeu alta ter uma recaída. Uma possibilidade é que tenha ficado no corpo uma pequena quantidade de vírus, insuficiente para dar positivo nos testes, mas o bastante para se reproduzir e voltar a dar positivo se o organismo não tiver desenvolvido anticorpos em quantidades adequadas para combatê-la. Também é possível que essa falta de anticorpos permita uma segunda infecção de fontes externas.

“É algo que ocorreu em surtos de outras doenças”, lembra a professora de Epidemiologia Estatística Christl Donnelly, do Imperial College London e da Universidade Oxford. No caso da epidemia de ebola na África Ocidental entre 2013 e 2016 ―dá o exemplo―, ocorreram casos em que, quando se repetiam os testes antes de dar a alta definitiva, se registravam recaídas. “Também é possível que aconteça como no caso do herpes zoster, consequência de uma infecção anterior com o vírus da varicela, em que vírus fica latente em alguma parte do corpo”, durante anos.



A questão nesses casos de positivo após a cura, diz Donnelly, é que “não sabemos se esses afetados podem infectar outras pessoas posteriormente. Se acontecer, faria com que os casos aparentemente recuperados pudessem ser uma fonte potencial de infecção, o que seria algo preocupante. Precisamos esperar e ver o que acontece com essas pessoas, e acompanhar atentamente os dados clínicos que surgirem”.

A Comissão Nacional de Saúde da China declarou na sexta-feira que os primeiros exames a esses pacientes demonstraram que não são infecciosos. Outra possibilidade trabalhada é que, pelo menos em alguns casos, os testes para dar alta não tenham sido feitos corretamente. E que tenham sido feitos corretamente e tenham dado falsos negativos: o doutor Li Wenliang, que tentou dar o alerta no começo da crise e que morreu de Covid-19 em 6 de fevereiro, deu negativo várias vezes antes de sua infecção ser confirmada.

Em declarações ao Diário do Povo, o jornal do Partido Comunista da China, o vice-diretor do centro de doenças infecciosas do Hospital da China Ocidental afirmou que inicialmente os médicos tiravam amostras do nariz e da garganta para determinar se um paciente era portador do coronavírus. Outros testes mais recentes encontraram vestígios do patógeno nos pulmões.



No Japão, os critérios para dar alta a um doente de Covid-19 preveem que o paciente dê negativo em um teste efetuado 48 horas depois de que tenha deixado de apresentar sintomas graves, e que o resultado seja o mesmo em um segundo exame doze horas depois.

Na China, os pacientes devem dar negativo nos testes, não ter sintomas e seus pulmões não devem apresentar anormalidades em uma imagem de tomografia computadorizada.




Em uma entrevista coletiva nessa semana, o vice-diretor do Centro para o Controle e Prevenção de doenças em Cantão, Song Tie, afirmou que nenhum dos pacientes infectados pela segunda vez parece ter contaminado as pessoas ao seu redor. “Pelo que entendemos, após alguém ser infectado por esse tipo de vírus, produz anticorpos, e após a produção desses anticorpos, não será contagioso”.

Até agora, dos mais de 78.000 infectados pelo coronavírus na China desde o começo da crise há dois meses, já receberam alta 36.117 doentes, quase a metade.

EL PAÍS




domingo, 25 de março de 2018

Os obscuros negócios do chavismo com a China



O ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez com seu à época homólogo chinês Hu Jintao, no Grande Palácio do Povo em Pequim, em abril de 2009.Ampliar foto
O ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez com seu à época homólogo chinês Hu Jintao, no Grande Palácio do Povo em Pequim, em abril de 2009. EFE
Os obscuros negócios do chavismo com a China

Primo de um ex-ministro da Venezuela escondeu em Andorra 163 milhões de reais pagos por empresas asiáticas


JOSÉ MARÍA IRUJO
JOAQUÍN GIL
Madrid 24 MAR 2018 - 13:14 COT

O empresário Diego Salazar teve um contato de ouro no Governo da Venezuela: seu primo Rafael Ramírez, homem forte do Governo de Hugo Chávez que comandou ao mesmo tempo os ministérios da Energia e Petróleo e a presidência da maior empresa estatal, a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA). Salazar conseguiu contratos milionários de empresas chinesas que executaram obras públicas no país sul-americano enquanto seu parente ocupava cargos institucionais entre 2002-2014.
O empresário recebeu 49,2 milhões de dólares (163 milhões de reais) em comissões até setembro de 2010 por serviços de consultoria e intermediação para que multinacionais asiáticas captassem contratos públicos de infraestrutura do Executivo da Venezuela, de acordo com documentos aos que o EL PAÍS teve acesso.

O primo do ex-ministro Ramírez depositou seus ganhos na Banca Privada d’Andorra (BPA), onde possuía 11 contas entre 2007 e 2014, de acordo com um relatório confidencial da entidade. Andorra, de 78.000 habitantes, permaneceu blindada pelo sigilo bancário até ano passado.
Documento confidencial da Banca Privada d'Andorra (BPA), datado de 24 de setembro de 2010, que detalha a atividade de uma conta do empresário Diego Salazar aberta em nome da sociedade Highland Assets Corporation.ampliar foto
Documento confidencial da Banca Privada d'Andorra (BPA), datado de 24 de setembro de 2010, que detalha a atividade de uma conta do empresário Diego Salazar aberta em nome da sociedade Highland Assets Corporation. EL PAÍS
As comissões de Salazar eram depositadas na BPA, 10% das obras públicas “assinadas e em fase de desenvolvimento”. E escondeu o depósito dessa porcentagem no banco andorrano por gerir uma infraestrutura no valor de 3 bilhões de dólares (10 bilhões de reais).
Entre os clientes de Salazar estava a empresa de engenharia chinesa Sinohydro Corporation Limited, um gigante com 486 projetos em 72 países. O empresário assinou um contrato para intermediar concorrências de cinco obras públicas com essa empresa.
A Sinohydro Corporation Limited participou em duas fases da usina termoelétrica La Cabrera no Estado venezuelano de Aragua. A infraestrutura, inaugurada em 2014, custou 603 milhões de dólares (2 bilhões de reais).
“O caso chinês é cem por cento Diego Salazar. Ele era um lobista dos chineses e a embaixadora da Venezuela no país asiático o ajudava”, confessa um ex-diretor de alto escalão da PDVSA.
A análise dos movimentos de uma das 11 contas de Salazar no banco andorrano confirma que o primo do ex-ministro Ramírez transferiu 7,3 milhões de dólares (24 milhões de reais) ao executivo da PDVSA Francisco Jiménez Villaroel. E que esse também possuía três contas na instituição financeira que movimentaram nove milhões de dólares (30 milhões de reais).
Salazar enviou o dinheiro a Villaroel mediante uma transferência interna, um sistema que dificulta o rastreio dos fundos.
Para justificar sua atividade e ganhos, Salazar entregou à instituição financeira de Andorra um contrato de “consultoria e intermediação” entre sua empresa panamenha Highland Assets Corporation e a empresa de engenharia Sinohydro Corporation Limited.

10% de comissão

O documento confirma que o empresário recebeu uma comissão de 10% “do valor líquido recebido na negociação direta” da infraestrutura.
A inteligência venezuelana prendeu em dezembro o primo do ex-ministro Ramírez
“Fica estipulado um preço do contrato em 1.038.710.000 dólares para uma usina termoelétrica de 772 megawatts e 315.891.109 dólares para uma nova usina (La Cabrera) de 200 megawatts”, tem em mãos a BPA em um relatório sobre o primo do ex-ministro Ramírez.
Salazar está sendo investigado em Andorra por lavagem de dinheiro. Seu processo judicial atinge também uma dezena de empresários, ex-vice-ministros da Venezuela, como Nervis Villalobos e Javier Alvarado (ambos da Energia) e testas-de-ferro de políticos do Executivo de Hugo Chávez (1999-2013).
A organização recebeu supostamente mais de 2 bilhões de euros (ou 8 bilhões de reais) de comissões ilegais em intermediações para que empresas estrangeiras obtivessem decisões legais da PDVSA, segundo revelou o EL PAÍS.
A investigação judicial associa as ações dessa rede com um acordo entre Venezuela e China a partir do qual o país sul-americano recebeu um empréstimo de 20 bilhões de dólares (cerca de 64 milhões de reais) do gigante asiático em troca de petróleo.
Em sua declaração em 2015 diante da magistrada em Andorra que instrui o caso, Salazar afirmou que o Governo da Venezuela não tinha influência nessas licitações. E acrescentou: “Nunca tive nenhuma relação comercial com Ramírez”. O empresário qualificou seu primo de “pessoa de caráter difícil”.
O Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) prendeu Salazar em dezembro passado em Caracas por seu suposto envolvimento na cobrança de comissões em troca de contratos da PDVSA. E, desde então, o empresário permanece na prisão.
Também em dezembro passado, a Promotoria da Venezuela anunciou uma investigação penal contra Ramírez, que até 2017 foi embaixador do país sul-americano na Organização das Nações Unidas (ONU). As autoridades lhe atribuem supostas irregularidades durante a presidência da petroleira estatal.
Este jornal tentou sem sucesso reunir a versão da PDVSA e da Sinohydro Corporation Limited.
Com 49 anos e “técnico em seguros” por formação, Salazar chegou a administrar mais de 70 milhões de euros (280 milhões de reais) por meio de uma rede societária em Andorra. O empresário declarou em 2011 receitas de mais de cinco milhões de dólares (16 milhões de reais), entre fundos pessoais e sua consultoria Inverdt Asesores e Negócios. E anunciou à BPA sua intenção de adquirir uma empresa de resseguros, uma bolsa de ações na Venezuela e um apartamento em Miami.
As autoridades andorrenses intervieram em março de 2015 na entidade escolhida por Salazar para depositar seus fundos, a BPA, por suposto crime de lavagem de dinheiro. Os donos do banco, que chegou a ter 9.000 clientes e um volume de negócios de 8 bilhões de euros (32 bilhões de reais), negam as acusações.

SALAZAR: “OS CHINESES TINHAM O PODER DE DECISÃO”

“Os chineses tinham o poder de decidir que empresas faziam os projetos. Este era o acordo entre os dois Estados. Era a Comissão Nacional de Obras, Desenvolvimento e Reforma da China, um Ministério, o órgão que decidia com que empresas os projetos seriam feitos.”
Diego Salazar se afastou em fevereiro de 2015 com o argumento de ter cometido crime de tráfico de influências em sua declaração perante a juíza da Andorra Canòlic Mingorance. A magistrada realiza inquérito sobre a suposta lavagem de 2 bilhões de euros em comissões ilegais da Petróleos de Venezuela SA (PDVSA) mediante uma engrenagem de evasão que inclui a Banca Privada d’Andorra (BPA).
Mingorance investiga se a suposta trama cometeu, entre 2006 e 2012, os crimes de suborno, tráfico de influências e corrupção.
Salazar reiterou à juíza que prestou os trabalhos sob sigilo. “Minha holding tinha de sair para procurar empresas, contratos de assessoria e ajuda técnica em engenharia. Os chineses procuram engenheiros para obras e oferecem parte dos trabalhadores, apesar de também haver venezuelanos. Minha empresa faz um acompanhamento da obra desde o início até sua finalização. Também tenho a possibilidade de subcontratar outras empresas devido à importância dos projetos quando não posso prestar o serviço.”
A juíza também perguntou a Salazar se pagou um suborno à Polícia da Venezuela. E lhe apresentou uma transcrição telefônica. “Alguns policiais vieram à empresa para investigar supostas movimentações de dinheiro. Estes, além disso, queriam dinheiro em troca. É uma situação comum na Venezuela. Eu não estava presente. A empresa não pagou, não faria isso nunca. Sempre fui contra dar dinheiro. Não quero que minha imagem fique exposta nesses assuntos. Tenho por norma não pagar até que se cansem.”
Na documentação que ofereceu à BPA para abrir suas contas —chegou a ter 11—, Salazar garantiu manter vínculos comerciais com as empresas China Calvic Engineering Co, China Machinery Engineering Corporation, China Camc Engineering Co e Yutong Hongkong Limited, entre outras, segundo um documento deste banco de Andorra.

EL PAÍS