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quinta-feira, 10 de março de 2022

Livros para quebrar o mar gelado em nós


13 LIVROS PARA QUEBRAR 

O MAR GELADO EM NÓS


Publicado por Valter Nascimento

Franz Kafka via a leitura como um processo sem fim de redescoberta. Para ele, os livros deveriam ser incômodos, diretos, genuínos. Esta é uma lista de alguns livros que me ajudaram a quebrar o gelo das leituras banais, me oferecendo uma experiência para além do mero entretenimento.


Em 1904 Kafka escreveu a seu amigo Oskar Pollak: “No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo? [...] Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser um machado para o mar gelado de dentro de nós. É nisso que acredito”.
Eis alguns livros (uns mais conhecidos, outros malditos ou esquecidos do grande público), que considero capazes proporcionar ao leitor uma experiência simbólica e inesquecível:
O conto da Aia, de Margareth Atwood.

Num futuro distópico, sem liberdade de expressão, livros ou jornais, a concubina Offred narra a vida das mulheres escravizadas pela sociedade patriarcal. Eu sei, parece bem atual, e é. Na visão sombria criada pela autora canadense, mulheres são apenas objeto de uso para a reprodução dentro de uma sociedade cristã que derrubou o Estado e impôs leis religiosas a todos os cidadãos. Um livro que reflete sobre a condição da mulher, sobre os poderes que conferimos aos religiosos e de como o futuro pode ser pior do que pensamos.
O nariz, de Nikolai Gogol

As aventuras de um nariz que foge de seu dono e luta para ser uma pessoa independente. Apesar do mote surreal, beirando a comédia escrachada, O nariz é uma pequena grande história sobre poder, individualidade e hipocrisia. Uma crítica feroz a sociedade russa da época, ao governo corrupto e a superficialidade do indivíduo, avaliado sempre pelo que aparenta ser, e não pelo o que é, mesmo que seja apenas um nariz.

Ambientado na África do Sul pós-apartheid, Desonra narra a vida de um professor de literatura que se envolve com uma de suas alunas, dando início a um círculo trágico que revela as diferenças culturais, raciais e políticas do país. Escrito com uma prosa limpa, carregado de poesia e cenas horrendas, este é um livro sobre humanismo sem concessões ou sentimentalismo barato.
Justine, ou Os sofrimentos da virtude, do Marquês de Sade

Sade é mais conhecido pelo grotesco 120 de Sodoma, mas em Justine ele combina o seu espírito libertino com doses de poesia, filosofia e política. A jovem Justine é boa, dona de qualidades invejáveis. É religiosa, amável, solidária, humilde e honesta; mas um livro de Sade não é um livro sobre o lado bom da vida. A cada boa ação de Justine a vida lhe dá justamente o oposto. Nenhuma heroína que eu conheça jamais sofreu como Justine. A graça (e o horror) deste livro, ferozmente avançado para o seu tempo (Justine apareceu pela primeira vez em edições clandestinas em 1791), reside na visão cínica da vida que não recompensa os justos, e se não há justiça na Terra, para que devemos ser bons?
A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, de Laurence Sterne

A proposta do livro é uma biografia de um nobre do século XVIII, mas o que lemos é uma confusão maravilhosa. Capítulos faltando, críticas contra toda e qualquer instituição social e um protagonista que não aparece quase nada. O tal Tristram é um pretexto, sua história nunca é contada por inteiro e o leitor tem a sensação de que qualquer coisa pode acontecer na página seguinte. Este é o primeiro grande romance experimental moderno e há quem ache que Tristram Shandy seja maior que o Dom Quixote.
Matadouro 5, de Kurt Vonnegut

Alienígenas abduzem soldado da Segunda Guerra transformando-o num homem “livre do tempo”, capaz de analisar a saga humana de um ponto de vista privilegiado. Eis o principal tema deste romance feroz e cheio de sagacidade, sem paralelo na literatura mundial. Para Vonnegut, que conheceu de perto a rotina das tropas, a máquina da guerra, o horror da morte e a insignificância da vida são tão irracionais quanto qualquer história de ficção científica, e sob este ponto de vista, alienígenas cruzando o espaço e o tempo não parece uma coisa tão difícil de se acreditar.
O tambor, de Günter Grass

Confinado num sanatório, acusado de um crime que não cometeu, Oskar Matzerath escreve suas memórias como forma de se manter são. Entre suas inúmeras habilidades desenvolvidas ainda na infância, ele se orgulha de poder quebrar vidros com um grito agudo e de ter parado de crescer aos 4 anos, tornando-se assim anão por conta própria. Sua história como anão de circo durante a Segunda Guerra se confunde com a história da Polônia e da Alemanha, a ascensão de Hitler e do nazismo e flerta com o realismo fantástico como forma de escape perante o horror.
Reparação, de Ian McEwan

A primeira parte deste livro se passa no verão de 1935 quando Briony, com então 13 anos, presencia uma cena que julga ser algo sexualmente inapropriado entre sua irmã e o filho da governanta. Eis o estopim para um dos mais belos e tocantes livros da literatura moderna, que usa com maestria o conceito de metalinguagem, pondo uma história dentro da outra, para entregar ao leitor um final terno e amargo. Um livro sobre o poder da interpretação, amores não vividos e de como a literatura pode ser a mais sublime forma de redenção.
Budapeste, de Chico Buarque

Chico Buarque é, além de um dos maiores compositores brasileiros, um romancista e dramaturgo de talento irretocável. Mas nenhum de seus romances tem a graça, o frio na barriga e o desaforo de Budapeste. A história fala das peripécias de José Costa, um ghost-writer que se vê por acaso em Budapeste, uma cidade que conhece apenas dos guias de viagens. A cidade real e a inventada, o homem real e o imaginado. Chico usa a profissão nada nobre de escritor de encomenda para brincar com os limites do indivíduo e questionar o que é o real, o que é a linguagem e de fato o que é escrever.
Diário de um ladrão, de Jean Genet

A vida de Genet foi um festival de desgraças. Filho de uma prostituta, abandonado pela mãe e criado num orfanato. Com os meninos de rua ele aprendeu a arte de roubar, sendo preso diversas vezes por isso. Em Diário de um ladrão, Genet narra sua vida de delinquente, homossexual despudorado e profundo conhecedor dos segredos do submundo. Este é um livro que tira poesia da desgraça, que rasga pudores e fala abertamente de temas que ninguém quer falar, por isso mesmo honesto e contundente.
O senhor das moscas, de William Golding

Um grupo de meninos presos numa ilha. O que começa como uma tentativa de sociedade justa e natural se torna aos poucos numa alegoria sobre os impulsos primitivos e a crueldade. É um livro belo e bárbaro, repleto de personagens memoráveis como Porquinho, Ralph e O Bicho. A ideia de que o homem é naturalmente bom é posta em debate. O senhor das moscas é visto como um contraponto a Robinson Crusoé, o náufrago que impõe os valores humanos a uma ilha selvagem. A selvageria de Golding é de caráter humano, o que faz da obra uma das mais influentes de todos os tempos.
A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares

Bioy Casares é, ao lado de Jorge Luiz Borges e Julio Cortázar, um dos três grandes nomes da literatura argentina, e também o menos conhecido pelo grande público. Neste livro, considerado por Borges como o “romance perfeito”, um preso político se refugia numa ilha infectada por uma doença mortal. Lá passa a observar os turistas que frequentam uma parte específica do lugar. Sua observação o leva a descobrir que os visitantes sempre se comportam da mesma maneira, repetindo seus gestos e falas, dando a entender que o real não é verdadeiro, e que alguma coisa comanda, secretamente, as leis do lugar. O resto você tem que ler e se preparar para a surpresa.
Triângulo das águas, de Caio Fernando Abreu
Composto por três novelas de prosa fluída e pessoal, este é um livro que demoramos a digerir. Em Dodecaedro diversos personagens entram em cena numa composição que capta o passar do tempo de maneira inusitada. Em O marinheiro, pra mim uma das coisas mais bonitas já escritas em língua portuguesa, a saudade e a expectativa de um encontro são desenhados de maneira sutil e melancólica. Em Pela noite, a história com os mais típicos elementos da prosa do autor, dois personagens se perdem entre discos, bebidas e atos de amor.


obviousmagazine


VALTER NASCIMENTO

Já atuei como produtor, diretor cultural e cineclubista. Atualmente sou livreiro, escritor e possuo grande interesse sobre o universo dos livros e seus leitores. Escrevo ainda para o site Medium e nas horas vagas sou gamer inveterado e cinéfilo compulsivo.
Mais em: www.valternasco.wordpress.com



sábado, 15 de fevereiro de 2014

Ian McEwan / Tempo de maturidade

Ian McEwan, tempo de maturidade

Ian McEwan é considerado o escritor nacional da Inglaterra

Sucesso e dinheiro chegaram com 'Reparação' e sua adaptação cinematográfica

'Serena' é uma história de amor, espionagem e, acima de tudo, literatura

     

O escritor McEwan. / ANDY HALL
Ian McEwan (Aldershot, Reino Unido, 1948) contou que observava um entardecer “espetacular” dos janelões de sua mansão em Gloucestershire, a uns 180 quilômetros a oeste de Londres, enquanto respondia às perguntas pelo telefone. O autor de uma quinzena de histórias de sucesso, traduzido para dezenas de idiomas, foi morar no campo com a segunda esposa, Annalena McAfee, há alguns anos, desde que vendeu sua mansão luxuosa na Fitzroy Square. “Londres continua nos encantando. Mas também gosto muito do campo, adoro andar. Estamos em uma região muito bela da Inglaterra, ideal para trabalhar, para escrever”. E se isto não bastasse, ela fica a apenas uma hora de trem do centro da capital britânica, que McEwan diz continuar frequentando com certa assiduidade. O autor possui diversos laços com Londres: a antiga casa da Fitzroy Square aparece retratada em Sábado, e foi lá que tomaram forma os personagens de seu último romance,Serena, em que McEwan, como um expert alquimista, mistura realidade e ficção para construir um relato de espionagem que ri um pouco do gênero. Com uma jovem e bela espiã, um escritor jovem e brilhante e uma inevitável história de amor entre ambos.

Hoje me interesso mais pela cor. E, talvez com o passar do tempo, eu tenha me tornado mais humano e mais capaz de perdoar
McEwan nos transporta, desta vez, à Londres do início dos anos setenta. Uma cidade suja e descuidada, capital de um país atormentado pelas greves dos mineiros, pelo terrorismo do IRA e submetido a sucessivos estados de exceção. A crise atual parece brincadeira diante desse panorama desesperador. “Em certo sentido, o Reino Unido estava muito pior naquela época, e na Espanha, ainda havia o Franco. Mas a situação era bem diferente. Faz uns cinco ou seis anos que, com a globalização, o mundo está cada vez mais interligado, e a escala das catástrofes se tornou maior. Foi revelado recentemente que até Gordon Brown, nosso primeiro-ministro na época, considerou a possibilidade de levar o exército às ruas caso o sistema bancário sofresse um colapso completo e houvesse protestos. Existe uma diferença em relação ao que acontecia nos anos setenta, quando todos estávamos mais preocupados com nossas misérias particulares”. No Reino Unido, que acabava, por assim dizer, de perder o Império, “refletia-se muito sobre como financiar o Estado de bem-estar social, e alguns sindicatos estavam muito radicalizados politicamente. Tínhamos uma indústria obsoleta e estávamos sendo superados por alguns dos países derrotados na Segunda Guerra Mundial, como o Japão e a Alemanha. Mas, ao mesmo tempo, eu estava na casa dos vinte e poucos anos, havia acabado de publicar meu primeiro livro e estavam acontecendo várias coisas interessantes em Londres. Portanto, era uma situação com dois lados”.


 A juventude de McEwan povoa as páginas de Serena (publicado no Brasil pela Companhia das Letras), embora na lista de agradecimentos do livro conste o quanto ele se baseou em documentos para compor seu relato. “A ficção que me interessa está ligada a uma precisa comprovação dos fatos, para poder saber como as coisas aconteceram e assim, chegar até a verdade. Eu me divirto com esse processo e acredito que se você consultou uma série de livros, precisa deixar isso claro”, afirmou McEwan.
A protagonista do romance, Serena Frome, uma bela jovem formada em Cambridge e recrutada pelo MI5 (serviço secreto britânico para a segurança interna), longe de levar a cabo arriscadas missões, passa a vida redigindo memorandos em um prédio sujo e sem calefação, suportando estoicamente o tratamento machista de seus chefes. “O MI5 era mais burocrático e machista que outros departamentos. Porque era dirigido por ex-militares ou funcionários de alto escalão procedentes das colônias, que tinham uma atitude muito condescendente com as mulheres. O MI5 teve bastante dificuldade de se adaptar ao nível de outras instituições [mais tarde, nos anos noventa, seria dirigido por Stella Rimington]. Mulheres não podiam dirigir grupos de agentes secretos nem subir no escalão”.

Muitos autores se sentem culpados com o sucesso, pensam que algo que tem muita aceitação não pode ser bom
O romance retoma episódios pouco conhecidos da guerra fria, como a tentativa do MI5 e, especialmente, da CIA, de promover os valores do capitalismo frente ao comunismo, concedendo subsídios a artistas e escritores. “A CIA gastou centenas de milhões de dólares na tentativa de atrair e seduzir os intelectuais europeus de esquerda, para convencê-los de que os Estados Unidos, o mundo livre, eram muito mais ativos, mais atraentes artisticamente, do que a União Soviética. Visto da perspectiva atual, é curioso, porque conhecemos a opressão colossal que existia na URSS. O que me atraiu a esse tema foi o fato de a CIA gastar tanto dinheiro para demonstrar as vantagens de uma sociedade livre e aberta, mas o fez secretamente. Esse episódio não muito conhecido me levou a escrever o romance, a história desta espiã, Serena Frome, que espiona um romancista que se vinga espionando-a também”.
Como em todos os livros de McEwan, em Serena também encontramos a banalidade do mal. Com personagens bastante normais, mas só na aparência, que acabam se destruindo a dentadas. Ou traindo seus amantes, como Serena Frome, por pura ambição profissional. “Sim. Por isso, no começo do livro eu cito uma frase do livro O Dossier, de Timothy Garton Ash. Timothy passou muito tempo em Berlim durante a guerra fria, trabalhando como jornalista, e após a queda do Muro, teve acesso ao material que a Stasi (polícia política da Alemanha oriental) havia acumulado acerca dele. Então, descobriu que todos seus amigos berlinenses eram informantes policiais. Seu livro é um relato do caso, de suas entrevistas com todos aqueles amigos, em uma tentativa de compreender por que o haviam espionado. E se deu conta que nenhum deles era uma má pessoa. O sistema que era ruim e os pressionava para que informassem sobre ele, e as pessoas transigiam. Em outras esferas da atividade humana, acontece a mesma coisa. Por exemplo, no jornalismo britânico. As pessoas vivem imersas em uma cultura em que o sucesso pode estar associado a agir de uma forma errada e desonesta, e se submetem a isso. É o que acontece com Serena. Ela busca a aprovação de seus superiores, por isso não se importa quando tem de enganar o romancista, Tom Haley, ainda que esteja apaixonada por ele. É isso que as instituições fazem com as pessoas”. Poderia alegar-se que as instituições não são entes abstratos, mas estruturas criadas por pessoas. “Sim, mas chegamos a um ponto em que a quantidade altera a qualidade. Por isso, as instituições, às vezes, levam as coisas até extremos que ninguém havia planejado nem desejado”.
Contudo, o mundo da espionagem é apenas uma das múltiplas camadas que envolvem um romance que a crítica britânica comparou, e com razão, a uma boneca russa, porque esconde dentro de si muitos outros romances. Serena Frome é uma leitora voraz que se apaixona por Tom Haley ao ler seus contos. Relatos curtos que interrompem o curso deSerena, sem chegar em momento algum a despistar o leitor. Ou melhor, a leitora. Serena é uma mulher, como a imensa maioria das seguidoras de McEwan, que em certa ocasião, declarou: “quando as mulheres deixarem de ler romances, o gênero estará morto”. O escritor ri lembrando da frase. “Eu mesmo comprovei isto nos grupos de leitura existentes no Reino Unido e nos Estados Unidos, compostos por uma maioria esmagadora de mulheres. Mas o comentário foi por causa de um experimento que fiz. Saí às ruas com cerca de trezentos romances e os ofereci para as pessoas que passavam. As mulheres aceitaram os livros com alegria, mas não consegui que nenhum homem levasse um exemplar”.


A ficção que me interessa está ligada a uma comprovação precisa dos fatos, para poder saber como as coisas aconteceram.
—Por que pensa que os rejeitavam?
—O romance é um gênero muito feminino. Mulheres têm paixão por relacionamentos, pelo compromisso, pelo comportamento das pessoas, muito mais do que os homens. No Reino Unido é assim desde o século XVIII, quando o romance estourou.
Os amantes do McEwan tortuoso e obscuro ficarão um pouco desapontados com a história; já faz algum tempo que o autor de relatos macabros como Primeiro Amor, Últimos Ritos ou Entre Lençóis e romances com um viés assustador como A Criança no TempoCães Negros ou Amsterdam, se domesticou. E seus livros perderam sua antiga ferocidade característica. “Eu mudei, obviamente. Você não é a mesma pessoa aos 65 anos e aos 20. Embora meus primeiros romances fossem muito obscuros, espero ter preservado a intensidade de minha escrita. Hoje me interesso mais pela cor, e talvez tenha me tornado mais humano e mais capaz de perdoar. A gente percebe o quanto as pessoas são maravilhosas; o quão fracas, estúpidas e cruéis elas são. Acho que minha ficção se tornou mais expansiva”.
McEwan faz parte de uma brilhante geração de escritores britânicos: Martin Amis, Julian Barnes ou Salman Rushdie, todos, bons amigos dele (Serena foi dedicado ao falecido Christopher Hitchens). Não deixa de surpreender que pessoas que imaginamos com egos enormes tenham sido capazes de manter uma amizade tão intensa. “É porque nós nos conhecemos quando nossas carreiras estavam começando, e isso conferiu uma qualidade especial a nossa amizade, porque ninguém sabia se um dia ficaria famoso”. Tensões surgem, de vez em quando, “mas entre nós, o afeto se mantém. A vida é curta e ninguém quer perder seu tempo com grandes discussões”. Palavras que o retratam como o ser sociável e sossegado que é, segundo a opinião geral.

Mulheres têm paixão por relacionamentos, pelo compromisso, pelo comportamento das pessoas, muito mais do que os homens.
Não é por acaso que Ian McEwan acumulou dezenas de amigos fiéis ao longo de uma vida marcada por episódios dignos de um melodrama do século XIX. Segundo filho de um militar de origem escocesa, sua mãe já tinha dois filhos de um primeiro casamento com outro soldado, falecido na II Guerra Mundial. Os dois meios-irmãos de McEwan ficaram aos cuidados da família paterna, e o irmão mais velho foi dado em adoção antes de ele nascer, como décadas depois ficaria sabendo o escritor. O pequeno Ian também não cresceu na casa familiar. Quando tinha apenas 11 anos, seus pais, na época instalados na Líbia, decidiram enviá-lo a um internato inglês. Lá, McEwan passaria sete anos fundamentais de sua vida.
 —Esta experiência tem algo a ver com sua extrema sociabilidade, com sua paciência para com as pessoas?
 —Não saberia dizer. Certamente, deve ter tido um impacto importante na minha personalidade, porque foi uma fase crucial em minha vida. Aos 17 anos, eu era muito parado, muito tímido com as garotas. Mais do que isso, eu não saberia dizer.
Embora reconheça que o internato público aonde foi enviado nos anos cinquenta “era bastante sombrio”, o autor se lembra dele com carinho —“nos últimos dois ou três anos, fui muito feliz lá”— e gratidão —“recebi uma educação muito boa”—. Isto não significa que ele quisesse que seus dois filhos (de 27 e 30 anos, respectivamente, fruto de seu primeiro casamento) repetissem a experiência. “Não, não. Sempre gostei de tê-los em casa, de ficar com eles. Eu teria sentido muita falta deles. Cara, se eles tivessem falado, com 16 anos, que queriam ir para um internato, ainda que com muitas reservas, eu teria permitido. Mas teria sido uma grande perda para mim. Adoro crianças. E a infância é tão curta! Quando você vai ver... onde está aquele seu menininho de cinco anos? Só restam as fotografias”.
Quando lembrado de que é considerado nada menos que o escritor nacional inglês, McEwan brinca: “isso não trará, necessariamente, nada de bom”. Mas reconhece, sem melindres, que o sucesso, em letras maiúsculas, e o dinheiro —hoje ele é um dos escassos exemplos de escritor milionário—, chegaram graças à versão cinematográfica de seu romance Reparação, que teve mais de quatro milhões de exemplares vendidos. “O filme acabou atraindo muitos leitores para o romance. Foi algo excepcional em minha carreira, mas foi ótimo”. Eu digo para McEwan que alguns escritores vivem o sucesso com certo desconforto. “É verdade. Muitos autores se sentem culpados com o sucesso, pensam que algo que tem muita aceitação não pode ser bom. É uma espécie de ressaca do Modernismo. A arte era só para as elites. Isso é totalmente equivocado. O romance do século XIX, Tolstói, Dickens, faziam um sucesso imenso em sua época. Dickens era muito popular. É o Modernismo que transforma a literatura em uma espécie de sacerdócio só para iniciados, em algo que o povo não consegue compreender. Se um livro vende mais de duzentas cópias, não vale nada. E algo disso ainda subsiste”. Mas, felizmente, não subsiste nele.