Fran Lebowitz |
Fran Lebowitz: “Biden não é Roosevelt, mas pelo menos tenta”
Escritora, catapultada à fama mundial graças a uma série documental de Martin Scorsese, reedita seus velhos ensaios humorísticos em um novo livro
Alex Vicente
Paris, 1 Jun 2021
O número é um telefone fixo de Nova York. Após digitá-lo, entra a secretária eletrônica. A voz inconfundível de Fran Lebowitz (Morristown, Nova Jersey, 70 anos) pede que deixe um nome e um telefone. “Responderei assim que possível”, jura, com seu timbre nasal e zombeteiro. Inevitavelmente, a gente a imagina filtrando as ligações, como nas séries dos anos noventa. E, de fato, a escritora aparece no meio da mensagem com um “olá” seco e ao mesmo tempo amigável, paradoxal. Lebowitz, personalidade nova-iorquina por antonomásia, catapultada à fama mundial graças à série documental Faz de conta que NY é uma cidade, dirigida por Martin Scorsese para a Netflix, começa perguntando sobre Madri. “Estive há alguns anos e me senti capaz de morar lá. É uma das poucas cidades onde se janta no único horário que eu acho aceitável: às 10 da noite”, gargalha esta noctâmbula incorrigível.
Lebowitz sofre uma crise criativa que a levou a deixar de escrever quase três décadas atrás: seu último livro, publicado em 1994, era um volume infantil sobre dois pandas nova-iorquinos que sonhavam em se mudar para Paris. O admirável é que, como boa personagem warholiana —escreveu para sua revista Interview nos anos setenta—, nunca precisou exercer seu ofício para dar o que falar. “Não tenho um trabalho, ou não um de verdade”, admite essa autora, mais conhecida por suas conferências e declarações midiáticas que por seus escritos. Isso não impede que aproveite o ímpeto da série de Scorsese, com quem mantém uma longa amizade —que, às vezes, parece cimentada na predisposição do diretor em rir de todas as graças que ela faz, que não são poucas—, para reeditar seus ensaios humorísticos dos anos setenta e começo dos oitenta, Vida metropolitana e Ciências sociais, fora de catálogo na Espanha e recuperados agora em um volume único com o título de Um dia qualquer em Nova York (Tusquets), que chegará esta quarta-feira às livrarias —o título não saiu no Brasil.
Seus textos são peças breves e cortantes, banhadas num humor que nem sempre envelheceu bem. Neles Lebowitz aborda, pela primeira vez, todos os clássicos de seu repertório posterior: os problemas imobiliários, os boletos a pagar, a feiura da roupa estampada e dos relógios digitais, os incômodos que lhe causam as crianças e as multidões e outros problemas do Primeiro Mundo. “Quando voltei a ler esses ensaios, reconheci a mim mesma, mas não o mundo que descrevo neles. O mundo mudou, mas eu não”, afirma, sobre esses textos escritos antes dos 30. “Sou muito teimosa e sempre tive ideias muito enfáticas. Não digo que sempre tenha razão, mas… Bom, sim, sempre tenho razão. Do contrário, teria mudado de opinião sobre minhas certezas”, reflete.
Um mal-entendido sobre sua personalidade pública, algo que parece lhe incomodar, é que se confundam sua misantropia jocosa e seu ostensivo ludismo —Lebowitz vive sem tecnologia à vista: nada de celular, computador, tablet, smartwatch ou balança com USB— com o conservadorismo aparente do “antes vivíamos melhor”. “Pelo contrário: acredito que algumas coisas estejam melhores agora. Para as mulheres não estão bem, mas melhores. Para os gays não estão bem, mas sim muito melhores. Vejo mais progresso nesse campo que em qualquer outro”, argumenta. “As pessoas já não se lembram de que ser homossexual em 1972 era quase como sê-lo em 1872. Na verdade, as pessoas não se lembram de nada. Eu sim me lembro. Sou um depósito de memória, porque parei de beber e de usar drogas aos 19 anos. Quando meus amigos não se lembram de algo, me perguntam. Eu era a única que não estava chapada.”
Uma infância “feliz”
Por trás dos seres mais engraçados costuma haver uma história com matizes trágicos. Não é o caso de Lebowitz, que afirma ter tido uma infância “feliz e absolutamente convencional” no seio de uma família judaica que tocava uma loja de móveis. “Quando publiquei meu primeiro livro, um amigo da família me disse: ‘Você é engraçada igual ao seu pai’. Aquilo me deixou atônita, porque nunca tinha visto meu pai sendo engraçado. Talvez tudo isto em mim venha dele”, diz. Guarda boas lembranças dessa juventude no outro lado do rio Hudson. “Sou uma pessoa bastante imatura. Sinto falta desse momento da minha vida em que não tinha que pagar impostos”, resume. “Sempre me senti diferente dos outros, mas não excluída. Na verdade, sempre tive milhões de amigos. O que aconteceu foi que, aos 11 anos, percebi que era homossexual e que não ia poder ficar lá”, acrescenta, em um dos raros momentos em que não parece ter uma piada na ponta da língua.
Mudou-se para Nova York aos 18 anos, pouco depois de descobrir a existência de James Baldwin, o grande escritor negro e homossexual, pela televisão. Reconheceu nele a mesma diferença radical e uma maneira de ser escritor com a qual se identificava, distante da solenidade dos clássicos que devorava desde a infância. “Para mim, um escritor era uma pessoa morta, e Baldwin estava muito vivo”. Trabalhou como taxista —“Minha única relação monogâmica foi com aquele carro”—, vendendo cintos e fazendo faxina, até que começou a publicar nas revistas alternativas da Nova York dos anos setenta. Com o tempo, virou uma efígie daquele tempo, mais duro do que prega a versão oficial: “Crescemos sonhando com a Paris dos anos vinte. Os jovens de hoje crescem pensando na Nova York dos anos setenta. Eu estava lá e sou das poucas que continuam vivas. Sobrevivi a duas pragas: as drogas e a aids”.