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sábado, 8 de fevereiro de 2014

Woody Allan / Tiros em Woody


Tiros em Woody


Nova York é um grande teatro, e Woody Allen decidiu interpretar o papel do neurótico

A cidade se rendeu a ele. Até aceitou seu amargo rompimento com Mia Farrow e o casamento com a filha adotiva da atriz. Até ela acusá-lo de abusar da filha de 7 anos

O caso foi arquivado por falta de provas. Mas agora, 20 anos depois, ressuscita. E não na boca, desta vez, de uma mulher desprezada, mas no chocante relato da própria suposta vítima

O cineasta Woody Allen com a filha Dylan Farrow em 1987, então uma criança de dois anos. /CORDON
O Upstate Films é o cinema de arte e experimentação de Woodstock, Nova York; o povoado em que Bob Dylan, David Bowie, Van Morrison e tantos outros decidiram morar depois do mítico concerto de 1969. “Não posso acreditar que exibam filmes desse senhor, Steve. Quer vergonha!”, diz ao dono uma mulher que ainda mostra nos cabelos grisalhos traços dos tempos de hippie. Esse senhor é Woody Allen, e o filme em cartaz, Blue Jasmine. Vinte anos depois de seu escabroso rompimento com Mia Farrow, voltaram a lançar contra o cineasta a pior das acusações: ter abusado sexualmente da filha. E desta vez não é o testemunho de uma mãe desprezada, mas o relato chocante da suposta vítima em uma carta ao New York Times. Declarações que ele logo em seguida tachou de “falsas e vergonhosas”. “Eu programo Woody Allen porque como diretor é um gênio, não pelo que faz ou deixa de fazer em sua vida privada”, se defende Steve Lieber ao lado do cartaz com Cate Blanchett. Mas não convence sua interlocutora. Inocente ou culpado, o dano está feito.
Enquanto isso, Woody Allen continua sendo Woody Allen. Gesticula dando golpes no ar. Vai ao Madison Square Garden assistir a uma partida de basquete. Corrige trechos de seu novo roteiro em sua velha máquina de escrever. E não está consciente do que ferve no Twitter porque vive sem conexão de Internet.
Se Nova York fosse somente uma cidade, Woody Allen não teria existido. Mas Nova York é um gigantesco cenário de teatro em que cada habitante decide ao se levantar o papel que quer representar nesse dia. E sempre, por mais chocante que possa parecer ao restante do planeta, o personagem que alguém escolha pode encontrar milhares de almas dispostas a seguir seu papel de modo entusiasmado. Como na programação do Apollo, há espetáculos para todo tipo de público. Ninguém se espanta com nada. Aceita-se todo mundo. E se a caracterização é crível, a cidade é toda sua e o único limite é a linha do horizonte.

Mia Farrow brinca no parque com sua filha adotiva Dylan em 1990. / GETTY
Allen decidiu ser um neurótico e para as pessoas isso lhe caiu bem. Em suas primeiras atuações o público o deixava tão apavorado que ele tapava os olhos com as mãos quando aplaudiam suas piadas. Mas Nova York o aceitou com prazer. Talvez porque na declaração aberta de sua fobias refletia as ansiedades ocultas que temos dentro de nós – mas ele se atrevia a revelar sua insegurança, a admiti-la diante das câmeras, mostrando-se como um ser humano desprotegido. Tão frágil que muitos, ao vê-lo em pessoa, se surpreendem com sua altura (1m65) porque o imaginavam muito mais baixinho ainda.
Woody também resolveu incorporar a sua realidade judaica na interpretação e elevar à quinta potência a perseguição histórica de seu povo, na forma de um catastrofismo que o consome. Um sem-viver com a eterna suspeita de que alguém pretende lhe passar a perna e a permanente desconfiança na divindade. “Se ao menos Deus me mandasse um sinal, como, por exemplo, fazer um grande depósito em meu nome em uma conta na Suíça...”.
Claro, às segundas-feiras, como todo ator coadjuvante, Allen decidiu consagrar ao descanso. Nesses dias não há trabalho e ele se dedica a tocar clarinete no Café Carlyle. Na 76 com a Quinta. Pontual. Às 20h45 e em companhia da banda de jazz de Eddy Davis. Qualquer um pode checar por 200 dólares, com jantar incluído.
Mas Woody Allen só é Woody Allen em Nova York. Fora de sua cidade o personagem não se ajusta. Não funciona. Sente enjoos só de pensar que tem de abandonar Manhattan. E é normal, porque em outros lugares do país o público não seguiria o seu enredo. Seu personagem é entendido nas grandes cidades, e especialmente nas que contam com numerosa população judaica, como Los Angeles e Miami. Mas o restante dos EUA, rural e protestante, não dedica especial devoção a um neurótico de cabelo liso. Não o entende. O que não significa que não o conheçam. Mas como não conhecê-lo... se tem 42 filmes!

Woody só é Woody Allen em Nova York. Fora da cidade, em um país prortestante e rural, o personagem não se ajusta
Nos primeiros, você rolava de rir. Depois retratou uma Nova York com a qual todos os espectadores sonham. Os seguintes passaram sem castigo nem glória; Acusaram-no de preguiça. De se repetir. De se retratar várias vezes fazendo o mesmo escritor fracassado e torcedor dos Knicks que havia séculos não cravavam uma cesta. E nisto houve o amargo rompimento com Mia Farrow e o surpreendente casamento com a filha adotiva da atriz. Falou-se de final de carreira. Não por que os Estados Unidos não tolerem as famílias disfuncionais e os múltiplos casamentos. Que seja. Há muitos casos mais complexos. Os cinco filhos do presidente Roosevelt, por exemplo, somam ao todo 19 casamentos. O que acontece é que em 1993 Mia acusou Woody de ter abusado sexualmente da filha de ambos: uma menina de 7 anos. Palavras importantes. Mas a investigação não encontrou provas convincentes e o caso foi arquivado.
Allen seguiu seu ritmo de produção: um filme por ano. Dmonstrando seu talento arrebatador. Conseguindo, como dizia Juan Ramón Jiménez em referência aos livros, obras que, sem ser redondas, continham capítulos de um brilhantismo sublime. E assim foi atravessando os tempos; se superando pouco a pouco até que o produtor Jaume Roures lhe ofereceu a oportunidade de rodar na Europa. Woody lhe mostrou um roteiro, Vicky, Cristina, Barcelona, tão cheio de clichês que parecia escrito para cumprir uma obrigação e assinar o contrato. Roures lhe pediu que pelo menos mudasse a profissão de Bardem, que tinha posto como toureiro, e Woody concordou em transformá-lo em pintor. Mas não muito mais. Foi um sucesso. Custou 16 milhões de dólares e arrecadou 77. O mérito foi de Penélope Cruz, que cobrou menos por sua atuação que o orçamento de um mobiliário de cozinha –porque esse é outro aspecto: como tem fila de atores que querem trabalhar com ele, Woody paga um salário baixo– mas conseguiu o Oscar para ela e para toda a Espanha.


Dylan, em uma foto em seu blog.
Depois veio Meia-Noite em Paris(custou 30 milhões de dólares e arrecadou 155), que lhe devolveu um reconhecimento profissional que não desfrutava desde os tempos deHannah e suas irmãs. Depois, a homenagem à sua carreira no Globo de Ouro. A indicação de Blue Jasmine,filme maduro em que ninguém na tela tem a sua voz... E de repente, outra vez o escândalo!
Hoje, como no conto de As Maçãs do Senhor Peabody, escrito por Madonna, a sombra da dúvida se estende pelos EUA como as penas de um travesseiro lançadas ao vento. E logo, mesmo que se demonstre que a acusação era infundada... ponha-se a recolher penas, uma a uma, e a colocá-las de novo na fronha.
Verdade ou mentira, o mal está feito. “Para acusar um pai de algo tão grave é preciso ter muita coragem. Que mulher passaria por esse infortúnio se não fosse verdade?”, se pergunta uma estudante cética da NYU. O musical baseado em Tiros na Broadway estreia em 11 de março. As entradas estão à venda e os produtores, entre os quais a irmã de Allen, Letty Aronson, estão preocupados, segundo publicou o Daily News. Em 18 de abril estreia Fading Gigolo, comédia de humor negro dirigida e escrita por John Turturro, que também atua no filme, com Allen, ambos como protagonistas. O ruivo dos óculos de aro escuro é metade do cartaz, e a outra metade deve estar roendo as unhas.

Interiores

  • A relação. Woody Allen e Mia Farrow se conhecem em 1979 e mantêm um relacionamento até 1992. Nunca se casam nem moram juntos.
  • Os filhos de Mia. No total, são 14. Com o segundo marido, Andre Previn, diretor de orquestra, tem três e adota outros três, incluindo Soon Yi (em 1978 com 5 ou 7 anos; seu nascimento na Coreia não está documentado). Já com Allen, adotam Moses e Dylan (depois dos supostos abusos é rebatizada como Malone). Em 1987 têm um filho biológico: Satchel (depois, Ronan), embora em 2013 a atriz tenha dito que o pai é “possivelmente” Frank Sinatra, seu primeiro marido. Depois de romper com Allen, Farrow adota outras cinco crianças, e a uma delas dá o nome do juiz que lhe concedeu a custódia dos filhos com Allen.
  • Soon Yi. Em 1992 Farrow descobre que a filha, com 19 ou 21 anos, tem um relacionamento com seu namorado, de 56. Allen e Soon Yi continuam juntos e têm duas filhas adotivas.
  •  O abuso. Durante o julgamento pela custódia dos filhos, Mia denuncia Woody por abusar de Dylan (7 anos). Não são encontradas provas para incriminar o diretor.
  • O revival. Em novembro de 2013 Mia e Dylan voltam a falar sobre o abuso na Vanity Fair. Em janeiro, durante o Globo de Ouro, Mia e Ronan escrevem no Twitter que está sendo premiado um pedófilo. Em 1 de fevereiro Dylan publica uma carta detalhando o abuso..
  • Com papai ou com mamãe? Ronan apóia a mãe e irmã; Moses, o pai.
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Um relato de abuso contra Woody Allen


UM RELATO DE ABUSO 
CONTRA WOODY ALLEN

É irônico, mas sabe sobre o quê eu tinha planejado escrever hoje? Sobre o excelente filme dinamarquês A Caça, que concorre a melhor filme estrangeiro, e que trata de uma falsa acusação de abuso infantil. Ainda vou escrever sobre a obra, mas não hoje.


Hoje tenho que escrever sobre a carta aberta (aqui, em inglês) que Dylan Farrow, hoje com 28 anos, escreveu sobre ter sido sexualmente molestada por Woody Allen quando criança. E é muito difícil, porque já recebi e publiquei dezenas de relatos d mulheres que foram estupradas, muitas delas quando crianças. Eu sempre acredito na vítima, e detesto quando alguém diz que é mentira, ou que eu que inventei o relato. Como se pessoas não fossem estupradas todos os dias e eu precisasse criar histórias!


Por outro lado, acredito também na presunção da inocência, no velho “inocente até ser provado culpado”. Sou contra linchamentos. É óbvio que é muito difícil comprovar abuso, e as estatísticas estão aí pra provar (apenas 3% dos denunciados por estupro passam sequer um dia na prisão). Estupro é um crime impune. É um crime em que rotineiramente se duvida da vítima. E a enorme maioria das acusações de estupro são verdadeiras. A estimativa do FBI é que somente 2% das acusações são falsas. Mas nem por isso podemos condenar sem investigação, sem julgamento, alguém acusado de estupro. Seja ele quem for.

Dylan adolescente com Mia
Também tem outra coisa: não sei até que ponto acredito em verdade absoluta. Algo muito comum em casos de abuso sexual infantil é que a pessoa se lembra de flashes. A mente tenta barrar o que é difícil demais de aguentar. Em muitos, muitos casos de abuso infantil, a pessoa adulta não tem certeza se aquilo aconteceu mesmo. E, assim como é possível apagar memórias, também é possível criá-las. 
Dylan, Mia e Tam em 1992

É possível que uma pessoa acredite tanto numa história que, pra ela, aquela é a verdade. Não quer dizer que esteja mentindo. Pra ela, não é uma mentira. Ela acredita. Mas nem por isso necessariamente aconteceu. (Nisso eu tenho um exemplo muito próximo: minha mãe. Nada a ver com abuso, mas ela cria fantasias sobre momentos do passado que eu acho que nunca aconteceram. Não digo que ela é mentirosa, porque ela acredita no que está contando). 

Então, sobre o caso Woody Allen, eu acompanhei muito tudo isso. Estava vivíssima em 1992, quando o escândalo estourou. Na época não havia internet, mas li tudo que podia, inclusive o longo artigo de Maureen Orth na Vanity Fair, totalmente pró-Mia. Sim, porque foi uma guerra violenta entre Woody e Mia. Começou em janeiro de 92, quando Mia encontrou, sem querer, fotos íntimas de sua filha adotiva Soon-Yi no apartamento de Woody, em Manhattan. 


Eu tento me colocar no lugar de Mia. Eu a admiro. Primeiro que ela fez algo que pouca gente, famosa ou não, faz: adotar crianças em situações de risco que ninguém mais queria. Ela adotou crianças miseráveis de vários países: Soon-Yi quando tinha sete anos, na Coreia, filha de prostituta e que havia vivido na rua antes de ir pra um orfanato; Moses, que tinha paralisia cerebral; duas crianças cegas, e por aí vai. Tem gente que encara isso como uma muleta emocional e vê as adoções com cinismo, e não entendo porquê. Acho absolutamente louvável. 


Bom, aí você é Mia, uma estrela de cinema desde pequena, filha de atores, ex-esposa de ninguém menos que Frank Sinatra e do célebre maestro Andre Previn, e está num relacionamento pouco convencional com um dos diretores de cinema mais conhecidos e respeitados no mundo, Woody Allen. O relacionamento é pouco convencional porque eles não habitam o mesmo teto, nem são legalmente casados, mas estão juntos há doze anos e fizeram treze filmes (filmes que devem muito do sucesso não só ao talento de Woody, mas ao de Mia). 


Aí você encontra fotos íntimas do seu parceiro (que tem 57 anos) com a sua filha de 19 ou 21 (não há registros confiáveis de quando Soon-Yi nasceu). Como assim? É lógico que isso é horrível e inaceitável. E ver a atitude pública de Woody, como se não tivesse havido nada de errado, é chocante. Na época, ele disse à revista Time: “Não vi qualquer dilema moral”.


Um dos erros de Woody foi justamente esse -- sua falta de senso moral. Ele nunca se arrependeu, e parece que nunca se deu conta, de que envolver-se com Soon-Yi, filha de sua companheira, era mais que uma traição. E que pros seus outros filhos, pros irmãos de Soon-Yi, isso tinha potencial para destruir uma família, o que de fato aconteceu. Se nem pro público Woody pediu desculpas, é claro que não pediu pra Mia, nem pras crianças. Essa arrogância, que ele mantém até hoje, com certeza piorou tudo. 


Woody provavelmente começou o relacionamento com Soon-Yi dois anos antes de Mia encontrar as fotos. Em 1990, um fotógrafo flagrou os dois de mãos dadas enquanto assistiam um jogo. A foto (ao lado) só foi publicada depois, no meio do escândalo (o paparazzo comprou um apartamento com ela), mas rumores surgiram numa coluna de fofocas. Woody conseguiu convencer Mia que não tinha nada com Soon-Yi. Até ela encontrar as polaroides comprometedoras em janeiro de 92. 


Eu li a biografia de Marion Meade, publicada em 2000, The Unruly Life of Woody Allen. Se o livro não é exatamente pró-Mia, ele é bem anti-Woody. E apresenta uma pesquisa que parece ser consistente. Meade conta que Mia, compreensivelmente nervosa, ligou para Woody e gritou: “Fique longe de nós!” E foi para casa. “Vinte minutos depois de Mia encontrar as fotos, todo mundo na família já estava sabendo”, diz Meade. Woody também foi lá pouco depois, quando as crianças estavam jantando. Ele não falou nada, não se desculpou, só ficou perto da parede. Um a um, os filhos de Mia se levantaram da mesa e levaram o prato pra comer no quarto. 
Por incrível que pareça, o relacionamento de Woody e Mia não acabou naquele dia. Durou meses ainda,  meses de muitas brigas e discussões. Woody conta que Mia ligava pra ele várias vezes por dia, a qualquer hora da noite, e o ameaçava. Ela entregou a ele um cartão de Valentine's Day, em fevereiro, com a foto da família e agulhas espetando cada coração, enquanto uma faca (com o cabo coberto por uma foto de Soon-Yi) cortava o seu (imagem ao lado). 
Apenas 2 ou 3 meses antes, em dezembro de 91, Woody tornou-se o pai adotivo de Dylan, então com 6 anos, e Moses, 13. Para que isso fosse possível, Mia teve que escrever uma carta recomendando Woody como pai. Porém, algumas coisas a incomodavam: Woody brincava de por a cabeça no colo de Dylan e a encorajava a colocar o polegar dele em sua boca.
Ronan e Mia em foto recente
Mia achava que a proximidade de Woody com Dylan era anormal, e Woody achava que a proximidade de Mia com Satchel era anormal (Satchel, hoje Ronan, é o único filho biológico de Woody e Mia. Em novembro do ano passado, a Vanity Fair requentou as acusações contra Woody, e Maureen Orth perguntou a Mia se Ronan era filho de Frank Sinatra, ao que Mia respondeu “Possivelmente”). 


Devido às reclamações de Woody e Mia, em 1990 tanto Dylan quanto Ronan foram avaliados por psicólogos, e passaram a fazer terapia. Woody também teve sessões com a Dr. Susan Coates (dois anos depois, Dr. Coates disse no tribunal que entendia a preocupação de Mia em relação a Woody e Dylan. Segundo a psicóloga, “Eu não via como algo sexual. Mas eu via como algo inapropriadamente intenso que excluía todo mundo”). 


O dia 11 de julho de 1992 marcou o aniversário de 7 anos de Dylan, e Mia convidou muita gente, incluindo Woody, para a festa na sua casa de campo em Connecticut. Mia havia pedido a Woody para “não monopolizar Dylan”. Mas chegou um ponto na festa em que ele levou Dylan para brincar no lago. Mia ficou furiosa. 


Ele dormiu no quarto de hóspedes, como de costume. Ao acordar, encontrou em sua porta um bilhete de Mia dizendo: “Molestador de crianças em festa de aniversário! Moldou e então abusou de uma irmã. Agora se empenhando na irmã mais nova. Família enojada”. 
Porém, o dia fatídico, o dia em que Dylan descreve em sua carta, foi 4 de agosto. Esta é a versão de Mia do que aconteceu neste dia, na sua casa de campo, segundo o que foi publicado em 1992 na Vanity Fair (minha tradução):


“Woody foi a Connecticut visitar seus filhos, e Mia e Casey [uma amiga] foram fazer compras, levando duas das crianças adotivas mais recentes -– uma menina vietnamita cega chamada Tam, 11, e Isaiah, um bebê negro de 7 meses nascido de uma mãe viciada em crack. Enquanto eles estavam fora, houve um breve período, talvez 15 minutos, em que Woody e Dylan desapareceram de vista. A babá que estava dentro da casa procurou por toda parte por eles, mas não conseguiu encontrá-los. A babá fora da casa também procurou e concluiu que os dois deviam estar dentro em algum lugar. 


Quando Mia voltou pouco depois, Dylan e Woody estavam em casa, e Dylan estava sem calcinha. (Allen disse depois que não havia estado sozinho com Dylan. Ele se negou a entregar amostras de cabelo e impressões digitais à polícia de Connecticut a menos que fosse assegurado que nada que dissesse poderia ser usado contra ele). Woody, que odiava o campo e trazia seu próprio tapete de banheiro para evitar germes, passou a noite no quarto de hóspedes perto da lavanderia próxima à garagem e foi embora na manhã seguinte. 


Naquele dia, 5 de agosto, Casey chamou Mia para relatar algo que a babá lhe havia dito. No dia anterior, a babá de Casey estava na casa procurando uma das crianças e ficou surpresa ao entrar na sala de TV e ver Dylan, no sofá, usando um vestido, e Woody ajoelhado no chão a segurando, com o rosto dele no colo de Dylan”. 
Assim que Mia perguntou a Dylan sobre isso, a menina contou que ela e o pai foram ao sótão e que, se ela ficasse quieta, ele a colocaria num filme e a levaria a Paris. Quando, segundo Mia, ele tocou “na parte íntima” de Dylan, Dylan disse a ele: “Isso dói. Eu sou só uma criança pequena”. 



No mesmo dia, Mia levou Dylan ao pediatra, que perguntou onde era a parte íntima que seu pai havia tocado, e ela apontou para o ombro. No dia seguinte elas voltaram ao pediatra, e Dylan contou o que havia contado a Mia. O pediatra examinou Dylan e disse que ela estava “intacta”, mas que ele precisaria, por lei, reportar o caso à polícia. Mia ficou desesperada. Ela não queria que aquilo vazasse.



Não sei se vocês conseguem imaginar o circo midiático que teve início. Todo dia tinha notícia fresquinha sobre Woody e Mia. Era como se toda a imprensa fosse um tablóide sensacionalista. Diziam que Mia tinha tentado suicídio. Que Woody a queria de volta. Que Mia quebrou uma cadeira em Soon-Yi. Que Woody não gostava de Ronan e o havia chamado de “bastardinho”. Que Mia gostava demais de Ronan, e por isso não dava atenção a Dylan. 


Que Soon-Yi era retardada (vejo até feministas, vinte anos depois, repetindo isso, tirando a agência de uma moça de 19 ou 21 anos. Recomendo que vejam o documentário Woody Allen em Concerto, de 1998, onde Soon-Yi aparenta ser espirituosa e inteligente. Quem a vê como “a vítima com problemas cognitivos de quem uma figura paterna tirou proveito” não deve entender como Woody e Soon-Yi estão casados há 16 anos). Que o casamento entre Mia e Woody já tinha acabado quando Mia encontrou as fotos. Era todo dia uma nova revelação pra acabar com a reputação dos dois (e claro que não podia faltar o repertório de piadas racistas contra Soon-Yi).


Como a carreira de Woody não foi encerrada naquele momento, é um milagre -- de cada dez cartas que chegavam às redações, nove eram contra ele. Por mais que Mia tenha ficado com fama de ex-esposa histérica e ressentida (fama esta reforçada pela declaração do advogado de Woody dada ontem, “É trágico que após vinte anos uma história inventada por uma amante vingativa volte à tona depois de ter sido completamente rejeitada por autoridades independentes. A culpada pela agonia de Dylan não é Dylan nem Woody Allen”), Woody ficou com a amoralidade de trocar a parceira pela filha dela, 37 mais jovem que ele, e com a suspeita de ter abusado sexualmente de Dylan, sua filha de 7 anos. Essa suspeita estará no seu obituário quando ele morrer.
No entanto, em 1992, o caso foi investigado durante seis meses pela prestigiosa Clínica de Abuso Sexual Infantil do hospital Yale-New Haven, que já havia investigado cerca de 1,500 casos similares. Foi o promotor do caso que escolheu a clínica. Os psicólogos falaram com Dylan e as outras crianças inúmeras vezes, e entrevistaram Woody para traçar um perfil psicológico e decidir se ele era um pedófilo. 


As duas perguntas principais que um trio de três psicólogos, duas delas mulheres, tinham que responder eram: Dylan foi sexualmente abusada? Ela estava falando a verdade? De acordo com Meade, “Na opinião dos especialistas, as respostas para as duas perguntas eram não. Não havia evidência física de abuso sexual e, portanto, nenhuma chance de Woody haver sexualmente molestado sua filha. O relato de Dylan parecia ser as fantasias de uma criança emocionalmente vulnerável vivendo com uma família perturbada, uma resposta ao stress que ela não podia suportar.” 


Mesmo diante dessa conclusão, o promotor resolveu seguir com as investigações. Ele preferiu não fazer uma acusação formal para evitar um julgamento traumático para a criança. Foi uma declaração no mínimo estranha (algo como "acredito que você seja culpado, mas não quero processá-lo, e não te darei a chance de ser inocentado"), e o promotor foi brevemente suspenso.


Woody nunca foi condenado por nada, mas perdeu o processo em que pedia a custódia de Dylan, Moses, e Ronan. O juiz, que chamou Woody de “insensível e não confiável”, determinou que o cineasta não poderia visitar Dylan, e que Moses deveria decidir por ele mesmo se queria vê-lo (Moses não quis. Hoje, ele é um fotógrafo de 36 anos que não mantém contato com Mia, e que voltou a falar com seu pai e com Soon-Yi. Ele contou ao documentarista Robert Weide que o que se passou naquela casa em 1992 foi uma “lavagem cerebral”). Ronan iria ver seu pai em três visitas semanais supervisionadas, mas elas não continuaram por muito tempo.


Pra mim, o que pega mesmo é o timing. Se o abuso sexual tivesse ocorrido antes, em 91, por exemplo, eu não hesitaria em acreditar que aconteceu. Mas agosto de 92 foi no meio do escândalo.

Como disse Woody ao programa de TV 60 Minutes, em 92: “Vamos ser racionais. Tenho 57 anos. Não é ilógico que, no meio de uma briga amarga e mordaz por custódia, eu vou dirigir até Connecticut, onde ninguém gosta de mim e onde estarei numa casa cheia de inimigos, e de repente, durante a visita, eu escolha esse momento da minha vida para me tornar um molestador?”
Woody e Dylan nunca mais se viram ou se falaram depois daquele dia.


O relato de Dylan Farrow é triste e chocante, e eu, como feminista que luto todos os dias para combater a cultura de estupro, fico feliz que suas palavras tenham atraído tanta atenção. Espero que este caso marque o começo de uma nova era em que o senso comum não duvide da palavra da vítima. Mas vamos fazer isso sem linchamento do acusado. Todo caso precisa ser investigado e julgado antes que haja uma condenação.