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sábado, 5 de agosto de 2017

Menalton Braff / Caçadores noturnos


Caçadores noturnos


Por Menalton Braff 
Em 13/04/2009 ÀS 02:17 PM


Não sou especialista em sociologia ou psicologia, tampouco em antropologia, mesmo assim ouso afirmar que o prazer que sentimos na captura de um peixe é um prazer atávico. Provavelmente tenhamos herdado tal prazer de nossos ancestrais, que, ao capturarem um peixe, garantiam a subsistência por mais um dia. Quanto prazer! Arrisco mesmo supor que grande parte de nossos prazeres, talvez todos, esteja ligada à sobrevivência. O prazer da reprodução humana, por exemplo, não tem nenhum que o supere.
Tenho muitos amigos pescadores e algumas vezes já fui pescar com eles. Quinze minutos do centro, em pesque-pague com todo conforto: cadeiras de plástico, quiosques de bebidas e guarda-sóis. Chega-se à beira d’água, joga-se o anzol com isca na lagoa e espera-se. Um peixe vai passar pelo anzol, vai pensar que encontrou comida e comido acaba sendo ele. Tudo muito limpo, tudo muito certo. Alguns escolhem o tanque da tilápia, outros preferem o pacu, talvez o piau. Eis a que foram reduzidas as aventuras de nossos avós.
Onde o prazer de romper o mato à beira do rio, observar o movimento da água, sua cor, descobrir o lugar em que se abrigam os capturandos, imaginar o que vai acontecer? Onde a sensação de vitória ao fisgar alguma coisa que não se sabe o que seja, impor-lhe nossas habilidades correndo todos os riscos, mesmo o de cair na água? Não existe mais o prazer da aventura, o gosto de encontrar o inusitado para comprovar nossa rapidez de raciocínio, o acerto de nossas decisões.
Tenho um primo que, quando criança, via-nos sair para a caça. Era um tempo em que caçar passarinhos não causava remorso, um tempo em que ninguém falava em politicamente correto ou incorreto. Isso ainda não fora inventado. Menino de calça curta, a gente não costumava levar por causa dos perigos. Como esse meu primo não era levado junto, mas já se manifestava nele a vocação de caçador, exercitava sua pontaria dentro do viveiro de seu pai.
Conheço pencas de caçadores de viveiro por aí, que tiram a noite para sonhar suas aventuras. Um deles me contou que, em viagem pela Europa, jantou com a Sofia Loren e depois... bem, não sejamos indiscretos.


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Menalton Braff / Agora Inês é morta

Inês de Castro


Agora Inês é morta



POR MENALTON BRAFF 
EM 03/07/2010 ÀS 02:49 PM
Que a expressão significa alguma coisa como tarde demais ou algo parecido, isso toda gente sabe. Um prazo vencido, uma oportunidade perdida, algum acontecimento irreversível, e lá vem alguém e diz: Agora Inês é morta.
O que nem todos sabem é a origem da expressão. Até outro dia este cronista também não sabia.
Em várias obras literárias, desde Fernão Lopes (pai de todos nós, os que escrevemos crônicas, cronista-mor que ele foi del Rei D. Duarte, no século XV), passando por Sá de Miranda e chegando a Camões, encontra-se a história da infeliz Inês de Castro. Esta, uma nobre galega, veio para Portugal como aia de Dona Constança, futura esposa de Dom Pedro I, de Portugal. O príncipe, cujo casamento fora arranjo da corte, apaixonou-se pela dama de companhia de sua mulher. Até aí, nada de extraordinário, situação bastante comum naquelas épocas em que o sangue bom, mas bom mesmo, ainda era o sangue azul. E olha que logo depois Camões diria que o amor é fogo que arde sem se ver.
Morta Dona Constança, os conselheiros de Afonso IV exigiram que o príncipe Dom Pedro tomasse esposa indicada por eles e rompesse as relações com sua amada. Temiam que, por sua influência, Portugal perdesse a independência. Não houve jeito de convencer o príncipe, por isso, e por conspiração dos conselheiros, ele foi mandado para a guerra. Enquanto fora o príncipe, reunida a corte, Inês de Castro foi trazida do interior, onde se encontrava, e num julgamento sumário foi condenada à morte e ali mesmo, no palácio, foi degolada.
Tudo isso por amar o príncipe e ser doidamente amada por ele.
Dois anos depois, morreu D. Afonso e Dom Pedro, seu filho e príncipe herdeiro, foi coroado, iniciando sua vingança. Mandou executar todos os participantes do cruel julgamento. Dois deles tiveram os corações extraídos do peito — um pela frente e o outro pelas costas. Em seguida, ordenou que fossem trazidos os restos mortais de Inês de Castro para o palácio. Assentada no trono, todos os cortesãos foram obrigados a desfilar perante ela para o beija-mão. E isso, depois de Inês de Castro ter sido coroada rainha.
Mas a coroação já não fazia mais sentido, pois agora Inês já estava morta. A coroa chegou atrasada. 


terça-feira, 1 de agosto de 2017

Menalton Braff / Tudo outra vez


Tudo outra vez


Por Menalton Braff 
Em 30/07/2012 ÀS 10:43 PM

E não me venham dizer que sou antidemocrático ou alienado, pois não é nada disso. Pelo menos numa opinião de que às vezes desconfio, mas mesmo assim respeito: a minha. Que a nossa democracia está muito longe da perfeição, me parece que não há necessidade de provar: isso é consensual. Ou deveria ser. Mas o que me caceteia, e muito, é a eleição, e eleição não é democracia. Pode ser um de seus instrumentos, mas não é o único. E o problema, em verdade, não é exatamente com a eleição, senão com sua propaganda — a forma como é feita. 
Sofro muito quando começam a passar aqueles caminhõezinhos com alto-falantes. Já não falo daqueles monstros que bombardeiam para todos os lados, atingindo céus e terra, e estremecendo  tanto a litosfera quanto nosso débil esqueleto. Não tenho notícia confiável de sua origem, mas é um negócio que vi pela primeira vez em noticiário sobre o carnaval da Bahia; uma invenção, enfim, para que em lugar nenhum do Brasil se tivesse sossego. Para mim basta o caminhãozinho. Não consigo pensar em mais nada com aquele negócio trovejando em meus ouvidos. Fecho portas e janelas, fecho a casa toda, e não consigo me ver livre do barulho. Então, eu, que amo o silêncio, a música suave, a voz ciciada, ligo a televisão ou o aparelho de som no máximo volume, apenas para selecionar o barulho. Continuo preferindo alguns em detrimento de outros.
Mas não é só isso. Os caminhõezinhos passam dizendo que o fulano de tal é o melhor candidato, por isso você tem de votar nele. Caramba! O melhor candidato! Então me lembro de minha juventude, quando li o "Elogio à Loucura", de Erasmo de Roterdam. Em certa passagem, o autor diz que se ninguém te elogia, elogia-te a ti mesmo.
E fico pensando: se ele se elogia, é provavelmente porque mais ninguém o fará. E se ninguém mais o elogia, e ele mesmo tem de dizer que é o melhor, então não sei, não, mas acho que além da mãe e da esposa, além das duas mulheres mais importantes de sua vida, eu acho que ninguém mais vai votar nele. Eu confesso que não vou. Jamais votaria numa pessoa que me perturbou em minhas horas de trabalho, que invadiu minha casa com afirmações de que suspeito.   
O que pode levar um ser humano tão parecido com todo mundo a perturbar o sossego dos outros com seu nome berrado pelas ruas?   


segunda-feira, 31 de julho de 2017

Menalton Braff / Falando de amor




Falando de amor
Menalton Braff
09/09/2011 ÀS 11:38 AM
Isso não é privilégio de nossa cidade. Cenas idênticas tenho visto em toda parte. Mais fácil acreditar que seja característica de nosso tempo. O beijo de bico de minha época, que os jovens de hoje apelidaram de “selinho”, o beijo de boca, discreto ou cinematográfico, isto é, de perder o fôlego, de todos conheço como de todos experimentei. Sem esquecer o beijo de língua, o mais sensual de todos. Poderia ser chamado de beijo-véspera com muita propriedade. Pois outro dia fiquei assombrado ao presenciar um beijo de língua. Não por ser muito moralista, é que o beijo se deu entre uma garota e um cachorro. Meu liberalismo tem limites e meu estômago é fraco.
O que a língua andou limpando momentos antes  ou se a proprietária contraiu cinomose, nada disso importa na hora do beijo, que é a demonstração maior de carinho. Aliás, me cochichou agora meu anjo da guarda, dizendo que cinomose é doença de cachorros e não costuma acometer mocinhas que os beijem. Na boca e com algum requinte cuja razão desisti de entender. Mas antes que me acusem de anticanino, devo declarar que sempre amei os cães e foram muitos os que tive. E juro que nunca usei de crueldade com eles. Se não foram inteiramente felizes em minha companhia, é porque não entenderam que em nossas relações jamais abdiquei de meus direitos. Mesmo quando os afagava, e o fazia com frequência, mantinha alguns princípios, como o da hierarquia, em vigor.
Comecei a observar melhor as relações entre os seres humanos e os caninos e descobri que os antigos guardas, em alguns casos, ou agregados, em outros, vão-se tornando aos poucos os verdadeiros titulares das residências, com todos os privilégios que a titularidade impõe. Aos humanos, seus servidores, resta cada vez menos espaço, como convém aos súditos, mesmo quando humanos.
Outro dia uma sobrinha, na defesa de seu cão, disse que a humanidade que se frega. Bem assim: que se frega. Porque o homem e sua maldade.
Nada contra o amor pelos animais, mas para isso é necessário odiar o ser humano? Mas ela ainda não anda de quatro, como seria justo supor. Apesar de que, ultimamente, ela vem treinando um som gutural muito estranho. Acho que em breve ela estará rosnando.



domingo, 30 de julho de 2017

Jorge Amado / Um dia, um autógrafo



Jorge Amado

Um dia, um autógrafo

Por Menalton Braff
Em 18/04/2012 ÀS 10:36 PM


Eu não sabia o que era ser adolescente, naquele tempo. E era um. Também não sabia que o Brasil era o país do carnaval nem onde ficava a Bahia, da qual sabia apenas o nome da capital, Salvador, e seu adjetivo gentílico — soteropolitano. Coisas que a escola nos obrigava a decorar e que o tempo vai preenchendo com significados. No já extinto Colégio Ruy Barbosa, de Porto Alegre, vivíamos de sonhos, cerveja e literatura. Foi o tempo em que me tornei frequentador renitente da Livraria Globo, na rua da Praia. Sentava num dos corredores que havia entre as altas estantes de livros e lia orelhas e contracapas com zelo e método de um beneditino. Um dia uma daquelas estantes me jogou nas mãos uma capa estranha, de Clóvis Graciano, e me fez ler uma orelha mais estranha ainda, falando de um Brasil diferente do meu (paradisíaco, naquela idade), enfim, dizendo umas coisas que a princípio me assustaram. Não consegui sair da livraria, naquela distante manhã, sem levar comigo “O País do Carnaval”, da Editora Martins. 


Depois do primeiro, tive de ler todos. Com a voracidade de quem acaba de descobrir as cores do mundo. Eu estava tomado, confuso, assustado, perplexo. Mas então é assim, a gente pode escrever estas coisas todas, sobre gente com a nossa cara, sobre cidade com a cara da nossa, sobre um Brasil muito mais real do que aquele com que nos entopem nas escolas? Na medida em que devorava os livros de Jorge Amado, aumentava o deslumbramento, a paixão, que por fim explodiram numa certeza: —  Eu vou ser escritor, foi o que disse quando um dia cheguei em casa. Ninguém riu, nem talvez tenha acreditado. Era tido então, senão até hoje, como um tipo meio desajustado, desses que não devem ser levados muito a sério. 
Velho conhecido de Machado de Assis, José de Alencar, e outros autores do passado, aquele baiano ainda vivo que me deslumbrava me abriu as portas para Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outras paixões que fui tendo no correr da vida. Ele, o Jorge Amado, a quem tomei por segundo pai inteiramente à traição, jamais soube de minha existência. 


Jamais talvez seja exagero. Um dia, um colega chegou ao Ruy com a notícia: O Jorge Amado acaba de desembarcar no aeroporto. Veio dar uma palestra no salão da Rádio Farroupilha. Juntei da carteira o material, esperei a primeira troca de professores e, com cinco passos, estava pulando o muro. Naquele tempo eu tinha pernas com diversas habilidades que hoje só existem na memória. 
Foi uma das grandes emoções de minha vida. Eu estava ali sentado (e me beliscava para ter certeza de que não era sonho) e lá, sobre o palco, um escritor de verdade, vivinho da silva como um ser humano. Enquanto ele dizia “nóish”, sotaque inteiramente desconhecido para um porto-alegrense, enquanto ele falava manso e mole, como ele falava, eu não conseguia conter a baba, que escorria dos dois lados. 


No fim da palestra/entrevista, ele desceu do palco e veio pelo corredor, na direção em que eu estava, que era a direção da saída. Quando se aproximou, não tive dúvida, saltei em sua frente com o livro de latim aberto (o único que trouxera) e pedi um autógrafo. Foi a única vez em que tietei dessa maneira desavergonhada na vida. Foi o único autógrafo que o adolescente guardou por muitos anos. A vida me roubou o livro de latim, mas não me roubou o prazer de ter apertado  a mão de meu ídolo. Nunca mais nos cruzamos. 
Hoje, mais uma vez, esta sensação dolorida da orfandade.