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sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Fran Lebowitz / “Biden não é Roosevelt, mas pelo menos tenta”

 

Fran Lebowitz

Fran Lebowitz: “Biden não é Roosevelt, mas pelo menos tenta”


Escritora, catapultada à fama mundial graças a uma série documental de Martin Scorsese, reedita seus velhos ensaios humorísticos em um novo livro



Alex Vicente
Paris, 1 Jun 2021



O número é um telefone fixo de Nova York. Após digitá-lo, entra a secretária eletrônica. A voz inconfundível de Fran Lebowitz (Morristown, Nova Jersey, 70 anos) pede que deixe um nome e um telefone. “Responderei assim que possível”, jura, com seu timbre nasal e zombeteiro. Inevitavelmente, a gente a imagina filtrando as ligações, como nas séries dos anos noventa. E, de fato, a escritora aparece no meio da mensagem com um “olá” seco e ao mesmo tempo amigável, paradoxal. Lebowitz, personalidade nova-iorquina por antonomásia, catapultada à fama mundial graças à série documental Faz de conta que NY é uma cidade, dirigida por Martin Scorsese para a Netflix, começa perguntando sobre Madri. “Estive há alguns anos e me senti capaz de morar lá. É uma das poucas cidades onde se janta no único horário que eu acho aceitável: às 10 da noite”, gargalha esta noctâmbula incorrigível.

Lebowitz sofre uma crise criativa que a levou a deixar de escrever quase três décadas atrás: seu último livro, publicado em 1994, era um volume infantil sobre dois pandas nova-iorquinos que sonhavam em se mudar para Paris. O admirável é que, como boa personagem warholiana —escreveu para sua revista Interview nos anos setenta—, nunca precisou exercer seu ofício para dar o que falar. “Não tenho um trabalho, ou não um de verdade”, admite essa autora, mais conhecida por suas conferências e declarações midiáticas que por seus escritos. Isso não impede que aproveite o ímpeto da série de Scorsese, com quem mantém uma longa amizade —que, às vezes, parece cimentada na predisposição do diretor em rir de todas as graças que ela faz, que não são poucas—, para reeditar seus ensaios humorísticos dos anos setenta e começo dos oitenta, Vida metropolitana e Ciências sociais, fora de catálogo na Espanha e recuperados agora em um volume único com o título de Um dia qualquer em Nova York (Tusquets), que chegará esta quarta-feira às livrarias —o título não saiu no Brasil.

Seus textos são peças breves e cortantes, banhadas num humor que nem sempre envelheceu bem. Neles Lebowitz aborda, pela primeira vez, todos os clássicos de seu repertório posterior: os problemas imobiliários, os boletos a pagar, a feiura da roupa estampada e dos relógios digitais, os incômodos que lhe causam as crianças e as multidões e outros problemas do Primeiro Mundo. “Quando voltei a ler esses ensaios, reconheci a mim mesma, mas não o mundo que descrevo neles. O mundo mudou, mas eu não”, afirma, sobre esses textos escritos antes dos 30. “Sou muito teimosa e sempre tive ideias muito enfáticas. Não digo que sempre tenha razão, mas… Bom, sim, sempre tenho razão. Do contrário, teria mudado de opinião sobre minhas certezas”, reflete.

Fran Lebowitz com Andy Warhol em uma festa em Nova York. A escritora trabalhou na revista ‘Interview’, criada pelo artista.Fran Lebowitz com Andy Warhol em uma festa em Nova York. A escritora trabalhou na revista ‘Interview’, criada pelo artista. RICHARD E. AARON / REDFERNS
Um mal-entendido sobre sua personalidade pública, algo que parece lhe incomodar, é que se confundam sua misantropia jocosa e seu ostensivo ludismo —Lebowitz vive sem tecnologia à vista: nada de celular, computador, tablet, smartwatch ou balança com USB— com o conservadorismo aparente do “antes vivíamos melhor”. “Pelo contrário: acredito que algumas coisas estejam melhores agora. Para as mulheres não estão bem, mas melhores. Para os gays não estão bem, mas sim muito melhores. Vejo mais progresso nesse campo que em qualquer outro”, argumenta. “As pessoas já não se lembram de que ser homossexual em 1972 era quase como sê-lo em 1872. Na verdade, as pessoas não se lembram de nada. Eu sim me lembro. Sou um depósito de memória, porque parei de beber e de usar drogas aos 19 anos. Quando meus amigos não se lembram de algo, me perguntam. Eu era a única que não estava chapada.”

Uma infância “feliz”

Por trás dos seres mais engraçados costuma haver uma história com matizes trágicos. Não é o caso de Lebowitz, que afirma ter tido uma infância “feliz e absolutamente convencional” no seio de uma família judaica que tocava uma loja de móveis. “Quando publiquei meu primeiro livro, um amigo da família me disse: ‘Você é engraçada igual ao seu pai’. Aquilo me deixou atônita, porque nunca tinha visto meu pai sendo engraçado. Talvez tudo isto em mim venha dele”, diz. Guarda boas lembranças dessa juventude no outro lado do rio Hudson. “Sou uma pessoa bastante imatura. Sinto falta desse momento da minha vida em que não tinha que pagar impostos”, resume. “Sempre me senti diferente dos outros, mas não excluída. Na verdade, sempre tive milhões de amigos. O que aconteceu foi que, aos 11 anos, percebi que era homossexual e que não ia poder ficar lá”, acrescenta, em um dos raros momentos em que não parece ter uma piada na ponta da língua.

Mudou-se para Nova York aos 18 anos, pouco depois de descobrir a existência de James Baldwin, o grande escritor negro e homossexual, pela televisão. Reconheceu nele a mesma diferença radical e uma maneira de ser escritor com a qual se identificava, distante da solenidade dos clássicos que devorava desde a infância. “Para mim, um escritor era uma pessoa morta, e Baldwin estava muito vivo”. Trabalhou como taxista —“Minha única relação monogâmica foi com aquele carro”—, vendendo cintos e fazendo faxina, até que começou a publicar nas revistas alternativas da Nova York dos anos setenta. Com o tempo, virou uma efígie daquele tempo, mais duro do que prega a versão oficial: “Crescemos sonhando com a Paris dos anos vinte. Os jovens de hoje crescem pensando na Nova York dos anos setenta. Eu estava lá e sou das poucas que continuam vivas. Sobrevivi a duas pragas: as drogas e a aids”.

Fran Lebowitz e Martin Scorsese conversam na Brooklyn Academy of Music, em 2014.
Fran Lebowitz e Martin Scorsese conversam na Brooklyn Academy of Music, em 2014. RAHAV SEGEV / WIREIMAGE

A atual pandemia transformou em realidade um dos sonhos de Lebowitz, patologicamente alérgica a multidões. Nos primeiros dias do confinamento, saiu para passear, apesar da proibição. Seria seu encontro definitivo com a cidade. “Passei na frente do Empire State Building, do Carnegie Hall, da Times Square. Eram lugares desertos. E, para minha surpresa, não gostei. Eu sonhava com uma cidade sem turistas, mas quando aconteceu me entristeceu”, reconhece. “Nenhuma das coisas agradáveis que tenham acontecido é comparável com os milhões de pessoas que morreram.” Nem sequer, claro, a saída de Donald Trump da Casa Branca. “Sem Trump como presidente, as coisas não teriam ido tão mal. Nunca gostei de Joe Biden, que está na política desde que me conheço por gente, mas no dia em que ele ganhou foi um dos momentos de maior alívio de minha vida. Precisávamos de um grande presidente, como foi Lincoln, embora saiba que nunca o teremos. Está claro que Biden não é como Roosevelt, e nunca será. Mas pelo menos tenta.”


quinta-feira, 11 de março de 2021

Leïla Slimani / “Quanto mais você progride na hierarquia social, mais branca você parece aos olhos dos brancos”

 

Leïla Slimani


Leïla Slimani: “Quanto mais você progride na hierarquia social, mais branca você parece aos olhos dos brancos”


Após o sucesso de ‘Canção de Ninar’, a escritora franco-marroquina publica ‘O País dos Outros’, uma saga inspirada na história de seus avós nos tempos coloniais com a que indaga sobre a “a maldição da mestiçagem”

ALEX VICENTE

01 MAR 2021


Após ganhar o Prêmio Goncourt com Canção de Ninar, análise sociológica do clássico da babá assassina e fenômeno internacional traduzido a 44 línguas, Leïla Slimani (Rabat, 1981) abre com Le Pays des Autres (O País dos Outros, sem tradução ao português) uma nova trilogia sobre a história de sua família. A protagonista é Mathilde, um personagem inspirado em sua avó, uma jovem alsaciana no Marrocos colonial de 1946. Slimani, que mora na França desde os 17 anos, escreve sobre o drama silencioso que conhece de primeira mão: a condição de ser outro.

Pergunta. Até hoje você havia sido reticente a entrar no terreno íntimo e familiar. Por qual motivo?

Resposta. Dou muita importância à imaginação, de modo que me apoiar no autobiográfico me parecia um fracasso. À medida que escrevia mais e lia os diários íntimos e a correspondência de outros autores, percebi que é inevitável reutilizar aspectos pessoais. No fundo, Canção de Ninar também era um livro muito íntimo: eu o escrevi quando tive meu filho, que era cuidado por uma babá, em um momento em que me sentia dividida entre aspirações diferentes.

P. Por vezes, seu registro lembra o realismo mágico, como quando usa o símbolo da limaranja, enxerto de limão e laranja. Os autores latino-americanos a influenciaram?

R. No livro está meu amor por Faulkner e Carson McCullers, por Salman Rushdie e V.S. Naipaul, e também por García Márquez e Vargas Llosa, por Carlos Fuentes e Jorge Amado. Todos esses escritores fazem parte de meu imaginário por suas descrições da natureza, da sexualidade, do espiritual e do inexplicável. Os latino-americanos têm uma maneira de ver o mundo parecida à dos marroquinos. Essa mistura de influências ilustra a ideia da polinização na literatura. Sendo um livro sobre a mestiçagem, seria interessante que a própria escrita também fosse mestiça.

P. Você escreveu um livro sobre uma mulher branca discriminada no Magreb colonial. Era tão difícil ser branca no Marrocos da época como magrebina na França de hoje?


R. O estrangeiro nem sempre é quem se imagina. Ser estrangeiro é uma questão metafísica, a que as mulheres estamos bastante acostumadas: ser mulher já cria por si uma sensação de estranheza e de impostura em muitos momentos. A figura de Mathilde é ambivalente: por um lado representa o dominador, sendo branca, e por outro é marginalizada por ter se casado com um indígena. Nesse momento se considerava que essa mistura de sangue anunciava o fim do mundo. Se todo mundo se misturasse, a pureza deixaria de existir.

P. Precisamente, começa citando Édouard Glissant: “Maldição dessa palavra: mestiçagem. Vamos escrevê-la em caracteres enormes na página”. O que a mestiçagem tem de maldito?

quinta-feira, 18 de abril de 2019

As obras que se perderam no fogo da Notre-Dame (e as que foram salvas graças a uma corrente humana)

Patrick Palem, especialista em restauração, segura a cabeça de uma das estátuas colocadas no telhado da Notre Dame e que foram retiradas para restauração antes do incêndio.  AFP


As obras que se perderam no fogo da Notre-Dame (e as que foram salvas graças a uma corrente humana)

As peças resgatadas, como a Coroa de Espinhos e a Túnica de São Luis, serão levadas ao Louvre. O órgão “parece estar danificado”, segundo o ministro da Cultura


ÁLEX VICENTE
Paris 16 ABR 2019 - 21:19 COT

Em que estado ficou a Notre-Dame depois do incêndio? Apesar da rápida propagação das chamas, muitas obras conseguiram sair intactas da catedral graças à ação de uma “corrente humana”, nas palavras da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, composta por bombeiros, agentes de segurança, a equipe da Arquidiocese e técnicos do Ministério da Cultura francês. Se a estrutura do edifício pôde ser salva, sua situação ainda é “precária”, como admitiu na terça-feira o ministro da Cultura, Franck Riester, que lembrou que “três partes da abóbada estão esburacadas” e não descartou a possibilidade de um efeito dominó. “Os bombeiros estão otimistas, mas os arquitetos apelam à cautela”, concorda o reitor da Notre-Dame, Patrick Chauvet, que indicou que a presença de um andaime de 500 toneladas sobre a estrutura ainda poderia fraturar os contrafortes. “Teremos de esperar até sexta-feira para saber se o conjunto está estabilizado”, disse.
Apesar da gravidade dos fatos, a lista de objetos evacuados é considerável. A Coroa de Espinhos, peça-chave do tesouro da Notre-Dame, conseguiu ser salva do fogo. Essa venerada relíquia, conservada na Sainte-Chapelle até a Revolução Francesa, repousa na Notre-Dame desde 1806. No final do século XIX, foi colocada dentro de um tubo circular de ouro e vidro, no qual permanece até hoje. Outras peças de imenso valor, como o fragmento da Cruz do Calvário e um dos pregos que serviram para fixar Cristo, também escaparam das chamas. Além disso, a túnica de São Luis foi resgatada, gibão que o rei Luis IX vestiu em 1239 para receber essa Santa Coroa.
As chamadas beffrois, as duas torres da fachada, também ficaram a salvo, apesar de o fogo ter queimado uma parte do campanário norte. As 16 estátuas de cobre que foram colocadas na parte posterior do edifício durante sua ampliação no século XIX também escaparam das chamas, pois foram retiradas pelas autoridades em 11 de abril para serem restauradas. Além disso, o altar da catedral também estaria a salvo, segundo fotografias divulgadas nas redes sociais. A grande peça de mármore e a cruz que a preside teriam permanecido no lugar. E a monumental Piedade esculpida por Nicolas Coustou no século XVIII se mantém inteira na abside.
As três grandes rosáceas assinadas no século XIII por Pierre de Montreuil e Jean de Chelles também não teriam sofrido “danos catastróficos”, segundo o ministro da Cultura. Mesmo assim, Chauvet revelou que uma delas teria sido deslocada “um centímetro”, de modo que se encontraria em uma posição “inclinada”. Os técnicos tentam selá-la para evitar um desprendimento, segundo o reitor. Além disso, alguns vitrais do século XIX foram vítimas das altíssimas temperaturas, que derreteram o chumbo que sustenta os pedaços de vidro.
Na lista de perdas é preciso incluir a agulha de Viollet-le-Duc, que se levantava a 93 metros do solo, e o campanário situado na parte traseira da nave, assim como a grande estrutura do século XIII, conhecida como Floresta por causa da enorme quantidade de carvalho usada para construí-la. Os responsáveis pela igreja também encontraram o galo que encabeçava essa agulha –“estava um pouco abaulado”, disse Chauvet–, mas as relíquias que continha em seu interior desapareceram. Enquanto isso, o grande órgão, o maior dos três que possui a catedral, pode ter sido “danificado” pelo incêndio, de acordo com Riester, embora tenha se recusado a fazer “um diagnóstico completo” de seu estado. De fato, o reitor da catedral afirmou horas depois que o gigantesco instrumento musical, com um total de 8.000 tubos, estava “intacto”.
O fogo não atingiu as grandes pinturas dos séculos XVI e XVII, conhecidas como Mays, que pendiam das paredes da nave, do coro e das capelas. As pinturas, assinadas por renomados pintores da época, como Charles Le Brun e Jacques Blanchard, foram danificadas pela água e pela fumaça, como disse Riester, que anunciou sua transferência nesta sexta-feira para o Museu do Louvre para iniciar uma restauração imediata. O reitor Chauvet indicou que quatro desses quadros foram evacuados durante o incêndio. Os outros nove permaneceram nas capelas, onde as chamas não conseguiram entrar.

O PADRE QUE RESGATOU A COROA DE ESPINHOS

Toda tragédia tem seus heróis. A imprensa internacional encontrou um na figura do padre Jean-Marc Fournier, capelão dos bombeiros de Paris, que teria insistido em entrar na catedral para recuperar a Coroa de Espinhos e outras relíquias, de acordo com o prefeito do 15º distrito de Paris, Philippe Goujon. Fournier é um veterano de guerra que lutou com o exército francês no Afeganistão e tornou-se conhecido por ajudar as vítimas da sala Bataclan nos ataques terroristas de 2015. De acordo com a Sky News e outros meios de comunicação anglo-saxões, na segunda-feira Fournier ficou na ponta da corrente humana que conseguiu recuperar esse tesouro de valor incalculável. O ministro da Cultura indicou que os objetos resgatados serão conservados no Louvre.
EL PAÍS


quarta-feira, 30 de maio de 2018

Cate Blanchett, a mulher que é quase perfeita

Cate Blanchett na cerimônia de encerramento do Festival de Cannes de 2018.  


Cate Blanchett, a mulher 

que é quase perfeita

Atriz e mãe de família numerosa, se destacou por sua participação no debate feminista que agita Hollywood



Alex Vicente
París, 30 mai 2018

Para onde quer que se olhe lá está Cate Blanchett. Há algum tempo a atriz australiana se tornou onipresente. Acaba de exercer o cargo de presidenta do júri no Festival de Cannes, onde conquistou o impossível ao anunciar uma premiação aplaudida até pelos críticos mais difíceis de se contentar. Incluía até mesmo um prêmio especial a Jean-Luc Godard, algo inédito nos 71 anos de história do evento, de modo que precisou “infringir o protocolo”, como confessou, e que lhe custou várias brigas com os responsáveis pelo festival.
Seus gostos cinéfilos são ecléticos, como mostram suas escolhas na telona. Acaba de estrear Manifestoum filme experimental inspirado nos ismos do século XX, às ordens do artista Julian Rosefeldt, e está prestes a lançar Oito Mulheres e um Segredo, o spin-off feminino da saga de ladrões de colarinho branco, que chegará aos cinemas brasileiros em junho.
Como se não bastasse, tem quatro filmes em pós-produção, incluindo o novo de Richard Linklater e a última adaptação de O Livro da Selva, onde dá voz à serpente Kaa. Além disso, acaba de assinar como nova porta-voz dos produtos de beleza Armani, após ser imagem de dois de seus perfumes desde 2013, e tem quatro filhos com o diretor teatral Andrew Upton, com quem vive em uma mansão do condado britânico de Sussex desde 2016. A primeira coisa que costumam perguntar a ela nas entrevistas é como consegue. “Não consigo, mas tento, como tantas mulheres...”, respondeu à revista Madame Figaro no começo de maio. “Não sei fazer pausas. Sou hiperativa que sempre pensa: O que tenho para amanhã?”. Em outra entrevista à revista Variety, se definiu como “intensamente curiosa”. “Estou constantemente interessada em abrir portas invisíveis que antes não havia visto”, acrescentou.
Cate Blanchett posa no carpete vermelho do Festival de Cannes em 10 de maio de 2018
Cate Blanchett posa no carpete vermelho do Festival de Cannes em 10 de maio de 2018 GTRESONLINE
Nos últimos meses, Blanchett se destacou por sua participação no debate feminista que agita Hollywood (e o mundo). Pouco antes do festival, revelou que também foi vítima do produtor Harvey Weinstein, com quem trabalhou em diversos filmes. “Atacava principalmente os vulneráveis, como a maioria dos predadores”, disse Blanchett. A atriz afirmou que Weinstein costumava lembrá-la que “não eram amigos” por ela não fazer “o que ele pedia”.

Manifesto

Durante sua passagem por Cannes, Blanchett também liderou o grupo de 82 mulheres da indústria cinematográfica que desfilaram pelo carpete vermelhoexigindo uma igualdade real e perceptível antes de 2020. Leu um manifesto, como esses que seu último filme reivindica, que talvez voltem a ser necessários nesses tempos revoltos.
“Nós mulheres não somos uma minoria no mundo, mas o estado atual da indústria parece indicá-lo”, disse Blanchett na escadaria do carpete vermelho. Em sua entrevista à Madame Figaro já havia se referido ao mesmo tema: “A sub-representação é flagrante. Mas uma mudança profunda está ocorrendo: as mulheres já não se calam tanto. Já não esperam que alguém venha salvá-las”. Ao ganhar o Oscar por Blue Jasmine – há cinco anos, quanto estava muito menos na moda pronunciar a palavra “empoderamento” –, Blanchett também encontrou a ocasião para falar sobre o tema, dedicando a estatueta aos “que acreditam que os filmes com mulheres como protagonistas são nichos de mercado”. “Não são. As pessoas querem vê-los e conseguem arrecadar dinheiro”, denunciou no palco.
82 mulheres posam na escadaria do Palais do Festival de Cannes
82 mulheres posam na escadaria do Palais do Festival de Cannes GTRESONLINE
Blanchett sempre se definiu como feminista, mesmo nos tempos em que a palavra era marcada por um inexplicável estigma. “Nunca me defini de outra forma. Nunca entendi esse estigma, porque é só um avanço rumo à igualdade. Não se trata de construir um matriarcado. Ainda que depois dos intermináveis milênios em que trabalhamos sob o patriarcado, não me importaria de receber uma pequena dose de matriarcado em algum lugar...”, disse à Variety.
A primeira vez que pisou em Cannes foi há 20 anos, quando tinha 28. Chegou ao festival com uma pequena comédia romântica filmada na Austrália, Ainda Bem Que Ele Conheceu Lizzie. Percorreu os corredores do mercado procurando distribuição. Lembra que, como um desses anônimos que perambulam pela sede do festival tentando conseguir uma entrada presenteada por uma alma caridosa, conseguiu um convite para ver Tempestade de Gelo, de Ang Lee. Poucos meses depois ela seria alçada ao estrelato com seu papel em Elizabeth, que lhe valeu sua primeira indicação ao Oscar de um total de sete (e duas estatuetas). Vinte e uma edições depois, Blanchett saiu desse mesmo festival transformada em rainha do cinema contemporâneo.

UM FENÔMENO VIRAL

Cate Blanchet também invadiu as redes como protagonista de um novo fenômeno viral: as imagens das mulheres enlevadas por sua presença. Tudo começou com as fotos de algumas de suas colegas de júri em Cannes observando-a com ar embasbacado. “Namore alguém que te olhe como Kristen Stewart olha Cate Blanchett”, algumas publicações no Twitter disseram com ironia. Mais tarde, surgiram imagens em que aparecia com atrizes como Léa Seydoux, Anne Hathaway e Sarah Paulson na estreia de Oito Mulheres e um Segredo em Nova York, todas também com olhares de admiração.
EL PAÍS


quarta-feira, 18 de abril de 2018

Veneza não esquece Casanova, seu libertino universal



Veneza não esquece Casanova, seu libertino universal

A cidade inaugura o primeiro museu do mundo dedicado ao escritor e aventureiro


ÁLEX VICENTE
Veneza 15 ABR 2018 - 17:12 COT

Quando Carlo Parodi se mudou para Veneza, há alguns anos, se pôs a seguir o rastro de seu herói da infância, Giacomo Casanova, que nasceu na cidade italiana em 1725. O empresário lombardo descobriu que havia um único local para recordar sua memória. E que não estava necessariamente à altura de tão lendário personagem: uma simples placa comemorativa instalada na rua Malipiero, discreta travessa ao lado do Grande Canal, onde Casanova nasceu e cresceu. Toda vez que passava por ali, descobria turistas amontoados em frente à inscrição, imortalizando o momento com uma selfie. “Pensei comigo que não era possível que essa fosse sua única marca em toda Veneza. Precisava fazer algo para resolver isso”, explica Parodi, que se dedica à importação de prosecco no Reino Unido.
Decidiu criar um museu, o primeiro dedicado ao escritor e aventureiro em todo o planeta, que abriu as portas semana passada, coincidindo com o 220º aniversário da morte de Casanova. Situado em um palacete dos anos 1400 no bairro de Cannaregio, o chamado Casanova Museum and Experience é mais experiência que museu.
Casanova é como um iceberg: só conhecemos uma parte minúscula dele
Parodi fez uma aposta diferente da de um museu tradicional. Para começar, sua coleção se limita a alguns livros e objetos. Que ninguém espere uma rigorosa orientação científica, ainda que os textos sejam abundantes e bem documentados. Mas seu perfil é sem dúvida lúdico. Ao cruzar a porta, o visitante coloca óculos de realidade virtual e com isso consegue transformar-se em Casanova e viver as mesmas andanças que o personagem protagonizou na cidade de onde teve de escapar três vezes, ao ver-se perseguido por seus costumes libertinos. “Não é um artista que pintou quadros que agora possamos contemplar. Na verdade, creio que é sua vida que é uma obra de arte”, afirma Parodi. “Por isso era conveniente encarnar o personagem e assim entender quem foi.” O designer Roberto Frasca, encarregado dos aspectos tecnológicos, completa: “Este é um museu da experiência, onde o visitante deve ser o protagonista e não um ser passivo que observa atrás de uma vitrine”.
Retrato de Casanova
Retrato de Casanova GETTY
Ao longo de seis salas, o museu explora todas as facetas de sua biografia. Diferentes hologramas e vídeos evocam sua vida e sua obra, entre vestidos de época e projeções de quadros do Canaletto, e até um quarto onde o visitante é testemunha de seus rituais de acasalamento. Apesar de tudo, a principal obsessão de Parodi foi a de destacar-se do mito do qual Casanova acabou sendo vítima. “Foi um grande sedutor, mas também um grande literato, músico, cientista, diplomata e agente secreto”, afirma o fundador do museu. “Casanova é como um iceberg: só conhecemos uma parte minúscula dele. Quis lhe devolver sua complexidade e ecletismo.” O novo museu recorda que conviveu com personagens como Rousseau, Voltaire e Mozart. Um aplicativo para celular completa a visita e permite percorrer vários pontos da cidade vinculados a Casanova, como o Sottoportego dei Do Mori ou o Caffé Florian, onde Casanova encontrava suas conquistas. “É uma ideia importante recuperar esse personagem histórico e voltar a situá-lo neste belo lugar. Se Casanova é um veneziano por excelência, é porque esta não é a cidade de quem nasce aqui, mas de quem decide retornar a ela”, explicou o prefeito de Veneza, Luigi Brugnaro, durante a inauguração.
Casanova morreu na Boêmia, onde trabalhou como bibliotecário depois de cair no esquecimento e na miséria
Este é o primeiro museu Casanova, mas não será o último. No fim de 2018, Parodi abrirá outro centro idêntico em Praga, recordando que o aventureiro faleceu na Boêmia, onde trabalhou como bibliotecário a serviço do conde de Waldstein, depois de cair no esquecimento e na miséria. Também está finalizando uma versão itinerante da exposição que passará por algumas das cidades onde viveu: São Petersburgo, Paris, Londres e “uma cidade espanhola”, ainda a ser determinada. Em seu tempo, Casanova passou por Madri, Barcelona, Valência e Zaragoza entre 1767 e 1768, depois de expulso de Paris por seus indecorosos costumes. Fugiu depois de ser perseguido pela Inquisição e expulso da capital catalã, onde passou seis semanas em sua Ciudadela. Mais de dois séculos depois de sua morte, Casanova voltará a percorrer a geografia europeia.

FASCÍNIO PERMANENTE

Desde que suas exaustivas memórias de 3.500 páginas, História de minha vida, foram reeditadas nos anos 1960, depois de terem sobrevivido a um bombardeio dos aliados em Leipzig, Casanova voltou a se tornar objeto de fascínio. No fim do percurso, o museu veneziano passa em revista os filmes que se inspiraram em sua vida, dirigidos por todo tipo de cineastas, de Federico Fellini a Albert Serra. Numerosas biografias tentaram decifrar a chave de sua existência. Uma delas, assinada pela psicanalista Lydia Flem nos anos noventa, considerou-o um personagem pré-feminista e abrangeu sua sexualidade fluida e suas experiências com homens e mulheres. Outra mais recente, publicada em 2016, por Laurence Bergreen, destaca as carências afetivas que teriam sido provocadas pelo abandono de sua mãe, atriz que o deixou a cargo de sua avó e nunca lhe deu o amor de que necessitava. A Biblioteca Nacional da França adquiriu o manuscrito de História de minha vida em 2010 por 7 milhões de euros (cerca de 21 milhões de reais) o que o transformou na peça mais cara de sua coleção.
EL PAÌS



quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Catherine Millet / “É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima”

Catherine Millet

Catherine Millet

“É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima”

Catherine Millet, promotora do manifesto contra o #MeeToo, denuncia seus métodos e consequências



ÁLEX VICENTE
Paris 12 JAN 2018 - 18:00 COT

Seu manifesto conseguiu semear o caos na França e em boa parte do mundo. A escritora e crítica de arte Catherine Millet (Bois-Colombes, 1948), autora do best-seller A Vida Sexual de Catherine M., é uma das cinco mulheres por trás do manifesto contra o #MeToo, assinado por 100 personalidades da cultura francesa, lideradas pela atriz Catherine Deneuve, a cantora Ingrid Caven e a editora Joëlle Losfeld. Millet diz que esse movimento, que rotula de “puritano”, favorece a volta da “moral vitoriana”. Ela defende “a liberdade de importunar”, inclusive no sentido físico, considerando-a indispensável para assegurar a herança da revolução sexual. É o que afirma em seu escritório parisiense, um quarto cheio de catálogos amontoados onde o telefone não para de tocar desde que começou a dirigir a revista Art Press, que cofundou em 1972.

Pergunta: Vocês esperavam as violentas reações que o texto provocou?
Resposta: Absolutamente. Só quisemos reagir ante a palavra das feministas radicais, que era a única que líamos na imprensa. Aquilo nos incomodava, pois não era um ponto de vista que compartilhássemos e porque, ao nosso redor, conhecíamos muitas mulheres que não pensavam assim. No meu entender, você não fica traumatizada durante anos porque um homem tocou na sua coxa. A ideia era contar que nem todas as mulheres reagimos da mesma forma ante gestos que podemos considerar grosseiros ou indelicados.
P. Criticaram sua falta de solidariedade em relação às outras mulheres...
R. Ninguém pede a um homem que compartilhe as opiniões de todos os demais homens do planeta. Isso é impossível. Não estamos dizendo que achamos bom que estuprem as mulheres; o que fazemos é mostrar os deslizes cometidos por esse movimento. Por exemplo, questionar certos homens por atos mínimos e que tiveram consequências graves em suas carreiras. Foi criado um tribunal público onde eles nem ao menos tiveram a chance de se defender. De repente, tivemos a sensação de que todos os homens eram porcos. É preciso estar na pele dos que sofreram violência sexual, mas também pensar nos homens que foram vítimas de acusações muito rápidas e com sérias consequências para suas vidas profissionais.


“Se me estuprassem, tentaria esquecer”

P. Ressaltando as disfunções do movimento e não seus acertos, vocês não correm o risco de prejudicar essa tomada de consciência sobre a violência sexual e os abusos de poder, que seu próprio manifesto considera “necessária”?
R. As feministas não dizem que a palavra foi libertada? Então, se é assim, nossa palavra vale o mesmo que a delas. A censura que esse caso pôde provocar me parece ridícula. É muito grave que se remova um ator de um filme [Kevin Spacey, substituído por outro ator em Todo o Dinheiro do Mundo após ser acusado de agressões sexuais]. São métodos que me fazem lembrar os do stalinismo...
P. Seu movimento fala de “uma onda purificadora” que acabaria instalando “uma sociedade totalitária”. Não é um pouco excessivo?
R. Justamente, você cita uma frase que eu escrevi. Em todo texto polêmico há um pouco de exagero, mas eu o assumo totalmente. Vejo surgir um clima de inquisição, em que cada um vigia seu vizinho, como acontecia nos regimes soviéticos, e depois o denuncia nas redes sociais. Todos os cantos da sociedade estão sob vigilância, incluindo nossa esfera íntima...


“A codificação de nossas relações é impossível, a não ser que nos transformemos em robôs”

P. Essas acusações não são o resultado de uma Justiça imperfeita, por causa das prescrições de crimes e da falta de provas?
R. Concordo, mas esse não é o melhor método. Se cada cidadão faz justiça com as próprias mãos, retornamos aos tempos do faroeste. A Justiça tem defeitos, e é inegável que não dá conta de tudo, mas vivemos numa sociedade que aceita que é ela a encarregada de julgar, não um tribunal popular. Nisso eu sou radical.
P. A senhora foi acusada de antifeminista. É de fato?
R. Se falamos desse feminismo específico, realmente sou contra. Mas hoje existem várias correntes feministas... Me sinto mais próxima das feministas que integram o sexo em seu discurso — que costumam ser mais jovens que eu — do que das que expressam, através do movimento #MeToo, posições radicais que nunca compartilhei, nem agora nem durante os anos setenta. O feminismo continua sendo muito justificado no entorno social. Por exemplo, no que se refere à igualdade salarial. Também defendo essa igualdade na liberdade sexual, isso damos por certo...
P. Vocês também são criticadas por serem quase todas brancas e burguesas. Por defenderem, no final das contas, uma postura elitista.
R. Sim, nos criticaram por não andarmos de metrô. Na verdade, eu pego o metrô várias vezes por dia. Quando era mais jovem, certa vez um homem passou a mão em mim no transporte público, e nem por isso morri ou me tornei uma inválida.... Entre as signatárias do manifesto, há uma mistura geracional e de origens. Por outro lado, as mulheres que nos atacam também são intelectuais e universitárias, assim como nós. Catherine Deneuve deve ter um modo de vida um tanto diferente, mas todas as demais somos bastante parecidas com as que nos atacam...


“A censura já não provém de círculos extremamente conservadores, mas de mulheres que se consideram feministas”

P. Considera que o famoso “direito de importunar” que o texto defende é mais importante que o direito de não ser importunado?
R. É que as duas coisas andam juntas.... Quando um homem te incomoda, você tem a liberdade de lhe dizer que pare com isso. Temos a capacidade de dizer que não. Por outro lado, importunar é uma palavra bastante leve. Não é o mesmo que assediar, nem de longe. Alguém pode importunar você fumando do seu lado num lugar público...
P. Não é o mesmo grau de intrusão que tocar em alguém.
R. Sei que criticaram muito essa palavra, mas abram os dicionários. Veja, vou buscá-la... [procura a definição em seu tablet]. Importunar é sinônimo de incomodar, aborrecer, causar desconforto, irritar...
P. Mas a senhora entende que existam mulheres que não querem ser importunadas quando passeiam pela rua ou vão ao metrô?
R. Não. Acredito que há uma margem em que o comportamento dos demais pode acontecer sem que seja considerado um crime. Você pode achar desagradável e reclamar, mas nem por isso é um crime. E, como tal, não quero que esteja regulado, nem por uma moral superior nem pela lei. É preciso aceitar que existem impertinentes na vida. Essas mulheres parecem almejar uma sociedade utópica e regulada nos mínimos detalhes, onde um homem deverá tomar precauções antes de se dirigir a uma mulher. A codificação de nossas relações é impossível, a não ser que nos transformemos em robôs.
P. A senhora afirma que esse direito de importunar é indispensável para garantir a liberdade sexual. Em que sentido?
R. Numa relação entre dois indivíduos, sempre há um momento confuso e ambíguo, em que um dos dois não sabe muito bem o que quer. Quando um homem tentava me seduzir, às vezes sentia uma atração que não era grande o suficiente para ceder de imediato. Um momento de dúvida. Às vezes você acaba cedendo; em outras, não. Essas mulheres dizem que um “não” sempre é definitivo, mas eu acredito que existam nuances. Às vezes, os homens têm uma oportunidade se insistirem novamente.


“Se comparo minhas possibilidades com a vida que minha mãe teve, numa única geração ganhamos muito”

P. Seu movimento denuncia um retorno à moral vitoriana. De novo: não é um pouco exagerado, numa sociedade em que a sexualidade é onipresente?
R. Há tempos acredito que, quanto mais liberdade existe no discurso e na circulação de imagens, mais se exasperam os setores que a consideram incômoda – e sua reação se torna cada vez mais violenta. O surpreendente é que essa vontade de censura já não provém de círculos extremamente conservadores, mas de mulheres que se consideram feministas. Não sei se você viu as duas meninas que pediram ao Metropolitan de Nova York que retirasse um quadro de Balthus: eram duas jovens modernas e provavelmente de esquerda...
P. São casos pontuais, que já ocorriam muito antes do movimento #MeToo. Pintores como Balthus e Schiele, ao qual seu texto também se refere, geram escândalos há décadas. Não tomam a exceção como se fosse a regra?
R. Sim, mas acredito que devemos reagir com rapidez, pois os efeitos podem ser imediatos. Veja o caso desse professor norte-americano demitido por mostrar imagens do século XVIII, provavelmente um tanto libertinas, aos alunos. Alguns dos pais as haviam considerado pornográficas!
P. “Lamento muito não ter sido estuprada, porque assim poderia dar fé de que um estupro também pode ser superado”, disse a senhora em dezembro. Sua frase gerou um enorme escândalo. Se arrepende de tê-la pronunciado?
R. Não. Foi uma formulação um tanto cômica e sem reflexão, mas só porque não queria me expressar com um tom excessivamente grave. Tendo a vida sexual que tive, na qual contei com muitos companheiros diferentes — alguns deles, perfeitos desconhecidos —, sempre disse que, se me encontrasse numa situação de estupro, não me defenderia. Assim sofreria menos riscos, pois conseguiria neutralizar a violência do agressor. Se a violência desse ato tivesse me transtornado, acredito contar com a capacidade moral suficiente para superar esse fato e tentar esquecê-lo. Essa é minha resposta pessoal. Há pouco tempo, li uma entrevista de uma advogada que havia sido estuprada quando jovem e que desaconselhava suas clientes a denunciar e processar, porque isso só te faz prisioneira do sofrimento. Salvo em casos em que haja consequências físicas graves, acredito que a mente consegue vencer o corpo.


“Vejo surgir um clima de inquisição, em que cada um vigia seu vizinho”

P. Não acha que um estupro também tem consequências psicológicas?
R. Elas existem para algumas mulheres, mas não para todas. É preciso deixar de pensar que a mulher é sempre uma vítima. Pode ser vítima desse ato num instante, mas também pode encontrar a capacidade de reagir...
P. Uma das signatárias do texto, a filósofa Peggy Sastre, é autora de um ensaio intitulado A Dominação Masculina Não Existe. Concorda com isso?
R. Existe, mas não em todas as partes. Em nossa sociedade, atualmente e na classe média, as mulheres contam com um grande poder. No âmbito doméstico, com frequência são elas que impõem sua vontade dentro do casal, por causa da culpabilidade dos homens jovens e do fato de trabalharem e serem economicamente livres...
P. Então, onde persiste a dominação masculina?
R. Vou esquivar a pergunta... Houve tantos avanços nas últimas décadas... Se comparo minhas possibilidades com a vida que minha mãe teve, numa única geração ganhamos muito. Mas as feministas continuam interessadas em nos fazer acreditar que nossa sociedade é unicamente patriarcal. Isso não é verdade. Acho que também existe um matriarcado...
P. Considera que o patriarcado é coisa do passado?
R. Digamos que foi drasticamente reduzido.