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domingo, 25 de novembro de 2018

Vargas Llosa / Juízes e presidentes

Fernando Vicente


Juízes e presidentes

Os magistrados peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado estão tentando transformar a realidade do Peru em uma democracia de verdade e sem ladrões

Mario Vargas Llosa
25 nov 2018

O ex-presidente peruano Alan García, cercado pela Justiça devido a supostos casos de má administração e recebimento de propinas durante seu segundo Governo, relacionados à construção do metrô de Lima, optou por pedir asilo na Embaixada do Uruguai alegando ser alvo “de perseguição política”. O pretexto é simplesmente grotesco, porque no Peru de hoje não há um único preso político e ninguém é perseguido por suas ideias ou filiação partidária; e provavelmente nunca houve tanta liberdade de expressão e de imprensa como a que existe hoje no país.
Naturalmente, o outro lado da moeda é que os quatro últimos chefes de Estado são alvo de investigações por suspeita de roubos. Eles se encontram investigados pelo Poder Judiciário, com ordens de prisão e embargo de seus bens, ou foragidos. Por sua vez, o ex-ditador Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão por seus crimes, está refugiado sob tratamento intensivo na Clínica Centenário de Lima, de onde, caso saia, voltará para a cadeia da qual o tirou um indulto indevido do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski. Este último, também com ordem de prisão, é alvo de uma investigação judicial por lavagem de dinheiro, assim como o ex-presidente Ollanta Humala, que, com sua mulher, Nadine, ficou dez meses em prisão preventiva. O outro ex-presidente, Alejandro Toledo, fugiu para os Estados Unidos quando se descobriu que tinha recebido cerca de 20 milhões de dólares (76 milhões de reais) de propinas da Odebrecht, e agora é alvo de um processo de extradição movido pelo Governo peruano.
Essa coleção de presidentes suspeitos de corrupção — eu me acuso de tê-los promovido e haver votado neles, acreditando que fossem honestos — justificaria o mais sombrio pessimismo sobre a vida pública do meu país. No entanto, depois de ter passado oito dias no Peru, volto animado e otimista, com a sensação de que, pela primeira vez em nossa história republicana, há uma campanha eficaz e valente de juízes e procuradores para punir de verdade os presidentes e funcionários desonestos, que aproveitaram seus cargos para cometer crimes e enriquecer. É verdade que nos quatro casos até agora só há presunção de culpa, mas os indícios, principalmente em relação a Toledo e García, são tão evidentes que é muito difícil acreditar em sua inocência.
Como em boa parte da América Latina, o Poder Judiciário no Peru não tinha fama de ser aquela instituição incorruptível e sábia encarregada de zelar pelo cumprimento das leis e punir os crimes; e tampouco de atrair, com seus salários medíocres, os juristas mais capazes. Pelo contrário, a má fama que o rodeava fazia supor que um grande número de magistrados não tinha a formação e a conduta devidas para administrar justiça e merecer a confiança dos cidadãos. No entanto, de algum tempo para cá, uma revolução silenciosa está em andamento no seio do Poder Judiciário, com o surgimento de um punhado de juízes e procuradores honestos e capazes, que, correndo os piores riscos, e apoiados pela opinião pública, conseguiram corrigir aquela imagem, enfrentando os poderosos — tanto políticos como sociais e econômicos — em uma campanha que levantou o ânimo e encheu de esperanças uma grande maioria de peruanos.



A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina

A corrupção é hoje o maior inimigo da democracia na América Latina, corroendo-a a partir de dentro, desmoralizando a cidadania e semeando a desconfiança em relação a instituições que parecem nada mais do que a chave mágica que transforma as maldades, os crimes e os privilégios em ações legítimas. O que ocorreu no Brasil nos últimos anos foi um anúncio do que poderia ocorrer em todo o continente. A corrupção havia se espalhado por todos os cantos da sociedade brasileira, comprometendo igualmente empresários, funcionários, políticos e gente comum, estabelecendo uma espécie de sociedade paralela, submetida aos piores compromissos e imoralidades, na qual as leis eram sistematicamente violadas em qualquer lugar, com a cumplicidade de todos os poderes. Contra esse estado de coisas se levantou o povo, liderado por um grupo de juízes que, amparados pela lei, começaram a investigar e a punir, enviando para a prisão aqueles que, por seu poder econômico e político, acreditavam ser invulneráveis. O caso da Odebrecht, uma empresa todo-poderosa que corrompeu pelo menos uma dezena de Governos latino-americanos para conseguir contratos multimilionários de obras públicas — sem suas famosas “delações premiadas”, os quatro ex-chefes de Estado peruanos estariam livres de problemas com a Justiça —, transformou-se praticamente no símbolo de toda aquela podridão. É isso que explica o fenômeno Jair Bolsonaro. Não é que 55 milhões de brasileiros tenham se tornado fascistas da noite para o dia, e sim que uma imensa maioria de brasileiros, farta da corrupção que tinha se transformado no ar respirado no Brasil, decidiu votar no que acreditava ser a negação mais extrema e radical daquilo que se chamava de “democracia” e era, pura e simplesmente, uma delitocracia generalizada. O que acontecerá agora com o novo Governo desse caudilho abracadabra? Minha esperança é que pelo menos dois de seus ministros, o juiz Sérgio Moro e o economista liberal Paulo Guedes, moderem-no e o levem a atuar dentro da lei e sem reabrir as portas para a corrupção.
Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo a Alan García, que não está sendo investigado por suas ideias e atuações políticas, e sim por crimes tão comuns como receber propinas de uma empresa estrangeira que competia por contratos multimilionários de obras públicas durante seu Governo. Seria como fornecer um álibi de respeitabilidade e vitimização a quem — se for verdade aquilo de que é acusado — contribuiu de forma flagrante para desvirtuar e degradar a democracia que, com justiça, esse país sul-americano se gaba de ter mantido durante boa parte de sua história. O direito de asilo é, sem dúvida, a mais respeitável das instituições em um continente tão pouco democrático como foi a América Latina, uma saída de emergência contra as ditaduras e suas ações terroristas para calar as críticas, silenciar as vozes dissonantes e liquidar os dissidentes. No Peru, conhecemos bem esse tipo de regimes autoritários e brutais que semearam sangue, dor e injustiças durante grande parte de nossa história. Mas, precisamente porque estamos conscientes disso, não é justo nem aceitável que em um período como o atual, no qual, em contraste com aquela tradição, vive-se um regime de liberdades e de respeito à legalidade, o Uruguaiconceda a condição de perseguido político a um dirigente que a Justiça investiga como suposto ladrão.



Seria uma vergonha se o Uruguai concedesse asilo ao ex-presidente peruano Alan García

Os juízes e procuradores peruanos que se atreveram a atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado contam com um apoio da opinião pública que o Poder Judiciário jamais teve em nossa história. Eles estão tentando transformar a realidade peruana em algo semelhante àquilo que o Uruguai representou durante muito tempo na América Latina: uma democracia de verdade e sem ladrões.





sábado, 14 de julho de 2018

Vargas Llosa / A ‘espanholita’ e o Príncipe Gurdjieff




A ‘espanholita’ e o Príncipe Gurdjieff

A odisseia de Patricia Aguilar no Peru me causa tristeza e admiração. E se fosse feliz com sua deplorável vida? Respeitar sua vontade seria então o justo


Mario Vargas Llosa
14 Jul 2018

“Espanholita” não por machismo falocrático nem pela paixão dos peruanos pelos diminutivos, mas por carinho, por parecer tão frágil, magrinha e vulnerável, lá no distrito de San Martín de Pangoa, em plena selva amazônica, onde os mosquitos devem tê-la comido viva, com sua bebezinha de um mês nos braços e esses olhões de moça valente, que descobriu a verdade e sabe que este mundo vai desaparecer, mas que ela se salvará com a ajuda do Príncipe Gurdjieff e será a mãe de uma nova humanidade.
Imagino perfeitamente sua história. Patricia Aguilar, de 16 anos, está ali em sua terra natal, Elche (Alicante), sofrendo pela morte de um tio muito querido, navegando na Internet. E de repente aparecem na tela as palavras salvadoras, vindas do outro lado do mundo, o Peru. Primeiro, elas a intrigaram, depois a seduziram e, por fim, a convenceram. Este mundo iria acabar por causa da insensatez e crueldades dos humanos, mas alguns poucos se salvariam, graças ao Príncipe Gurdjieff e sua sabedoria para transpor as aparências e chegar à verdade crua e dura. Com ele sobreviveriam aqueles que escutassem sua mensagem. Que importância tinha para ela que aqueles textos estivessem repletos de erros de ortografia se comunicavam algo que chegava ao seu coração e lhe transmitia uma força desconhecida? Às escondidas de seus pais, Patricia manteve longas conversas com o guru peruano, que a instruía nas verdades gnosiológicas, astrais e esotéricas que possui e dava instruções que a jovem convertida seguia ao pé da letra.



Ao completar dezoito anos e, portanto, maior de idade, disse aos pais que iria jantar na casa de um amigo. Na verdade, desapareceu, levando seis mil euros da família. Aterrissou em Lima, onde conheceu seu mestre, mentor e, desde então, amante. O Príncipe Gurdjieff tinha uma mulher legítima e pelo menos mais duas amantes. E filhos com todas elas. Vivia em um bairro periférico pobríssimo, mas a espanholita estava preparada para todos os sacrifícios. Ficou grávida e, como as outras mulheres do harém do qual agora fazia parte, se tornou vendedora ambulante para alimentar e vestir seu Príncipe e guru. Segundo a vizinhança, da moradia em que ele vivia com seu serralho e parvulário emergiam ruídos violentos, pancadas.
Aqui aparece o herói da história, segundo os jornalistas: Alberto Aguilar Berna, comerciante que fornecia o fermento a todas a padarias de Elche, homem modesto, trabalhador e inatingível pelo desânimo. Começou a mover céus e terra para encontrar a filha desaparecida. Denunciou seu sumiço à polícia de Alicante, mobilizou a opinião pública, conseguiu recursos e, quando soube que Patricia estava no distante Peru, partiu para esse remoto confim. Ali apresentou outra denúncia à polícia local. Ao mesmo tempo, fez investigações e chegou a descobrir o bairro em que vivia o Príncipe Gurdjieff: encheu-o de cartazes oferecendo dez mil soles de recompensa a quem lhe revelasse o paradeiro da moça.



Jovem resgatada nega ter sido sequestrada e diz estar contente com a filhinha dela e do xamã

Nessa altura, o bruxo, xamã e vigarista já havia fugido para Junín, várias centenas de quilômetros a leste de Lima, e se refugiara em um povoadinho amazônico, Alto Celendín, onde Patricia e as demais mulheres trabalhavam como garçonetes em um restaurante para lhe dar de comer. Alberto Aguilar Berna chegou lá, com policiais peruanos aos quais teve de pagar a viagem, a comida e a hospedagem, dado o orçamento exíguo da Polícia Nacional. Por fim, deram com ela e essa é a fotografia espalhada pelo mundo: a espanholita em bombachas floridas, de anatomia filiforme, com sua bebezinha nos braços e um olhar fixo e sereno, de quem desafia o mundo porque sabe que a verdade é sua.
A polícia capturou também o Príncipe Gurdjieff, cujo nome verdadeiro é Félix Steven Manrique Gómez. Tem 35 anos e, além de bruxo, guru, sedutor e fabulador, promete a suas sequazes femininas reduzir os seus quadris, se eles forem muito largos, aumentar os seios, se forem pequenos, e afinar o nariz. É dotado de uma vaidade espantosa. Assim que o capturaram pediu um cabeleireiro-barbeiro que lhe cortasse o cabelo e lhe fizesse a barba, para aparecer melhor nas fotografias da imprensa. É técnico eletricista, expulso de uma seita chamada Gnosis por conduta imprópria e, usando nomes e pseudônimos diferentes no Facebook e no YouTube, vinha anunciando fazia tempo o irremediável fim do mundo e sua recriação, graças a ele ser o escolhido.
Até agora tudo tem a aparência de uma história bastante comum, neste mundo de obscurantistas mais ou menos embusteiros e mocinhas crédulas. No entanto, em vez de um final feliz, os problemas de Alberto Aguilar Serna e sua esposa só estão começando. Porque sua filha Patricia, que está sendo “desprogramada” pelos psicólogos da polícia peruana, nega, pelo visto, que tenha sido sequestrada, afirma que está muito feliz com seu destino, com a filhinha que lhe fez o Príncipe Gurdjieff, e se nega a ser “salva”. Não nos esqueçamos que é maior de idade e que, a não ser que esteja irremediavelmente louca, pode fazer com sua vida o que bem quiser. É verdade que, como está vivendo ilegalmente no Peru, poderia ser expulsa para a Espanha, onde, disse sua simpática mãe, esperam “ela e a filhinha com os braços abertos”.



Sem vendedores de disparates e suas vítimas sendo “desprogramadas”, o mundo se despovoaria

Tenho tão pouca simpatia pelo Príncipe Gurdjieff como pelo Gurdjieff verdadeiro, aquele que, segundo Jean-François Revel, era um “verme bêbado” que, na Paris dos anos quarenta, seduzia com suas lorotas espiritualistas senhoras milionárias e intelectuais progressistas (incluindo ele, por um tempo) a fim de que lhe pagassem as bebedeiras. Mas se fossem meter na prisão todos os vendedores de disparates religiosos e nos dedicássemos a “desprogramar” quem acredita no que eles contam, o mundo, temo, ficaria despovoado. E, algo pior, a liberdade desapareceria.
No entanto, embora todos os livros esotéricos me produzam bocejos de crocodilo, sinto grande carinho pela filiforme Patricia, e sua odisseia me causa uma tristeza mesclada de certa admiração. Era feliz, levando a deplorável existência que levava ao lado do Príncipe, servindo-o, como as outras infelizes que também acreditavam nas idiotices com erros de ortografia que ele lhes dizia? Aqueles que a “desprogramam” lhe abrirão o caminho da normalidade? E se a convertem em uma moça bem alimentada, bem vestida, mas sem rumo, infeliz, convencida de que, como pessoa normal, perdeu sua alma e razão de viver?
Não digo que aconteça, mas pode acontecer, e nesse caso, o que é o mais justo? Acho que é deixá-la fazer aquilo em que acredita, o que a faça sentir-se melhor, respeitar o destino que ela escolher para a pequenina que engendrou nos braços daquele Príncipe de araque. A “normalidade” também pode ser temível quando é imposta pela força e consiste em aniquilar a liberdade dos outros, os diferentes, em relação aos quais acreditamos ser normais.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Musuk Nolte / A fotografia como arma de resistência indígena no Peru


A fotografia como arma 

de resistência indígena 

no Peru

O peruano Musuk Nolte resume em uma foto a luta da etnia ashaninka para sobreviver



    MUSUK NOLTE
    Estava anoitecendo. Havia pouca luz. “De repente, aconteceu algo mágico”, lembra o fotógrafo peruanoMusuk Nolte. E então ele disparou. Na frente da sua câmera, uma menina da etnia ashaninka se banhava, com os olhos fechados, no rio Ene, na região sul do Peru. Para Nolte, o resultado, que é possível ver nesta página, transcende seu valor gráfico: “É muito poderoso, uma metáfora”.
    O artista se refere à história por trás da foto, que ele mesmo resume. Nolte (Cidade do México, 1988) passou algum tempo na área, junto com os ashaninka. “Me sinto próximo deles”, afirma. A etnia amazônica sempre foi, em sua opinião, “uma das mais vulneráveis”. Encontra-se na chamada área VRAE, em emergência por causa do tráfico de drogas; “foi a mais afetada pelo terrorismo nos anos oitenta e noventa”, acrescenta Nolte. E, além disso, seu território e seu legado estiveram prestes a serem inundados, porque o local foi destinado para a construção da represa de Pakitzapango. Precisamente nesse contexto, Nolte tirou sua foto. E finalmente o projeto acabou paralisado pela forte oposição que recebeu.

    “A fotografia é um vínculo com a realidade para mim”, diz. Nolte vive de seu ofício, misturando fotojornalismo e imagens “mais de autor”, que mostrou em várias exposições individuais no Peru e em exposições coletivas por todo o planeta, de Nova York a Berlim, passando por Barcelona e Madri. A isso, na verdade, dedica-se há muitos anos, apesar de sua juventude. Uma semana depois de terminar seus estudos, começou a colaborar com o jornal peruano El Comercio, e desde então não parou.


    Entre seus projetos, muitos são capturados em preto e branco, já que Nolte considera que ajuda a “ir até o centro de uma história”. Ele também retratou várias vezes com sua câmera histórias de morte e dramas de suas terras. Como Chunghi, dedicado ao lugar “com o maior número de locais de sepultamento e vítimas do país”. OExpreso de la muerte, sobre uma série de assassinatos realizados pelo grupo terrorista Sendero Luminoso no dia 16 de julho de 1984 e cujas vítimas receberam, 27 anos depois, um segundo e por fim respeitoso enterro. “Como autor, fui me interessando cada vez mais pela violência no Peru. Às vezes ficamos anestesiados, nossa tendência é querer evitar certas coisas”. Mas a câmera dele não vai permitir isso.


    sábado, 19 de abril de 2014

    Vargas Llosa / Sair da barbárie


    Mario Vargas Llosa

    Sair da barbárie

    O Peru tem a oportunidade de superar a homofobia aprovando o projeto de Lei da União Civil do congressista Carlos Bruce. Contra isso está o obscurantismo agressivo da hierarquia eclesiástica


    19 de abril de 2014

    O Peru tem nestes dias uma oportunidade para dar mais um passo no caminho da cultura da liberdade, deixando para trás uma das formas mais difundidas e praticadas de barbárie, que é a homofobia, ou seja, o ódio aos homossexuais. O congressista Carlos Bruce apresentou um projeto de lei de União Civil entre pessoas do mesmo sexo, que conta com o apoio do Ministério da Justiça, da Defensoria Pública, das Nações Unidas e da Anistia Internacional. Os principais partidos políticos representados no Congresso, tanto de direita como de esquerda, parecem favoráveis à iniciativa, de forma que a lei tem muitas possibilidades de ser aprovada.
    Desse modo, o Peru seria o sexto país latino-americano e o 61º no mundo a reconhecer legalmente o direito dos homossexuais de viverem como casal, constituindo uma instituição civil equivalente (embora não idêntica) ao casamento. Se der esse passo, tão importante como ter finalmente se livrado da ditadura e do terrorismo, o Peru começará a reparar muitos milhões de peruanos que, ao longo da sua história, por serem homossexuais, foram escarnecidos e vilipendiados até extremos indescritíveis, presos, destituídos dos seus direitos mais elementares, expulsos de seus trabalhos, submetidos à discriminação e ao assédio na vida profissional e privada e apresentados como anormais e degenerados.
    Nesse exato momento, no previsível debate que esse projeto de lei provocou, a Conferência Episcopal Peruana, em comunicado da época das cavernas e de uma ignorância crassa, afirma que o homossexualismo “contraria a ordem natural”, “atenta contra a dignidade humana” e “ameaça a orientação saudável das crianças”. O inefável arcebispo primaz de Lima, o cardeal Cipriani, por sua vez, pediu que se faça um referendum nacional sobre a União Civil. Muitos nos perguntamos por que não pediu essa consulta popular quando o regime ditatorial de Fujimori, com o qual foi tão compreensivo, mandou esterilizar manu militari e com pérfidas mentiras milhares de camponesas (fazendo-as acreditar que iriam vaciná-las), muitas das quais morreram de hemorragia causada por essa criminosa operação.


    O fanatismo religioso e o machismo causam atropelos e sofrimentos a muitos cidadãos

    Há alguns anos, temo, uma iniciativa como a do congressista Carlos Bruce (que, diga-se de passagem, acaba de ser ameaçado de morte por um fanático) teria sido impossível, pela férrea influência que o setor mais troglodita da igreja católica exercia sobre a opinião pública em questões sexuais, e, embora a prática do homossexualismo fosse a opção exercida por um segmento considerável da sociedade, esse exercício era arriscado, clandestino e vergonhoso porque quem se atrevia a reivindicá-lo à luz do dia era objeto de instantâneo linchamento público. As coisas mudaram para melhor desde então, embora ainda reste muita erva daninha por arrancar. Vejo no atual debate que intelectuais, jornalistas, artistas, profissionais, dirigentes políticos e sindicais, ONGs, instituições e organizações católicas de base se pronunciam com mediana clareza contra explosões homofóbicas, como as da Conferência Episcopal e as de algumas das seitas evangélicas que estão na mesma linha ultraconservadora; e lembram que o Peru é constitucionalmente um país laico, onde todos têm os mesmos direitos. E que, entre os direitos de que gozam os cidadãos em um país democrático, figura o de optar livremente por sua identidade sexual.
    As opções sexuais são diferentes, mas não normais e anormais segundo se seja gay, lésbica ou heterossexual. E por isso gays, lésbicas e heterossexuais devem gozar dos mesmos direitos e obrigações, sem serem perseguidos e discriminados por isso. Acreditar que o normal é ser heterossexual e que os homossexuais são “anormais” é uma crença preconceituosa, desmentida pela ciência e pelo sentido comum; e que só orienta a legislação discriminatória em países atrasados e incultos, onde o fanatismo religioso e o machismo são fonte de atropelos e da desgraça e sofrimento de inúmeros cidadãos cujo único delito é pertencer a uma minoria. A perseguição ao homossexual predicada por aqueles que difundem sandices irracionais, como a “anomalia” homossexual, é tão cruel e desumana como a do racismo nazista ou branco que considera os judeus, os negros e os amarelos seres inferiores por serem diferentes.
    A união civil é, está claro, apenas um passo adiante para ressarcir as minorias sexuais da discriminação e da perseguição da qual foram e continuam sendo objeto. Mas será mais fácil combater o preconceito e a ignorância que sustentam a homofobia quando os cidadãos comuns puderem ver que os casais homossexuais que constituem uniões civis estabelecidas pelo amor recíproco não alteram em nada a vida comum e cotidiana dos outros, como ocorreu em todos (todos sem exceção) os países que autorizaram as uniões civis ou os casamentos entre casais do mesmo sexo. Onde se realizaram as apocalípticas profecias de que, se se permitem casais homossexuais, a degeneração sexual se espalhará por todas as partes? Ao contrário, a liberdade sexual, como a liberdade política e a liberdade cultural, garante essa paz que só resulta da convivência pacífica entre ideias, valores e costumes diversos. Não há nada que exacerbe tanto a vida sexual, chegando a desviá-la até extremos às vezes vertiginosos, como a repressão e a negação do sexo. Sacudida está pelos casos de pedofilia que a afetaram em quase todo o mundo, a igreja católica deveria compreender isso melhor que ninguém e atuar de forma consequente frente a esse assunto, ou seja, de forma mais moderna e tolerante.


    A liberdade sexual, como a política e a cultural, garante a convivência pacífica entre ideias

    Eu acredito que isso é uma realidade dos nossos dias e que cada vez há mais católicos no mundo – laicos e religiosos – dispostos a aceitar que o homossexual é um ser tão normal como o heterossexual; e que, como este, deve ter direitos de cidadão, de poder formar uma família e gozar das mesmas prerrogativas sociais e jurídicas que os casais heterossexuais.
    A chegada ao Vaticano do Papa Francisco começou com muito bons sintomas, pois os primeiros gestos, declarações e iniciativas do novo Pontífice pareciam augurar reformas profundas no seio da igreja que a integrariam à vida e à cultura do nosso tempo. Ainda não se concretizaram, mas não se pode descartar que aconteça. Todos nos lembramos da sua resposta quando foi perguntado sobre os gays: “Quem somos nós para julgá-los?” Era uma resposta que insinuava muitas coisas positivas que demoram para chegar. Não convém a ninguém -- tampouco aos que não somos crentes – que, por sua teimosa adesão a uma tradição intolerante e dogmática, uma das grandes igrejas do mundo se afaste da maioria da humanidade e se confine em margens retrógradas.
    Isso está acontecendo no Peru, infelizmente, desde que sua hierarquia caiu nas mãos de um obscurantismo agressivo, como o que encarna o cardeal Cipriani e transpira o comunicado contra a União Civil da Conferência Episcopal. Digo infelizmente porque, embora seja agnóstico, sei muito bem que, para a maioria da coletividade a religião sempre é necessária, já que ela lhe fornece as convicções, crenças e valores básicos sobre o mundo e o além, sem os quais entra naquele estado de desconcerto e ansiedade que os antigos incas chamavam “a behetría”, essa desolação e confusão coletivas que, segundo o Inca Garcilaso, acometeu Tahuantinsuyo naquele período em que pareceu que os deuses se eclipsavam .
    Eu tenho a esperança de que, contra o que dizem certas pesquisas, a lei da União Civil, pela qual acabam de se manifestar nas ruas de Lima tantos milhares de jovens e adultos, será aprovada e que o Peru terá avançado um pouco mais em direção a essa sociedade livre, diversa, culta – longe da barbárie – que, estou convencido, é o sonho alentado pela maioria dos peruanos.




    sábado, 11 de janeiro de 2014

    Vargas Llosa / Um castelo de cartas?



    Um castelo de cartas?

    Com a passagem dos meios de comunicação de sociedades capitalistas para o “povo organizado”, em 1974, começaria a existir a verdadeira liberdade de imprensa no Peru. A realidade foi diferente.

    MARIO VARGAS LLOSA 11 JAN 2014 - 18:00 BRST

    Quando, em julho de 1974, a ditadura do general Juan Velasco Alvarado estatizou todos os jornais e canais de televisão do Peru, explicou que o país até então só havia tido liberdade de empresa, e que a partir de então, com a passagem dos meios de comunicação de sociedades capitalistas para o “povo organizado”, começaria a existir a verdadeira liberdade de imprensa. A realidade foi diferente. Os jornais, rádios e canais expropriados se dedicaram a enaltecer todas as iniciativas do regime, a difamar e silenciar seus críticos, e, além de desaparecer toda a liberdade de informação, o jornalismo peruano atingiu naqueles anos extraordinários níveis de mediocridade e aviltamento. Por isso, quando seis anos depois, ao ser eleito presidente, Fernando Belaunde Terry devolveu os jornais e demais meios de comunicação aos seus donos, uma grande maioria dos peruanos acolheu favoravelmente a medida.

    Acho que a partir de então boa parte da opinião pública do país aceitou – alguns com alvoroço, e outros relutantemente – que a liberdade de imprensa era inseparável da liberdade de empresa e da propriedade privada, pois, quando estas desapareciam, se esfumava com elas a informação independente, bem como qualquer possibilidade de criticar o poder. Por isso, a ditadura de Fujimori e Montesinos utilizou uma forma menos grosseira que a estatização para garantir uma imprensa viciada: a intimidação ou a distribuição de sacos de dólares entre jornalistas e donos de meios de comunicação.
    Pois bem, o fato de haver uma economia de mercado e respeito à propriedade privada não basta para, por si só, garantir a liberdade de imprensa em um país. Esta se vê ameaçada também se um grupo econômico passa a controlar de maneira significativamente majoritária os meios de comunicação escritos ou audiovisuais. É o que acaba de ocorrer no Peru com a compra, pelo grupo El Comercio, dos jornais da Epensa, operação que lhe garante o controle de quase 80% da imprensa escrita no país (o El Comercio possui também um canal de TV a cabo e o mais importante canal de televisão aberta do Peru). Isso gerou um intenso debate sobre a liberdade de informação e de crítica, algo que me parece sumamente útil, porque o tema ultrapassa o âmbito nacional e afeta boa parte dos países latino-americanos.