“Propôs a si mesma desaparecer sem deixar rastro. Lila não avisou, apagou sua consciência de um dia para o outro: esvaziou os armários, recortou sua imagem das fotos, não restou nada. Sua amiga íntima de infância, a escritora Elena Greco, Lena, é a única disposta a discordar com o afinco, a raiva e a coragem de que só são capazes as mulheres quando se empenham em que outra não consiga o que quer”. Assim começa a tetralogia Série Napolitana [no Brasil, por enquanto, foi publicado apenas o primeiro volume da série A Amiga Genial, pela Editora Globo/Biblioteca Azul] que transformou a misteriosa Elena Ferrante em um fenômeno literário internacional.
La Niña Perdida, editora Lumen (A Menina Perdida) põe fim às cerca de 2000 páginas dessa saga, em que Lena, a narradora, conta a história de sua magnética amiga, subitamente desaparecida, e percorre cerca de seis décadas de suas vidas: desde a Nápoles do pós-guerra na qual ambas cresceram até quase o presente. As duas mulheres são acompanhadas por um extenso repertório de personagens do bairro e o pano de fundo da história da Itália no último meio século. “A Série Napolitana continua a tradição dos romances do século XIX (Balzac, Austen, Zola...), mas ao mesmo tempo a obra é muito moderna por seu estilo e sua crua sinceridade”, observa a editora italiana de Ferrante, Sandra Ozzola.
Saudada pela crítica norte-americana como a nova Elsa Morante e aclamada como a melhor escritora italiana de sua geração, a febre em torno dessa autora inunda livrarias e aeroportos. Mas Elena Ferrante mantém sua identidade em segredo desde que em 1992 publicou seu primeiro romance Um Estranho Amor. Ozzola, que edita sua obra desde o início, confessa que isso complica seu trabalho. Agora, apesar da fama e do prestígio de que Ferrante desfruta, as coisas não mudaram: com um empenho por desaparecer semelhante ao de sua personagem Lila, ela se esconde atrás de um pseudônimo, não concede entrevistas pessoalmente a ninguém, a não ser seus editores, nem sequer por telefone, e nunca promoveu seus livros nem participou de leituras. As especulações sobre sua verdadeira identidade apontam, nos círculos literários italianos, parao escritor napolitano Domenico Starnone ou que por trás de Ferrante se esconda um casal (o próprio Starnone e sua mulher, a tradutora Anita Raja), algo que foi desmentido várias vezes. De forma excepcional, Ferrante concorda em responder por e-mail uma série de perguntas ao EL PAÍS. Sua agente adverte que as perguntas não devem abordar o tema de seu anonimato e, claro está, não haverá possibilidade de réplica a suas respostas.
Minha geração é a primeira que deixou de acreditar que para escrever grandes livros era preciso ser homem
Pergunta. À medida que ia escrevendo os romances da Série Napolitana a popularidade desses livros ia aumentando. A terceira parte foi indicada ao Prêmio Strega e quando saiu A Menina Perdida a saga se transformou num fenômeno literário. Isso afetou a sua escrita? Lê as resenhas e críticas de sua obra?
Resposta. Costumo ler atentamente tudo o que se escreve sobre meus romances, mas somente quando tenho a impressão de que o livro já se distanciou o bastante. Neste caso, não foi possível. A Série Napolitana é para mim um só romance muito longo, muito compacto. Mas sua publicação em quatro volumes –um por ano – fez com que, enquanto eu estava a ponto de completar a história, já houvesse resenhas e cartas dos leitores. Trata-se de uma experiência sobre a qual ainda tenho de refletir.
P. Tinha claro o que aconteceria com Lena e Lila quando começou a escrever? Como elaborou a trama?
R. Nunca escrevo desenvolvendo um esquema de modo diligente. Em geral, de uma história conheço de maneira bem sucinta o destino final e algumas etapas intermediárias importantes, mas dos incontáveis desdobramentos não sei nada, e os identifico enquanto escrevo. Se não fosse assim –se soubesse tudo dos episódios e personagens–, eu me entediaria e o abandonaria. Algo que, por outro lado, me acontece com muita frequência. Trabalho durante muito tempo atendo-me à estrutura do relato e à escrita. Depois, eu me dou conta de que não me estou aproximando de nenhuma verdade, que estou dando uma espécie de falso testemunho, e o deixo. Nisso me vejo muito distante de Lena. Sua obsessão com que tudo se sustente com coerência e distinção me parece um pecado capital contra a verdade.
P. E até que ponto se identifica com as dificuldades que sua personagem Lena enfrenta como escritora?
R. Sempre escrevi muitíssimo. Concebo a escrita como uma arte que exige uma prática contínua. Exercitar-me para melhorar é algo que não me angustia. No entanto, publicar continua me angustiando. Na verdade, quando decido publicar faço isso tomada de incertezas e só o faço quando acredito que a verdade se impõe no relato. Reconheço a verdade literária. Se ela chega, isso acontece quando esgotei todos os meus recursos de escrita e já deixei de esperá-la.
P. As mulheres são mais críticas com seu trabalho do que os homens? São mais clarividentes e duras?
R. Não sei. Mas acho que se uma escritora quer render o máximo, tem de impor-se certa insatisfação como sistema. Nós enfrentamos gigantes. A tradição literária masculina é milenar, sumamente rica com obras extraordinárias, e tem sua própria forma de abordar todas as possibilidades. Quem quiser escrever precisa conhecer essa tradição a fundo e tem de aprender a repensá-la, forçando-a conforme suas necessidades. Como mulheres, a matéria bruta de nossa experiência exige antes de tudo capacidade. Além do mais, temos de combater a apreensão e buscar uma genealogia literária própria com descaramento, até com soberba.
P. As protagonistas de seus livros sempre são mulheres escritoras. Por quê? A maternidade também é um de seus temas recorrentes. É difícil escrever abertamente sobre isso?
R. As mulheres escrevem muito, e não tanto por profissão, mas por necessidade. Recorrem à escrita sobretudo em momentos de crise, e o fazem para se explicarem a si mesmas. Há muitas coisas de nós que não foram contadas até o fundo ou que simplesmente não foram contadas, e acabamos descobrindo isso quando a vida de cada dia se turva e sentimos necessidade de pôr ordem. A maternidade, precisamente, me parece uma dessas experiências, exclusivamente nossas, cuja verdade ainda precisa ser explorada.
P. É irônico que em seus livros seja tratado o tema do contato de sua personagem Lena com a imprensa, e de como as entrevistas e a exposição pública a afetam. É uma forma sutil de reafirmar sua posição pessoal?
R. Não faço ironias sobre a condição do escritor na atualidade. Eu me limito a contar o efeito que isso tem em minhas duas protagonistas: Lena vive se debatendo entre a adesão e o desalento, Lila entra em choque com ela: sofre com isso ou tenta utilizar isso.
P. Ao lembrar as viagens promocionais de seus livros, Lena diz que encontrou seu tom e seu discurso no cara a cara com os leitores. Confessa que com frequência improvisava a partir da própria experiência. Há algo disso no modo como a senhora enfrenta a escrita?
R. Não. A escrita é diferente de qualquer exposição pública. Nessas respostas escritas, por exemplo, sou uma escritora que se dirige aos leitores sob o estímulo das perguntas deles, também por escrito. Não improviso respostas como em outros intercâmbios, eu não subo ao palco. Protejo muito, muitíssimo, a minha intimidade, que, sob diversas formas de comunicação, exporia sem problemas. Para mim, escrever é uma atividade sob rigoroso controle, que contempla uma única confrontação possível: a leitura.
P. Quando Lena recorda as palestras e as leituras públicas, diz que lançava mão de histórias que não lhe pertenciam. A ficção sempre traz um sentimento de culpa?
R. Sem dúvida. Escrever –e não só ficção– é sempre uma apropriação indevida. Nossa singularidade como autores é uma pequena nota à margem. Todo o resto é tomado daqueles que escreveram antes de nós, das vidas e sentimentos dos outros. Sem autorização alguma.
Concebo a escrita como uma arte que exige prática contínua. Exercitar-me para melhorar é algo que não me angustia
P. Lena fala de seus livros e do que Lila escreve, mas os leitores dessa história nunca chegam a ver isso. Em seus livros, há certa rejeição aos fatos em favor da memória e do sentimento. Essa subjetividade aberta faz com que uma história seja mais realista e contundente?
R. Descartei quase de cara introduzir fragmentos dos livros de Lena e dos cadernos de Lila. Para os fins da história, sua objetividade conta pouco. O que importa é que Lena, apesar do sucesso, produz suas obras como uma pálida sombra daquelas que Lila teria escrito; e mais do que isso, que ela mesma se perceba como se assim fosse. A força das histórias não está em imitar de maneira verossímil pessoas e fatos, mas capturar a confusão das existências, como se fazem e se desfazem as crenças, como colidem estilhaços de várias procedências no mundo e em nossas cabeças.
P. À medida que avança este quarto livro, A Menina Perdida, o personagem de Lila parece encarnar Nápoles. Foi algo a que você se propôs?
R. Sim, mas é uma ideia que descartei. Não queria que Lila ficasse marcada como isto ou aquilo. O que eu queria é que a dispersão contínua de todos os personagens, da infância até a velhice, acabasse se derramando sobre a topografia do bairro e de toda a cidade. Nápoles é difícil de explicar porque não é linear, os opostos se desvanecem uns aos outros, sua beleza maravilhosa se torna feia, sua cultura requintada se torna trivial, sua famosa cordialidade se inverte como violência.
P. Quais são os escritores que mais admira? E quais são os personagens femininos que a enredaram?
R. A lista é interminável, eu prefiro poupá-la. Mas gostaria de salientar que durante todo o século XX a tradição das mulheres escritoras foi fortalecida extraordinariamente, e não apenas no Ocidente. Creio que a minha geração é a primeira que deixou de pensar que para escrever grandes livros era necessário ser homem. Hoje podemos pensar com serenidade que podemos de sair do gineceu literário no qual se tende a nos circunscrever e que podemos enfrentar a comparação.
P. A amizade entre mulheres é um assunto que quase não tem sido discutido na literatura. Por quê?
As mulheres escrevem muito, e não tanto por profissão, mas por necessidade. Recorrem à escrita sobretudo em momentos de crise, e o fazem para se explicarem a si mesmas
R. A amizade masculina tem uma longa tradição literária e um código de comportamento muito elaborado. Por outro lado, a amizade feminina tem um mapa provisório que só começou a se definir há pouco. Há o risco de que o atalho do lugar-comum se imponha aos esforços de outros trajetos mais árduos.
P. Lena fala sobre seu distanciamento do feminismo. Qual é a sua posição sobre isso?
R. Sem o feminismo eu ainda estaria como quando era menina: sobrecarregada de uma cultura e uma subcultura masculina que assumia como pensamento próprio e livre. O feminismo me ajudou a crescer. Embora hoje veja que as novas gerações zombam dele. Não sabem que por muito pouco se pode retroceder. Nossas conquistas são muito recentes e, portanto, frágeis. Todas as mulheres de meus livros sabem bem disso.
P. Em A Menina Perdida, o ritmo se acelera, Lena narra décadas inteiras rapidamente. Parece que é mais difícil para ela descrever à medida que o presente se aproxima. Foi difícil concluir essa história?
R. É difícil falar do presente, porque é volátil por natureza. Eu o narrei imaginando como um precipício, como a água que evapora em uma cachoeira. Ainda assim, o livro mais difícil escrever não foi o quarto, mas o terceiro. Ainda é muito cedo para realmente sentir distância desses livros. Na verdade, é como se ainda estivesse escrevendo.
P. Existe um eco de destino fatal e de tragédia grega em seus livros. Até que ponto você foi influenciada pelas obras clássicas?
R. Estudei línguas clássicas e na juventude traduzi muito, por prazer, tanto do grego como do latim. Queria aprender a escrever e me parecia um exercício perfeito. Mas eu não tinha tempo suficiente e parei. Você diz que essa formação se nota nos livros e acredito nisso com prazer, mas sempre pensei que minhas mulheres, mais do que presas ao destino, estavam fechadas em compartimentos histórico-culturais.
P. Está trabalhando em um novo livro?
R. Sim, é raro que fique sem escrever por longos períodos. Terminar um livro, no entanto, não é algo que me acontece com tanta frequência. E quando acontece, publicar não me excita. Escrever me deixa de bom humor, publicar não.
O mistério de Ferrante
A lista de fãs de Ferrante nos EUA, (de Gwyneth Paltrow a Alice Munro), não deixou de crescer ao longo do ano passado, levando à chamada Ferrante Fever”, slogan que decorava cartazes em mais de uma livraria. Enquanto isso, o mistério sobre sua verdadeira identidade permaneceu aberto: Como será o rosto de Ferrante? Um homem seria realmente capaz de escrever essas histórias?
As discussões e conversas sobre a escritora chegaram ao auge quando a revista The Paris Review publicou na primavera passada uma de suas legendárias entrevistas com Ferrante. Foi a primeira vez que um autor com pseudônimo era entrevistado em suas páginas. “No começo pensamos que Ferrante se recusava a falar com um entrevistador e não iríamos fazer a entrevista por e-mail”, explica o diretor de The Paris Review, Lorin Stein. “Eu insisti que a entrevista deveria ser de viva voz”. Pouco depois se reuniu em Nova York com editores italianos de Ferrante e posto que são os únicos que a conhecem e tratam com ela, propôs que fizessem a entrevista. As conversas aconteceram em Nápoles e Roma, e junto ao texto surgiram –como é frequentemente a norma– vários manuscritos. “Creio que na entrevista Ferrante explica de forma muito eloquente porque deseja preservar sua privacidade e ficar longe dos livros, do marketing e do mundo editorial”, diz Stein. “Tenho que dizer que acredito que faz todo o sentido. A única coisa que eu me pergunto é por que não há mais escritores que tomam a mesma decisão.”