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domingo, 5 de janeiro de 2020

Drácula ganha sangue novo, agora em série / O que se sabe sobre o vampiro


Drácula ganha sangue novo, agora em série; o que se sabe sobre o vampiro

A estreia de produção na Netflix sobre o conde da Transilvânia acompanha a avalanche de livros e filmes em torno do mito dos imortais


Jacinto Antón
4 Janeiro 2020

“Bem-vindo à minha casa! Faça o favor de entrar! Entre..., entre sem temor.” Bastam as palavras enganosamente gentis do conde Drácula a seu cândido convidado Jonathan Harker, no portão de seu castelo nos Cárpatos, para entrarmos, entre um rangido de correntes e ferrolhos e uma súbita corrente de ar gelado e pútrido, no tenebroso mito do vampiro e no universo de seu monarca indiscutível, o velho aristocrata da Transilvânia. Depois de 123 anos (o livro Drácula, de Bram Stoker, foi publicado em maio de 1897), o rei dos sugadores de sangue goza de excelente saúde, como todo o mito universal em que se imbrica, um mito que remonta ao alvorecer da civilização e que se revelou tão imortal quanto as criaturas que o compõem. Envoltos em camadas de papel e celuloide ou em mortalhas digitais, os vampiros voltam e voltam de suas tumbas imemoriais para continuar nos surpreendendo, aterrorizando e ocasionalmente divertindo, enquanto levantam um espelho no qual eles não se refletem, é claro, mas nós mesmos.

Gary Oldman
Bram Stokers's Dracula
Coppola


O poder do vampiro continua incólume neste amanhecer dos anos 20 do século XXI, como demonstram suas contínuas metamorfoses e uma corrente —impossível não qualificá-la de sanguínea— de novas criações e estudos em torno do mito. Quando —já faz 40 anos!— do romance Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice (Rocco, 1977), que trouxe tantas mudanças (agora se fala de uma série de televisão sobre os 15 livros de suas Crônicas Vampirescas completas, com ela mesma como produtora), 28 anos do Drácula de Coppola, seis de Crepúsculo e cinco de True Blood, parece que estamos em outra big vamtire Renaissance.

Neste sábado acontece a estreia da minissérie Drácula, da BBC, na Netflix, adaptação aparentemente rigorosa do clássico, inclusive com a irmã Aghata (a freira que cuida de Harker em Budapeste), pelos criadores da série Sherlock Holmes e com o dinamarquês Claes Bang no mordedor rôle titre; também estão em andamento uma nova Buffy Caça-vampiros, desta vez com uma atriz afro-americana, e um filme com Jared Leto que levará à tela grande o vampiro super-herói da Marvel Comics, Morbius.

Claes Bang


Tivemos revisitações do mito muito estimulantes, como Deixa Ela Entrar —o romance, publicado no Brasil pela Globo Livros, de John Ajvide Lindqvist, e o comovente filme de Tomas Alfredson, com seu remake norte-americano—, Byzantium, de Neil Jordan, a história da vampira iraniana pós-punk de Garota Sombria Caminha pela Noite e Daybreakers, com Ethan Hawke e Williem Dafoe. Embora provavelmente o destaque mais recente seja o hilariante e escandaloso O que Fazemos nas Sombras, filme em forma de reality show sobre três vampiros decadentes do século XVIII que dividem um apartamento em uma localidade da Nova Zelândia e que são seguidos em seu dia a dia (bem, noite a noite) por uma suposta equipe de documentário de televisão —inesquecível a cena em que os vampiros não podem entrar em uma boate porque o porteiro não os convida a entrar. O filme, com muita carga canônica, apesar de sua iconoclastia, teve no ano passado um remake em formato de série de televisão com dez episódios e ambientado em Nova York, com a inclusão de uma vampira por razões de igualdade de gênero no além-túmulo.

Claes Bang


Certamente, lâmias, íncubos e súcubos, revenants, nachzehrers, vrykolakas, nosferatu e outros parentes à parte, nossa configuração do vampiro tem como grande referência o Drácula, o big daddy dos mortos-vivos. Provavelmente sobre ninguém se escreveu tanto quanto sobre Drácula, com exceção de Jesus Cristo e do general Custer, e parecia —equivocadamente— que tudo havia sido dito sobre o personagem e sua criação. Os próprios H. P. Lovecraft e Stephen King escreveram sobre o conde. O primeiro não tinha em grande estima o romance nem Stoker (viu o manuscrito original e lhe pareceu “desleixado”), possivelmente porque não havia nenhuma divindade polpuda e inominável. O segundo, por outro lado, é fã de ambos e, além de realizar a melhor reescrita moderna de Drácula (A Hora do Vampiro, 1975, aquele que assina este texto tem uma edição com dedicatória), consagrou-lhe páginas esclarecedoras em Dança Macabra (Suma de Letras, 2013). No livro, King enfatiza como Drácula transborda de energia sexual e aponta, sem rodeios ou falso pudor, coisas como que o episódio do sonho úmido em que Harker se encontra com as três voluptuosas vampiras inclui uma descrição muito clara de uma felação e que por seu lado Lucy Westenra no encontro com o próprio conde “está gozando de prazer”. Mais judiciosamente, e não tão explicitamente, Lacan se referiu à aura de angústia do vampiro em relação à pulsão oral, o que remeteria ao esgotamento do seio materno...

Mas, falávamos, nem tudo está dito. E são muitíssimas as novidades e esclarecimentos trazidos por novos ensaios estimulantes, começando com História de Drácula (Arpa, 2019), do britânico Clive Leatherdale, especialista mundialmente reconhecido no assunto. Leatherdale defende o romance, que disseca minuciosamente, diante dos filmes, a maioria dos quais, denuncia, deturpou a obra original. Uma das afirmações feitas pelo autor, e que surpreenderá muita gente, é que, apesar do que Coppola conta em seu Drácula e toda uma corrente bibliográfica, a contribuição da figura histórica de Vlad Tepes, o Empalador, para o romance foi mínima e Stoker provavelmente mal tinha ouvido falar dele. O nome de Vlad não aparece no romance e o voivoda real foi acusado de muitas coisas atrozes, certamente, mas não de vampirismo.

Claes Bang

Leatherdale concorda com Stephen King (e com qualquer um que ler com atenção) que Drácula está carregado de grande imaginação sexual: aponta que basta substituir o coito pelos beijos vampíricos e o sêmen pelo sangue e você já tem quase o pornô gótico. O estudioso percorre as tradições vampíricas que convergem e culminam no romance oferecendo dados tão interessantes como que sábado é o melhor dia para caçar vampiros (anote isto), que a transfixação (vulgarmente conhecida como estacada) deve ser feita no primeiro golpe ou que, além da cruz e do alho, na Valáquia era eficaz contra os mortos-vivos esfregar as mãos com a gordura de um porco sacrificado no dia de Santo Inácio. O conde Drácula, diz, é o resultado da justaposição do vampiro do folclore com o vampiro literário: daí resulta essa curiosa mistura da pobre criatura malcheirosa e faminta (tão bem sintetizada na cena de Coppola na qual Gary Oldman lambe a navalha com que Harker se cortou ao se barbear) e o gótico aristocrata maldito e romântico da estirpe de Byron, via Polidori.

Drácula, certamente, no romance é imune à luz solar, embora esta diminua seu poder (para um excelente resumo canônico dos poderes, limitações e da história do vampiro, veja Drácula, a entrada do diário de Mina de 30 de setembro em que recolhe os ensinamentos de Van Helsing sobre o assunto). Leatherdale especula que sua morte no final (esperemos que ninguém nos acuse de fazer spoiler) não tem nenhuma pinta de ser definitiva e que talvez Stoker, adiantando-se, entre outros, aos filmes da produtora inglesa Hammer e seu sobrinho-bisneto Dacre Stoker, pensava em uma continuação. O dublinense Stoker (1847-1912) é um tipo que quanto mais você o conhece, mais fascinante ele é. Sabia que ele passou sete anos como uma criança prostrada sem poder andar, sofrendo do que parece ter sido uma paralisia histérica? (foi sugerido que foi por ter visto a mãe menstruar: um grande trauma para um vitoriano). Portanto, não é incomum que tenha escrito Drácula. O fato de Drácula ser ambientado na época vitoriana, a dele, faz com que não percebamos que na verdade o autor levou seu vampiro das lendas ao mundo moderno, e o quanto isso chocou e surpreendeu seus contemporâneos. De alguma forma Stoker fez com o material vampírico tradicional o que mais tarde Stephen King fez com seu Drácula, ao transportá-lo em A Hora do Vampiro para uma localidade atual dos Estados Unidos.

Gary Oldman
Bram Stoker's Dracula (Coppola)

Drácula iria se chamar “conde Wampyr” e seria da Estíria (o que é habitual para um vampiro comme il faut), como sabemos pelas notas preparatórias encontradas em 1970 e pelo romance que o autor entregou a seus editores, O Morto-vivo. A decisão final de intitulá-lo Drácula, que ignoramos ter sido de Stoker ou de outra pessoa, foi realmente inspiradora. Embora realmente inspiradora, observa Leatherdale, seja a cena em que o grupo de homens entusiastas caçadores de vampiros do romance empala a vampira Lucy com a “estaca-falo”, um ato com reminiscências de defloramento selvagem na qual Stoker também se atreveu a retratar outro tabu vitoriano: o orgasmo feminino. Na verdade, quando se relê a passagem com essas chaves, as conotações sexuais são de matar. Outro episódio obscuro e importante em que o autor entra é o de Mina obrigada a beber o sangue de Drácula, que abre uma veia no peito para isso, no qual Leatherdale acredita que Stoker descreve uma felação soberana.

As relações de gênero em Drácula rendem um tratado. Lucy e Mina (e não mencionemos as três vampiras do castelo) mostram uma rebeldia de diferentes graus e estratégias contra a dominação patriarcal, manifestada pelo conde e pelos caçadores de vampiros. Coisas estranhas acontecem no próprio campo masculino: as transfusões para Lucy significam que seus pretendentes misturam seus sangues e que Drácula, rei do sadismo oral, em última instância bebe o sangue de todos. Bram Stoker estava consciente do que estava escrevendo ou esse inquietante material fazia parte dos recônditos desejos e medos inconscientes da sociedade vitoriana? Os vitorianos ficaram excitados com Drácula? Leatherdale diz que sim e acredita que Stoker teria ficado indignado com a sugestão de que escreveu uma prosa lasciva.



Em relação ao caráter de Stoker, são sensacionais as contribuições de sua mais recente biografia, a monumental Something in the Blood (Es Pop Ediciones, 2017), de David J. Skal, outro grande especialista. Skal, que também relativiza a relação de Drácula com Vlad e destaca que não há nada no romance sobre a busca de um amor perdido através dos séculos por parte do conde –então não há nada de paixão no transilvano–, encontra nas pantomimas natalinas típicas da tradição irlandesa e dos contos folclóricos e de fadas que Stoker conheceu na infância a influência essencial do romance, embora reconheça que o autor sugou de todos os lugares (com o perdão da expressão) e novamente afirma que em sua história “tudo nos leva ao sexo” e que seu protagonista é “ o maior monstro sexual de todos os tempos”. Sobre se Stoker era gay, uma questão amplamente discutida, Skal, que lhe reconhece uma “ambiguidade sexual”, revela a totalidade das cartas apaixonadas que escreveu a Walt Whitman e ressalta que o casamento com sua mulher Florence foi “estético” como o de Oscar Wilde. Pelo visto, a frase de Drácula às vampiras “este homem é meu!” veio das profundezas de Stoker.

Skal, que endossa a teoria de que Stoker morreu de sífilis terciária, contraída de prostitutas ou em bordéis masculinos, sugere que o principal modelo de Drácula foi o ator Jacques Damala, famoso viciado em morfina e que parecia, de acordo com o próprio Stoker, um morto-vivo. A icônica capa preta do conde e o smoking não são atributos dados a ele pelo criador —que só menciona a capa de passagem na cena em que Drácula desliza de cabeça para baixo pelas paredes de seu castelo—, mas pelo ator Hamilton Deane, que protagonizou uma adaptação do romance para o teatro em 1924. Stoker nunca imaginou seu vampiro como um aristocrata vestido de gala, da maneira que Bela Lugosi o personificaria de memoravelmente.

Claes Bang


Em outro livro apaixonante, Miedo y Deseo, Historia Cultural de Drácula (de 2017, não publicado no Brasil), o historiador Alejandro Lillo aponta a inquietante evidência de que a história não é narrada de maneira objetiva. Lillo nos sugere duvidar do que o que é explicado em Drácula —narração baseada em diferentes materiais, organizada, nos dizem, por Harker— seja a verdade, e destaca que se deixa todos os personagens falarem por si mesmos, exceto o conde, que não pode se defender nem se justificar, o coitado. Aponta preocupantes e suspeitas exclusões de cartas e trechos de diários, assim como longos silêncios, lacunas e contradições, e conclui que, como sempre, são os vencedores, que esmagam o inimigo sem piedade, os que escrevem história e silenciam os dissidentes. Não obstante, nos sugere ler com atenção para descobrir, sob a camada de uniformidade do romance, “as outras vozes de Drácula”, um maravilhoso convite para continuar esquadrinhando a mente e a alma de Bram Stoker e a entender o vampiro.

EL PAÍS

sábado, 8 de novembro de 2014

Como eram os egípcios na cama




Como eram os egípcios na cama?

Uma apresentação no Congresso Ibérico de Egiptologia tratou do controvertido tema da sexualidade na época dos faraós


JACINTO ANTÓN Barcelona 18 SET 2006 - 15:04 BRT



Uma cena apaixonada do filme O Retorno da Múmia, com a sedutora Anck-Su-Namum (Patricia Velásquez) e seu amante eterno, Imhotep (Arnold Vosloo).
Temos uma ideia geral da sexualidade do antigo Egito que se baseia em boa parte nas passagens libidinosas de O Egípcio de Mika Waltari - Nefernefer nua nadando numa piscina -, no profundo decote da voluptuosa Cleópatra de Elizabeht Taylor e nos romances de Terenci Moix, nos quais não é raro que um escravo queira soprar na flauta do faraó. Mesmo os filmes de múmia têm um componente erótico - lembre-se do papel de Patricia Velásquez como Anck-Su-Namum e suas roupas reduzidas em O Retorno da Múmia. Apoiada em ingredientes como esses, prevaleceu a ideia popular de que a civilização da época dos faraós tinha, em estranha combinação com a obsessão pela morte e o além, e um sentido bastante espiritual da existência, um alto componente de lascívia e falta de pudor, como testemunhariam, por outro lado, as imagens arqueológicas de bailarinas semi-nuas, princesas com roupas transparentes e deuses com falo ereto.
Mas como eram, na verdade, os antigos egípcios nesse aspecto tão íntimo de sua cultura? Como eram, para falarmos de forma aberta, na cama? Um povo tórrido como seu clima? É difícil se enfiar nas alcovas de um povo desaparecido e o tema foi pouco tratado, algo que não é estranho por causa do puritanismo de uma disciplina que esteve nas mãos dos egiptólogos anglo-saxões. Existem uma monografia, canônica,Sexual life in ancient Egypt, de Lise Manniche (1987), e na Espanha um livro descontraído, com muita informação, do doutor em História Antiga pela Universidade Complutense José Miguel Parra Ortiz, Vida amorosa en el antiguo Egipto (Aldebarán, 2001). Em todo caso, o desenho que aparece através dos escassos indícios oferece uma realidade muito diferente do clichê popular.
Frente à falta de investigações neste terreno, acaba sendo muito interessante a que está realizando  o estudioso catalão Marc Orriols sobre a iconografia erótica do antigo Egito, que ele apresentou no III Congresso Ibérico de Egiptologia, em La Laguna (Tenerife) e no qual, sob os auspícios da Universidade de La Laguna, seu Centro de Estudos Africanos e o Instituto de Astrofísica das Canárias, participaram os maiores egiptólogos espanhóis. Orriols, que trabalha basicamente com a época do Império Novo, centrou-se na análise da cópula a tergo (por trás) que aparece especialmente representada nas famosas óstracas (fragmentos de pedra de calcário com desenhos informais) e grafites da cidade dos construtores de tumbas de Deir el Medina. A tergo? “Bem, por trás, mas por via vaginal”, explica o investigador com o tom mais neutro que é capaz. “Dispomos de poucas representações da cópula humana na iconografia egípcia e a que aparece com mais frequência é essa posição com o homem penetrando a mulher desta forma. Isso levou a supor que se tratava de uma prática habitual, talvez a forma característica de fazer isso no antigo Egito.”


Desenho de uma óstraca de Deir el Medina.
O antes citado Parra é, precisamente, um dos que sustentam, em seu livro, que os egípcios tinham essa inclinação (que escolha de palavra). “No entanto, quando comecei a estudar o tema”, diz Orriols, “fiquei surpreendido de que na célebre análise da conduta sexual de 190 culturas humanas de Beach e Ford (Patterns of sexual behavior, 1955), não aparecia nenhuma na qual fosse preponderante a cópula por trás. Por que ia ser uma posição canônica então no Egito faraônico? Acho que é preciso procurar outras explicações, outra forma de ligar cultura e prática. Minha ideia é que essas representações não representam, na verdade, cópulas por trás, mas em sua maioria, sexo anal.”

Orriols centrou-se no estudo da cópula "a tergo", por trás
Orriols considera que se trataria não de cenas sensuais, mas de algum tipo de humilhação, de demonstração de poder sobre opartenaire (a sodomização era isso no Egito faraônico; passividade = debilidade) e que os protagonistas seriam ambos masculinos em uma proporção maior do que parece.
Então, se os egípcios não faziam isso na maior parte das vezes a tergo, como faziam? Tinham alguma preferência? “A verdade é que não sabemos”, reconhece Orriols. “O que é significativo é o pouco que aparece o ato sexual em geral no mundo egípcio, antes da época greco-romana. Temos uma relativamente abundante iconografia referindo-se ao ato sexual entre divindades, mas pouquíssimas no âmbito humano, pouco mais do que trinta cópulas no total”. Certamente, os egípcios contavam em seu panteão com o deus Min, em perpétua ereção; Hathor podia ser bastante desinibida, e Geb e Nut e Osíris e Ísis (cada casal por seu lado) aparecem de maneira recorrente em imagens por todo o Egito. Mas tratava-se de uniões sagradas.
Por outro lado, no âmbito privado, cotidiano, explica Orriols, “temos pouca coisa, as óstracas, algum grafite como o de Wadi Hammamat. E temos o excepcional papiro erótico de Turim, de época ramésida, no qual aparecem desenhadas uma série de encontros sexuais muito explícitos entre homens adultos com grandes pênis e mulheres jovens no que foi interpretado com frequência como cenas de um bordel”. No papiro há nove cenas de cópulas, 3% a tergo. “Os desenhos de homens e seus desmesurados membros e as posturas acrobáticas das mulheres sugerem que estamos na frente de uma peça satírica, mas a verdade é que não conhecemos o propósito do papiro, que é um exemplar único.”
Parra, que também participou do congresso - com uma apresentação sobre um assunto tão atual quanto a violência doméstica (mas no contexto do antigo Egito) -, opina que o papiro de Turim poderia guardar a lembrança das vivências de um personagem em um prostíbulo, montado por ele para seu ócio pessoal.

A felação não está documentada ainda, com a exceção de algum deus muito elástico
Além da cópula a tergo, está representada no Egito a posição do missionário, mas “só em duas cenas, uma delas duvidosa”, diz Orriols. A outra, com uma garota na cama e um homem penetrando-a por cima, “parece ser um determinativo”, um sinal da escrita hieroglífica e não uma imagem erótica propriamente dita. Também existe alguma representação do que parece ser sexo em pé. Nos textos aparece algo de fetichismo, algumas alusões a pedofilia, prostituição masculina e zoofilia. Pouco mais. Nada que se possa comparar com a proliferação de cenas sexuais na Grécia ou Roma (pensemos na desavergonhada Pompeia). A felação não está documentada ainda - com a exceção de algum deus muito elástico que fazia em si mesmo -, apesar do querido Terenci.


Grafite de Deir el-Bahari que acredita que representa Hatchepsut copulando.
Os egípcios eram, então, um povo pacato? “Ao contrário do clichê, acho que sim”, aponta Orriols. “Eram explícitos em textos sagrados, mas não, em geral, nos profanos. Se não existisse alguma espécie de tabu, a cópula apareceria representada graficamente, de forma mais abundante e oficial. Por exemplo, no contexto funerário.” A fama de atrevidos dos egípcios “vem das fontes clássicas greco-latinas que imaginaram o Oriente como um lugar de luxo e luxúria”. A propaganda romana contra Cleópatra, que a chamava de libertina, também contribuiu. “Os egípcios usavam pouca roupa pelo calor e a nudez é habitual na representação dos trabalhadores. Isso pode terminar sendo erótico para nós, mas certamente não era para eles. Acontece o mesmo com as transparências dos vestidos. Talvez a marcada sexualização das mulheres tinha algum significado relacionado com a fertilidade mais do que com o erotismo.” Tudo isso não quer dizer que para os egípcios, o sexo tivesse conotações pecaminosas no sentido judaico-cristão. O ato sexual com penetração - transar, quer dizer - não apresentava, segundo explica Lynn Meskell em seu estupendo Private life in New Kingdom Egypt (2002) nenhuma conotação, nem positiva nem negativa. Era chamado de nk. Então este era o termo, para continuar procurando.