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sábado, 13 de julho de 2024

Susan Sontag / Uma carta para Borges

 

Susan Sontag
Foto de Roger Viollet


Susan Sontag 

UMA CARTA PARA BORGES

(13 de junho de 1996, Nova York)


Caro Borges,

Como a sua literatura sempre se situou sob o signo da eternidade, ela não parece velha demais para que eu lhe envie uma carta (Borges, são dez anos!). Se existiu algum contemporâneo destinado à imortalidade literária, foi você. Você foi um perfeito produto de sua época, de sua cultura, de um modo que parece inteiramente mágico.

(...)

Você deu às pessoas maneiras novas de imaginar, ao mesmo tempo que proclamava sem cessar nossa dívida com o passado, acima de tudo, com a literatura. Você disse que devemos à literatura quase tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Eles nos dão também o modelo da autotranscendência.

(...)

Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma espécie ameaçada. Por livros, refiro-me também às condições de leitura que tornam possível a literatura e seus efeitos na alma. Em breve, nos dizem, invocaremos em "telas-livro" quaisquer "textos" que quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, "interagir". Quando os livros se tornarem "textos" com que "interagiremos" segundo o critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Este é o glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais "democrático". É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade - e do livro.

Para essa transição, não haverá nenhuma necessidade de uma grande conflagração. Os bárbaros não precisam queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Caro Borges, por favor compreenda que não me dá nenhum prazer queixar-me. Mas a quem melhor que você poderiam ser endereçadas tais queixas sobre o destino dos livros - da própria leitura? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Eu sinto sua falta. Você continua a ser importante. A era em que estamos entrando agora, este século XXI, porá a alma à prova de maneiras novas. Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E você continuará a ser o nosso patrono e nosso herói.


terça-feira, 14 de julho de 2020

A feminista Susan Sontag contra Norman Mailer


Susan Sontag em sua casa em 1979
Susan Sontag em sua casa em 1979LYNN GILBERT

A feminista Susan Sontag contra Norman Mailer

A carreira da intelectual decolou quando estourava o movimento de libertação das mulheres É o que o mostra trecho do livro 'Afiadas. As mulheres que fizeram da opinião uma arte'



Michelle Dean
11 mar 2019



É difícil exagerar quanto do que foi escrito sobre Sontag concerne à sua aparência. Mesmo nos ensaios mais consistentes aparece algum comentário a respeito. Os rios de tinta gastos nessa questão podem ser resumidos da seguinte forma: Sontag era extremamente bonita. No entanto, acho que ela tinha uma relação com a beleza mais complicada do que o deslumbre de seu público e a elegância de suas fotos sugeriam. Suas anotações são cheias de exortações a tomar mais banho; alguns contemporâneos diziam que com frequência estava despenteada, em geral com o cabelo puxado para o lado de modo desleixado, sem estilo. Isso acontecia também em aparições na mídia: em uma entrevista, seu cabelo descuidado e a falta de maquiagem contrastavam fortemente com o penteado impecável da cineasta Agnès Varda.

Sontag se vestia apenas de preto, estratégia-padrão daqueles que não querem ter de pensar em roupas. Já com certa idade, era sabido que ela levantava a blusa e mostrava para as pessoas as cicatrizes de suas cirurgias. Embora pessoas atraentes muitas vezes tenham o privilégio de não ter de pensar em sua própria aparência, havia algo de genuíno e espontâneo na indiferença de Sontag. Embora apreciasse que sua aparência lhe abrisse espaços, para ela a questão não ia além disso.

Desde o começo Sontag se preocupava com a imagem que seus editores estavam tentando projetar. As fotos começaram a eclipsar a autora. Uma editora inglesa ofereceu lançar uma edição limitada de Contra a interpretação apresentando reproduções de fotos de Rauschenberg. Sontag vetou a ideia: "Será esse o tipo de ocasião ultrachique — eu e Rauschenberg — que tende a ser publicado na LIFE e na TIME + que vai confirmar minha imagem como a garota “que tem tudo”, a nova Mary McCarthy, rainha do McLuhanismo + camp que estou tentando eliminar?"

Afortunada ou desafortunadamente, a resistência de Sontag ao seu status não prevaleceu. Suas entrevistas reafirmavam os comentários sarcásticos de que teria se tornado “a Natalie Wood da vanguarda dos Estados Unidos”. (...)


A intelectualidade de Nova York olhava para a fervilhante e caótica energia do movimento com repulsa


De súbito, Sontag também começou a falar mais livremente sobre feminismo e o movimento das mulheres. Sua carreira estava decolando quando os expoentes da segunda geração feminista começaram a aparecer, no fim dos anos 1960. Como movimento organizado, o feminismo estivera dormente por quase quarenta anos. A energia das sufragistas havia sido esmagada pelo novo comportamento hedonista das mulheres, como veriam os historiadores: uma vez que o voto feminino estava assegurado, as jovens em particular tinham dificuldades em se relacionar com as lutas de suas predecessoras. Isso significava que não perguntavam a uma escritora — como é comum hoje — se ela era ou não “feminista”. Parker e West haviam ambas declarado sua simpatia pelo movimento sufragista, mas as feministas exigiram pouco delas. Para McCarthy e Arendt, não havia maiores questionamentos sobre seu envolvimento, como escritoras, em qualquer tipo de movimento feminista organizado, porque eles não existiam durante a maior parte de suas carreiras.

Mas no início dos anos 1970, quando Sontag ascendia como a mais proeminente intelectual, o movimento feminista estava explodindo, com marchas, comícios e coletivos despontando por toda parte, especialmente na cidade de Nova York. O Mulheres Radicais de Nova York, um coletivo formado, entre outras, pela crítica e jornalista Ellen Willis, se destacava. Círculos de conscientização estavam em voga e, gradualmente, com o debate começando a dominar a mídia, era esperado que Sontag declarasse algum tipo de fidelidade.

A intelectualidade de Nova York olhava para a fervilhante e caótica energia do movimento com repulsa. Não conseguia entendê-lo. Consideravam-no no máximo vulgar. Foi então que Sontag começou a demonstrar sua contrariedade, não muito distinta daquela demonstrada pela escritora que “nunca foi importante para ela”, Mary McCarthy. Ela abraçou o movimento plenamente e com mais liberdade que qualquer outro membro dos quadros da Partisan Review e da New York Review of Books.



Sontag falou abertamente como simpatizante feminista em 1971. Ela compareceu a um painel feminista organizado na prefeitura em desagravo ao artigo desdenhoso ao movimento publicado por Norman Mailer na Harper’s, intitulado “O prisioneiro do sexo”. Como um garoto de escola, mesmo que aos 48 anos, Mailer ainda tentava atrair a atenção das mulheres desferindo insultos contra elas. O ensaio o lançou em uma contenda com as principais figuras do movimento feminista, cujo nível de atratividade ele nunca deixou de avaliar enquanto as ofendia e proferia suas ideias. Durante suas viagens, chamou Kate Millett — uma proeminente crítica feminista e autora do polêmico Política sexual — de “vaca enfadonha”. E chamou Bella Abzug, advogada e futuramente deputada, de “machado de guerra”.

Sontag estava assistindo ao painel aquela noite. Ela se levantou com uma questão para Mailer. “Norman, é verdade que você fala com as mulheres de uma forma que, com a maior boa vontade, elas consideram paternalista”, disse calmamente, sem nenhum tom autoritário. “Uma das coisas é seu uso de ‘mulher’ como adjetivo. Não gosto de ser chamada de ‘escritora mulher’, Norman. Sei que parece uma cortesia para você, mas não parece certo para nós. É um pouco melhor ser chamada apenas de escritora. Não sei por quê, mas você entende que as palavras importam. Somos escritores, entendemos isso.”

Mais tarde, Sontag deu uma longa entrevista à Vogue em que insistiu que havia sentido os efeitos da discriminação em sua vida de escritora. O entrevistador tentou dizer que tinha a impressão, até aquela noite, de que ela “compartilhava do desdém de Mailer por intelectuais mulheres”. "De onde tirou essa ideia? Metade das pessoas inteligentes que conheci são mulheres. Eu não poderia ser mais simpática aos problemas das mulheres ou ficar mais irritada com sua condição. Mas essa raiva é tão antiga que no dia a dia não a sinto. Me parece a história mais antiga do mundo."

Para reforçar sua posição, Sontag publicou de imediato um ensaio na Partisan Review, originalmente destinado à incipiente iniciativa da revista Ms. Mas o novo empreendimento de Gloria Steinem — a revista — achou o ensaio muito didático, de modo que ele foi direcionado aos “rapazes” e publicado com o título “O terceiro mundo das mulheres”. Entre as recomendações no ensaio estava a de que elas deveriam se engajar em revolta direta contra o patriarcado: “Devem assobiar para os homens na rua, invadir concursos de beleza, fazer piquetes contra fabricantes de brinquedos sexistas, se converter em grandes números ao lesbianismo militante, providenciar aconselhamento feminista ao divórcio, criar centros de remoção de maquiagem, adotar o sobrenome de suas mães”. No ensaio, ela parecia fazer um desabafo; foi a única vez em que abraçaria diretamente o feminismo em sua produção intelectual.



Michelle Dean é crítica e jornalista. Este extrato é parte de seu livro Afiadas. As mulheres que fizeram da opinião uma arte, publicado em português pela editora Todavia em 2018. Tradução de Bernardo Ajzenberg