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7.6.14
Ferreira Gullar: "A farsa das galerias e a ditadura dos curadores"
Essa gratuidade da arte contemporânea se reflete ainda, por exemplo, numa obra como aquela levada para uma galeria onde o cara pega um cachorro, amarra numa coleira, deixa ele preso numa gaiola durante dias sem dar comida nem água, e o cachorro então morre. Aí o cara vai lá e escreve numa placa: arte perecível. Agora, se ele faz isso no quintal da casa dele, não é arte. Mas na galeria é arte. Quer dizer: o que transforma a obra dele é a instituição. Que vanguarda é essa que precisa da instituição? Vê como é tudo uma besteirada? Uma farsa? Uma bobagem? Essa postura da arte contemporânea não leva a lugar nenhum.
GULLAR, Ferreira. In: "Um alquimista chamado Ferreira Gullar. Entrevista a João Pombo Barile". In: Suplemento. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de Cultura, março/abril 2014.
Labels:
Arte contemporânea,
Ferreira Gullar,
Instituição,
Vanguarda
29.6.12
Entrevista ao jornal Correio da Bahia
A seguinte entrevista, que concedi a Salvatore Carrozzo, do jornal Correio da Bahia, de Salvador, foi publicada em 27 de junho:
Qual foi o seu objetivo ao fazer este livro? Qual pergunta queria responder?
A pergunta que motiva o livro é a que frequentemente me fazem: qual a diferença entre poesia e filosofia? Como penso, contra as tendências da moda, que são empreendimentos diferentes, aproveitei para não apenas falar dessa diferença, mas sobretudo para expor minhas ideias sobre a especificidade da poesia.
O brasileiro ainda liga poesia e filosofia a algo hermético?
Muita gente realmente despreza tudo o que não tem alguma utilidade prática. Pior: despreza tudo o que não dá dinheiro. Além disso, enquanto é possível fazer coisas práticas, como trabalhar, comer, transar ou ler o jornal ouvindo música, por exemplo, não é possível fazer nada disso ao mesmo tempo em que se lê um poema ou um ensaio de filosofia. Estes exigem tempo e concentração. Sendo assim, a poesia e a filosofia acabam sendo desprezadas. A ciência não é desprezada do mesmo modo somente porque é associada à tecnologia, logo, à técnica, logo, à utilidade prática.
Em um momento do livro, o senhor cita a lenda segundo a qual filósofo Tales, olhando os astros, caiu em um poço, e foi caçoado: "Pretendendo conhecer os céus, ignorava o que se encontrava aos seus pés". A filosofia tem virado muito as costas para os problemas do Brasil?
Acho mais lamentável que os brasileiros virem as costas para a filosofia. Então devemos deixar o pensamento mais ambicioso e profundo para os franceses, alemães, americanos, isto é, para os outros, limitando-nos a pensar sobre o que está aos nossos pés? Então um alemão, quando filosofa, pode perguntar-se sobre o ser, sobre o universo ou sobre os problemas da humanidade, mas nós, brasileiros, devemos nos ater aos problemas do Brasil? A Grécia antiga é hoje admirada como um dos pontos altos da história exatamente por causa de gente como Tales, que era capaz de voltar o olhar para o que se encontra muito além do chão que pisava, e não por causa dos que caçoavam de Tales.
O senhor diferencia pensar sobre o mundo e pensar o mundo. Poderia explicar melhor isso?
Em 2004, Adauto Novaes concebeu um ciclo de conferências intitulado “Poetas que pensaram o mundo”. Pareceu-me importante que ele o tivesse intitulado assim e não, como seria de esperar, “Poetas que pensaram SOBRE o mundo”. Refletindo sobre a diferença entre essas duas formulações, pareceu-me que, de fato, são os filósofos que pensam SOBRE o mundo, enquanto os poetas pensam O mundo. É como se os filósofos estivessem ACIMA, o que implica que estivessem FORA do mundo, ao pensar sobre ele. Já o pensamento dos poetas tende a se confundir com o mundo. O poeta, enquanto poeta, isto é, nos seus poemas, pensa não apenas com conceitos que pretendam abarcar o mundo, mas também com os sons, os ritmos, as imagens do próprio mundo: pensa, por isso O mundo, e não sobre o mundo.
O termo "poético" é usado para dizer algo muitas vezes pueril. "Fulano tem um olhar poético da vida", por exemplo. Isso faz parte da construção da poesia como algo supérfluo?
Creio que sim. É como se os poetas, como as crianças, não tenham caído na “real”, que é, segundo o senso comum, ver a vida com um olhar pragmático, utilitário, instrumental.
Em seu livro, o senhor fala de textos que podem, simultaneamente, ter uma contribuição original ao pensamento filosófico e ser um bom poema. Isso é raro hoje em dia?
Não é raro apenas hoje em dia. Sempre foi muito raro que um texto fosse, ao mesmo tempo e no mesmo trecho, um bom poema e uma contribuição original ao pensamento filosófico. É que aquilo que torna um texto poético bom não é o que torna um texto filosófico bom. O valor de um texto filosófico depende, por um lado, da originalidade e da capacidade das teses filosóficas que propõe de darem conta de questões lógicas, ontológicas, epistemológicas e estéticas, bem como da qualidade da argumentação com que o faz. Já o valor de um poema é função de sua capacidade de estimular o jogo de todas as nossas faculdades: inteligência, sensibilidade, emoção, sensualidade, memória etc. São coisas inteiramente diferentes.
O senhor diz, no livro, ser perfeitamente concebível um filósofo não produzir uma obra sequer em sua vida. Isso de alguma forma não corrobora a ideia do filósofo como um ser superior, que não faz parte do mundo?
Não necessariamente. Sócrates, por exemplo, era considerado filósofo porque suas ideias, mesmo não tendo sido escritas, foram discutidas e divulgadas pelos seus discípulos. Tanto ele quanto Pitágoras, outro filósofo que jamais escreveu, diziam preferir colocar suas doutrinas em seres dotados de alma (os discípulos) do que em seres sem alma (os livros). No fundo, eles achavam que, desse modo, essas doutrinas fariam mais integralmente parte do mundo.
Muitos poetas, o senhor incluído, dizem que, a rigor, o poema não serve para nada. Muito já foi declamado sobre esse assunto. Não é algo radical demais?
Não. É que o poema não precisa se justificar por nenhuma utilidade ulterior a ele mesmo. Sua leitura compensa a si própria. Nesse sentido, o poema vale por si. Isso não significa nenhum formalismo. É o poema como um todo, em que forma e conteúdo, não podem ser separados um do outro, que vale por si.
O senhor se refere muito a Carlos Drummond de Andrade no seu livro. Uma predileção especial? Podemos tratá-lo como um filósofo?
Não. Drummond não foi um filósofo. Foi o nosso maior poeta. Enquanto tal, ele não foi inferior a filósofo nenhum. A poesia é diferente, mas não é inferior nem superior à filosofia. Como eu já disse, um poema é capaz de mexer com todas as nossas faculdades: e é capaz de mexer com tudo o que sabemos, inclusive com a filosofia, a história, a geografia, a mitologia, a física que conheçamos. Um poema pode, por exemplo, falar do ser, da Grécia, de vulcões, de Zeus, de “partículas elementares” ou de “buracos negros”. Mas isso não quer dizer que ele seja uma obra de filosofia, história, geografia mitologia ou física. Ele é uma obra de poesia apenas, e isso basta.
No Brasil, a média é de pouco mais de um livro lido por ano. Isso não é muito frustrante para um escritor?
Sim; principalmente considerando que, apesar disso, nenhum governo investe maciçamente na educação.
No livro, o senhor diz que "deve-se às vanguardas do século XX a desfetichização completa de todos os recursos poéticos". Poderia explicar melhor isso?
É muito simples. Certas formas poéticas haviam sido fetichizadas, isto é, enfeitiçadas, pela tradição. Como a maior parte da poesia produzida no Ocidente moderno era metrificada e rimada, por exemplo, supunha-se que a métrica e a rima fossem intrinsecamente poéticas. Elas eram, de maneira geral, tidas como necessárias e como suficientes para a produção de um poema. Viraram fetiches. Ou seja, um texto que não possuísse métrica e rima não era normalmente tomado como um poema; e um texto que as possuísse era automaticamente tomado com um poema. Ora, as vanguardas mostraram que era possível produzir poemas sem métrica, rima ou outras características fetichizadas. Com isso, desfetichizaram tais características.
O senhor lê latim e grego? Ainda são línguas essenciais para o estudo da filosofia como foi no passado?
Tenho a impressão de que nada foi mais importante, para minha formação, do que aprender grego e latim. Nada me estimulou ou ensinou mais do que o estudo dessas línguas, tanto no que diz respeito à poesia, quanto no que diz respeito à filosofia. Mas não tenho o direito de generalizar. Há inúmeros grandes poetas e inúmeros grandes filósofos que não leem nem grego nem latim.
No ano passado, Marina Lima, sua irmã, lançou Climax, o primeiro disco sem colaborações suas. O senhor se incomodou com isso, de alguma forma?
Não me incomodou propriamente porque isso é, em parte, resultado de minha própria opção por me concentrar em escrever ensaios de filosofia e poesia para ser lida. Além disso, nossa parceria era sempre resultado de muitas conversas. Normalmente, eu ia para a casa dela, onde ela me mostrava a música que estava começando a compor e eu, a partir das conversas e do clima da música, começava a esboçar uns versos. Ora, agora Marina está morando em São Paulo e eu, no Rio, de modo que isso se tornou mais complicado. Lamento essa distância, mas tenho certeza de que ainda faremos muita coisa juntos.
Qual foi o seu objetivo ao fazer este livro? Qual pergunta queria responder?
A pergunta que motiva o livro é a que frequentemente me fazem: qual a diferença entre poesia e filosofia? Como penso, contra as tendências da moda, que são empreendimentos diferentes, aproveitei para não apenas falar dessa diferença, mas sobretudo para expor minhas ideias sobre a especificidade da poesia.
O brasileiro ainda liga poesia e filosofia a algo hermético?
Muita gente realmente despreza tudo o que não tem alguma utilidade prática. Pior: despreza tudo o que não dá dinheiro. Além disso, enquanto é possível fazer coisas práticas, como trabalhar, comer, transar ou ler o jornal ouvindo música, por exemplo, não é possível fazer nada disso ao mesmo tempo em que se lê um poema ou um ensaio de filosofia. Estes exigem tempo e concentração. Sendo assim, a poesia e a filosofia acabam sendo desprezadas. A ciência não é desprezada do mesmo modo somente porque é associada à tecnologia, logo, à técnica, logo, à utilidade prática.
Em um momento do livro, o senhor cita a lenda segundo a qual filósofo Tales, olhando os astros, caiu em um poço, e foi caçoado: "Pretendendo conhecer os céus, ignorava o que se encontrava aos seus pés". A filosofia tem virado muito as costas para os problemas do Brasil?
Acho mais lamentável que os brasileiros virem as costas para a filosofia. Então devemos deixar o pensamento mais ambicioso e profundo para os franceses, alemães, americanos, isto é, para os outros, limitando-nos a pensar sobre o que está aos nossos pés? Então um alemão, quando filosofa, pode perguntar-se sobre o ser, sobre o universo ou sobre os problemas da humanidade, mas nós, brasileiros, devemos nos ater aos problemas do Brasil? A Grécia antiga é hoje admirada como um dos pontos altos da história exatamente por causa de gente como Tales, que era capaz de voltar o olhar para o que se encontra muito além do chão que pisava, e não por causa dos que caçoavam de Tales.
O senhor diferencia pensar sobre o mundo e pensar o mundo. Poderia explicar melhor isso?
Em 2004, Adauto Novaes concebeu um ciclo de conferências intitulado “Poetas que pensaram o mundo”. Pareceu-me importante que ele o tivesse intitulado assim e não, como seria de esperar, “Poetas que pensaram SOBRE o mundo”. Refletindo sobre a diferença entre essas duas formulações, pareceu-me que, de fato, são os filósofos que pensam SOBRE o mundo, enquanto os poetas pensam O mundo. É como se os filósofos estivessem ACIMA, o que implica que estivessem FORA do mundo, ao pensar sobre ele. Já o pensamento dos poetas tende a se confundir com o mundo. O poeta, enquanto poeta, isto é, nos seus poemas, pensa não apenas com conceitos que pretendam abarcar o mundo, mas também com os sons, os ritmos, as imagens do próprio mundo: pensa, por isso O mundo, e não sobre o mundo.
O termo "poético" é usado para dizer algo muitas vezes pueril. "Fulano tem um olhar poético da vida", por exemplo. Isso faz parte da construção da poesia como algo supérfluo?
Creio que sim. É como se os poetas, como as crianças, não tenham caído na “real”, que é, segundo o senso comum, ver a vida com um olhar pragmático, utilitário, instrumental.
Em seu livro, o senhor fala de textos que podem, simultaneamente, ter uma contribuição original ao pensamento filosófico e ser um bom poema. Isso é raro hoje em dia?
Não é raro apenas hoje em dia. Sempre foi muito raro que um texto fosse, ao mesmo tempo e no mesmo trecho, um bom poema e uma contribuição original ao pensamento filosófico. É que aquilo que torna um texto poético bom não é o que torna um texto filosófico bom. O valor de um texto filosófico depende, por um lado, da originalidade e da capacidade das teses filosóficas que propõe de darem conta de questões lógicas, ontológicas, epistemológicas e estéticas, bem como da qualidade da argumentação com que o faz. Já o valor de um poema é função de sua capacidade de estimular o jogo de todas as nossas faculdades: inteligência, sensibilidade, emoção, sensualidade, memória etc. São coisas inteiramente diferentes.
O senhor diz, no livro, ser perfeitamente concebível um filósofo não produzir uma obra sequer em sua vida. Isso de alguma forma não corrobora a ideia do filósofo como um ser superior, que não faz parte do mundo?
Não necessariamente. Sócrates, por exemplo, era considerado filósofo porque suas ideias, mesmo não tendo sido escritas, foram discutidas e divulgadas pelos seus discípulos. Tanto ele quanto Pitágoras, outro filósofo que jamais escreveu, diziam preferir colocar suas doutrinas em seres dotados de alma (os discípulos) do que em seres sem alma (os livros). No fundo, eles achavam que, desse modo, essas doutrinas fariam mais integralmente parte do mundo.
Muitos poetas, o senhor incluído, dizem que, a rigor, o poema não serve para nada. Muito já foi declamado sobre esse assunto. Não é algo radical demais?
Não. É que o poema não precisa se justificar por nenhuma utilidade ulterior a ele mesmo. Sua leitura compensa a si própria. Nesse sentido, o poema vale por si. Isso não significa nenhum formalismo. É o poema como um todo, em que forma e conteúdo, não podem ser separados um do outro, que vale por si.
O senhor se refere muito a Carlos Drummond de Andrade no seu livro. Uma predileção especial? Podemos tratá-lo como um filósofo?
Não. Drummond não foi um filósofo. Foi o nosso maior poeta. Enquanto tal, ele não foi inferior a filósofo nenhum. A poesia é diferente, mas não é inferior nem superior à filosofia. Como eu já disse, um poema é capaz de mexer com todas as nossas faculdades: e é capaz de mexer com tudo o que sabemos, inclusive com a filosofia, a história, a geografia, a mitologia, a física que conheçamos. Um poema pode, por exemplo, falar do ser, da Grécia, de vulcões, de Zeus, de “partículas elementares” ou de “buracos negros”. Mas isso não quer dizer que ele seja uma obra de filosofia, história, geografia mitologia ou física. Ele é uma obra de poesia apenas, e isso basta.
No Brasil, a média é de pouco mais de um livro lido por ano. Isso não é muito frustrante para um escritor?
Sim; principalmente considerando que, apesar disso, nenhum governo investe maciçamente na educação.
No livro, o senhor diz que "deve-se às vanguardas do século XX a desfetichização completa de todos os recursos poéticos". Poderia explicar melhor isso?
É muito simples. Certas formas poéticas haviam sido fetichizadas, isto é, enfeitiçadas, pela tradição. Como a maior parte da poesia produzida no Ocidente moderno era metrificada e rimada, por exemplo, supunha-se que a métrica e a rima fossem intrinsecamente poéticas. Elas eram, de maneira geral, tidas como necessárias e como suficientes para a produção de um poema. Viraram fetiches. Ou seja, um texto que não possuísse métrica e rima não era normalmente tomado como um poema; e um texto que as possuísse era automaticamente tomado com um poema. Ora, as vanguardas mostraram que era possível produzir poemas sem métrica, rima ou outras características fetichizadas. Com isso, desfetichizaram tais características.
O senhor lê latim e grego? Ainda são línguas essenciais para o estudo da filosofia como foi no passado?
Tenho a impressão de que nada foi mais importante, para minha formação, do que aprender grego e latim. Nada me estimulou ou ensinou mais do que o estudo dessas línguas, tanto no que diz respeito à poesia, quanto no que diz respeito à filosofia. Mas não tenho o direito de generalizar. Há inúmeros grandes poetas e inúmeros grandes filósofos que não leem nem grego nem latim.
No ano passado, Marina Lima, sua irmã, lançou Climax, o primeiro disco sem colaborações suas. O senhor se incomodou com isso, de alguma forma?
Não me incomodou propriamente porque isso é, em parte, resultado de minha própria opção por me concentrar em escrever ensaios de filosofia e poesia para ser lida. Além disso, nossa parceria era sempre resultado de muitas conversas. Normalmente, eu ia para a casa dela, onde ela me mostrava a música que estava começando a compor e eu, a partir das conversas e do clima da música, começava a esboçar uns versos. Ora, agora Marina está morando em São Paulo e eu, no Rio, de modo que isso se tornou mais complicado. Lamento essa distância, mas tenho certeza de que ainda faremos muita coisa juntos.
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17.6.12
Antonio Cicero: entrevista a Diego Viana
A seguir publico na íntegra a entrevista que concedi a Diego Viana e que foi publicada parcialmente no jornal Valor Econômico, em 11 do corrente:
Sua participação na Flip deste ano será dedicada aos 110 anos de Drummond. Gostaria de poder adiantar um pouco do que será discutido. O que há para dizer de Drummond, hoje, que vá além de tudo que já se disse?
Sempre haverá o que dizer sobre a poesia de Drummond porque Drummond escreveu vários grandes poemas. Ora, um único grande poema já é capaz de evocar tantas coisas, de aludir a tantas coisas, de admitir tantos níveis de tantas interpretações, que nada do que se disser sobre ele será capaz de esgotá-lo.
Logo nos primeiros capítulos, o sr. aponta uma característica comum da filosofia e da poesia, que as deixa, ambas, algo deslocadas hoje: a exigência de dedicação e tempo. Até que ponto a correria contemporânea pode comprometer não apenas a recepção, mas a própria atividade da poesia e da filosofia?
De fato, a temporalidade cotidiana, utilitária e instrumental dos nossos dias não favorece o cultivo nem da poesia nem da filosofia. Trata-se de uma temporalidade inteiramente submetida ao utilidade, à instrumentalidade, ao princípio do desempenho. Contudo, é a filosofia que nos permite criticar a exclusividade da vigência desse mesmo princípio, e é a poesia escrita que nos dá acesso a outro modo de apreensão do ser, a outra temporalidade, não submetida ao princípio do desempenho. É por serem empreendimentos extremos do pensamento que a poesia e a filosofia são tanto indispensáveis quanto impopulares, pelo menos hoje e no futuro previsível.
A liberdade dos poetas, conquistada a duras penas, em relação às formas (inclusive a liberdade de adotar uma forma clássica) é, não raro, criticada como esteticamente permissiva demais. Assim como ocorre com a maior parte da arte contemporânea, a poesia enfrenta um saudosismo segundo o qual “quando tudo se pode fazer, nada se faz de verdade”. Como o sr. encara essa antiga objeção à poesia e à arte contemporâneas?
Encaro-a como inaceitável, pois regressiva. As vanguardas nos ensinaram que não é possível estabelecer limites a priori para a liberdade poética. A poesia não se encontra prêt-à-porter em nenhuma forma dada. O domínio de nenhuma técnica particular garante a qualidade de um poema. Quase todos os poemas escritos em versos livres são ruins; mas também quase todos os poemas escritos em versos metrificados são ruins. É que, em matéria de poesia, só o excelente é bom. E não há regras para a produção ou a avaliação de poesia excelente. É preciso julgar caso a caso. Como já dizia Montaigne, “a poesia boa, excessiva, divina está acima das regras e da razão”.
Já em 2007, o sr. publicou um artigo em que argumentava pela manutenção da fronteira clara entre poesia e filosofia. Há quanto tempo a questão dessa fronteira o motiva? Nos cinco anos de intervalo entre o artigo e o livro, a que acréscimos sua reflexão o levou?
Quando escrevi o artigo, já pensava a maior parte das coisas que agora desenvolvo no livro. No espaço limitado de um artigo de jornal, porém, era limitado o que eu podia dizer. Por isso, quando o Evando Nascimento, que dirige o selo “Coleção Contemporânea” da Civilização Brasileira, convidou-me para escrever um volume sobre poesia e filosofia, aproveitei essa ocasião.
Para alguém que trabalha com a mesma desenvoltura na erudição da filosofia e na música popular, como se dá a relação entre o erudito e o popular? Durante décadas, foi uma relação de desconfiança mútua, não raro até de desprezo.
É verdade. No entanto, há muita coisa vulgar no terreno “erudito” e muita coisa fina no terreno “popular”. De novo, também aqui é preciso julgar caso a caso. Antigamente eu considerava que o desprezo pelo jazz que um pensador como Adorno ostentava não passasse de uma mistura de ignorância e preconceito; hoje em dia, porém, depois de ler o artigo de 1933 em que Adorno, sendo judeu e marxista, apela ao governo nazista pela proibição do jazz, considero esse “desprezo” como simplesmente patológico.
Além da vontade em borrar a fronteira entre poesia e filosofia, me parece que uma das tarefas a que se entregou a filosofia no século XX, ou, pelo menos, a filosofia chamada continental (particularmente a francesa), foi justamente derreter fronteiras em geral, entre práticas, teorias, doutrinas. Se aceitarmos essa perspectiva, poderíamos dizer que erguer-se contra a dissolução da fronteira entre poesia e filosofia se inscreve numa disputa mais ampla, erguendo-se contra a dissolução de fronteiras em geral?
Não, pois creio que algumas fronteiras eram meramente convencionais, de modo que teriam, mais cedo ou mais tarde, que ser relativizadas ou suprimidas. Refiro-me, em particular, às fronteiras entre as diferentes artes. Mas, como tento mostrar no meu livro, a fronteira entre arte e filosofia não pode ser suprimida sem prejuízo para ambas. Creio que o mesmo vale para as fronteiras entre arte e ciência, por um lado, e ciência e filosofia, por outro.
Até que ponto a motivação para questionar o vínculo entre poesia e filosofia está ligada a sua própria prática dupla, de poeta e filósofo? Pergunto isso porque poderíamos acrescentar aí uma questão, para além daquela do poema como objeto, sobre o sujeito do fazer poético e o sujeito do pensamento filosófico: como é a coabitação entre esses esforços dentro de uma mesma consciência, no caso, a sua? Ou seja: dialogam? São permeáveis um ao outro? Entram em conflito?
Costumo dizer que, em mim, quando chega o filósofo, o poeta vai embora; e que, enquanto o filósofo está presente, o poeta nem sequer aparece. Sei que isso parece um tanto esquizofrênico, mas é assim.
A mesma questão, de maneira mais direta e simples: em sua poesia, não há também filosofia e, em sua filosofia, poesia?
Em minha poesia pode estar presente tudo o que sei e tudo o que vivo, inclusive a filosofia. Contudo, o que sei de filosofia não está mais presente na minha poesia do que o que sei de história, sociologia, urbanismo, pintura, romance etc.; nem mais presente nela do que a minha memória, o meu senso de humor, a minha emoção, as minhas sensações etc. É o livre jogo das diferentes faculdades que produz o poema. Embora também na filosofia tudo possa ser levado em conta, o que nela domina é a razão. Mas o que faço questão de mostrar no livro é que são inteiramente diferentes os fatores que nos fazem dar valor a um poema, por um lado, e os que nos fazem dar valor a uma obra filosófica, por outro.
Simplifiquei a pergunta anterior para poder introduzir a questão de filósofos que escreveram poesia (não simplesmente verso) mesmo quando filosofavam: sejam Heráclito, Parmênides e Empédocles, seja Lucrécio, seja Nietzsche. Neles, o trabalho poético prejudica ou amplifica o trabalho filosófico?
Tanto os poetas quanto os filósofos são pensadores. Ocorre porém que os pensamentos destes são de natureza inteiramente diferente dos pensamentos daqueles. Digo sempre que os filósofos pensam SOBRE o mundo. É como se estivessem do lado de fora, ou acima do mundo, para pensar sobre ele. O mundo é o objeto sobre o qual eles pensam. Já os poetas pensam O mundo. Eles estão imersos no mundo que pensam. Não há nem a mediação preposicional -- ou linguística --, nem mediação nenhuma entre eles e o mundo que pensam. Eles não se diferenciam do mundo, que se lhes apresenta tanto como objeto quanto como sujeito. Quanto aos filósofos que você menciona: Heráclito, que se saiba, não escreveu propriamente poemas, mas aforismos; Parmênides e Empédocles escreveram em versos, mas como Aristóteles observava, referindo-se a eles, fazer versos não é ainda fazer poesia. Já Lucrécio, embora fosse certamente um grande poeta, não se declarava filósofo, mas apenas divulgador da obra do filósofo Epicuro. É verdade que Nietzsche escreveu alguns poemas, mas a maior e melhor parte de sua obra não é propriamente composta de poemas, mas de textos literários bastante sui generis.
Outro tema que aparece no livro e no artigo é o da intuição, na filosofia, e da inspiração, na poesia. Considerando que ambos os termos remetem à noção de um germe criativo, a desenvolver pela reflexão ou pela sensibilidade, de que maneira eles se diferenciam? Podemos dissociá-los radicalmente?
Em certo sentido sim, pois ambos provêm do acaso e do inconsciente, mas eu diria que a intuição filosófica se aproxima de uma espécie de curto-circuito conceitual ou intelectual, enquanto a inspiração do poeta envolve todas as suas faculdades.
Pierre Vidal-Nacquet e Jean-Pierre Vernant retraçam a passagem da Grécia clássica à Grécia socrática, discutindo, entre outras coisas, a evolução das formas de registro da história e do pensamento; um dos elementos dessa transformação está na gramatização da língua, com a separação das frases etc., e a transição do verso para a prosa na história, na filosofia, no teatro. Assim, a poesia poderia ser associada a uma “mentalidade trágica”, enquanto a prosa se associaria a um racionalismo então nascente. Agora, à pergunta: levando adiante essa leitura, a distinção rigorosa entre filosofia e poesia não seria a expressão desse racionalismo, o que faria da tentativa de ir além dessa distinção um esforço de superá-lo? Ou seja: definir essa fronteira comum não consiste, também, em definir as fronteiras da filosofia como um todo?
A gramatização da língua grega se deu em primeiro lugar ao serem escritos os poemas orais de Homero. Ou seja, ela se deu antes da produção de qualquer texto em prosa. Acho errado considerar a poesia lírica como expressão de uma “mentalidade trágica”. Quanto à distinção entre poesia e filosofia, ela não é, a meu ver, a expressão de nenhum racionalismo, mas sim uma expressão da atividade da própria razão. E não vejo como seria possível à razão superar a si própria.
Se um poema, como um quadro de Rembrandt, é uma obra que suscita “o livre jogo da imaginação e do entendimento”, ele não é, porém, um objeto da natureza, como a paisagem e a flor. Existe aí um ato dotado de finalidade estética, ao qual o leitor ou espectador será confrontado, ainda que de maneira exclusivamente estética; é, ao menos, um ato que se insere na realidade e a condensa no objeto da criação: o poema, o quadro. Ora, esse confronto com um objeto que penetra na realidade de maneira até então desconhecida não poderia ser um embrião ou um estopim de filosofia? O mesmo não poderia se dar no propósito de criação de um poema?
Sim. Um ramo da filosofia, a estética, reflete exatamente SOBRE a arte, a poesia, a criação. Mas seria absurdo confundir a estética filosófica com a arte, a poesia ou a criação.
8.3.09
Vanguarda e fetiche
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 7 de março:
Vanguarda e fetiche
DE MANEIRA geral, as teses vanguardistas são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, julgava inferior a poesia que falasse "de coisas já poéticas", pois acreditava que a poesia devia procurar "elevar o não-poético à categoria de poético".
Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, para começo de conversa, é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela.
Tais teses não são verdadeiras senão pela metade. No caso mencionado, são verdadeiras porquanto afirmam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, porquanto implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas.
Afinal, o que é uma coisa já poética senão uma coisa de que a poesia já falou ou de que já falou muito? E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo de que muitos outros poetas já tenham falado? Então Goethe não deveria ter escrito a sua obra-prima porque já houvera, antes dele, não sei quantos "Faustos"?
Jamais um grande poeta temeu abordar pela enésima vez um tema poético (Fausto, Ulisses, Orfeu, Narciso, a brevidade da vida, a juventude, a velhice, o sol, a noite, o amor, a saudade, a beleza etc.). Ele o aborda e é capaz de fazê-lo como se ninguém antes o tivesse feito: como se não fosse um tema poético. Só o poeta fraco quer fazer algo tão "novo" que não possa ser comparado com o que os grandes mestres do passado já fizeram. O poeta forte, longe de temer tal comparação, provoca-a.
É claro que ao que afirmar que os poetas fortes não temem tema algum, não tenho a menor intenção de insinuar que Cabral seja um poeta fraco. Cabral não temia coisa alguma: ele estava apenas, de acordo com o ethos vanguardista, proscrevendo aquilo que pensava haver superado.
Ao se opor aos temas poéticos tradicionais, Cabral estava reagindo contra preconceitos arraigados que haviam sido usados para desclassificar a sua própria produção poética. Sérgio Buarque de Hollanda relata que Domingos Carvalho da Silva, por exemplo, membro do grupo conhecido como Geração de 45, ao qual o próprio Cabral havia pertencido, "decretara que o bom verso não contém esdrúxulas (apesar de Camões), que a palavra "fruta" deve ser desterrada da poesia, em favor de "fruto", e a palavra "cachorro" igualmente abolida, em proveito de "cão'; e mais, que o oceano Pacífico (adeus Melville e Gauguin!) não é nada poético, bem ao oposto do que sucede com seu vizinho, o oceano Índico".
Ora, já na primeira estrofe de "Cão sem Plumas", João Cabral infringe dois desses tabus: "A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada".
O que ocorre é que se, antes do modernismo, determinadas formas haviam sido fetichizadas, isto é, se a elas (por exemplo, às rimas) atribuíam-se determinados poderes, o legado da vanguarda foi a desfetichização dessas formas tradicionais.
Mencionei um poeta que atribui às palavras "fruto", "cão" e "Oceano Índico" certa virtus poética da qual as palavras "fruta", "cachorro" e "Oceano Pacífico" são carentes. Ora, ao desencantar as formas encantadas, a vanguarda mostrou que na poesia ou no poético não existe prêt-à-porter à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas ou rimas ou metros ou palavras.
Inversamente, mostrou também que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Isso implica o reconhecimento de que a poesia se encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma combinação imprevisível e irreproduzível de fatores que não podem ser definidos a priori.
Mas essa descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o caminho que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena.
Esse caminho, porém, não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço.
Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia. Foi assim que Cabral proscreveu justamente os temas tradicionalmente poéticos.
Vanguarda e fetiche
DE MANEIRA geral, as teses vanguardistas são verdadeiras na medida em que abrem caminhos, e falsas na medida em que os fecham. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, julgava inferior a poesia que falasse "de coisas já poéticas", pois acreditava que a poesia devia procurar "elevar o não-poético à categoria de poético".
Essas teses se tornaram dogmas entre muitos jovens poetas. Ora, para começo de conversa, é questionável a tentativa de tomar a temática de uma obra de arte como base para pronunciar juízos estéticos sobre ela.
Tais teses não são verdadeiras senão pela metade. No caso mencionado, são verdadeiras porquanto afirmam que a poesia não precisa falar de coisas já poéticas; por outro lado, porquanto implicam proibir a poesia de falar de coisas já poéticas, são falsas.
Afinal, o que é uma coisa já poética senão uma coisa de que a poesia já falou ou de que já falou muito? E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo de que muitos outros poetas já tenham falado? Então Goethe não deveria ter escrito a sua obra-prima porque já houvera, antes dele, não sei quantos "Faustos"?
Jamais um grande poeta temeu abordar pela enésima vez um tema poético (Fausto, Ulisses, Orfeu, Narciso, a brevidade da vida, a juventude, a velhice, o sol, a noite, o amor, a saudade, a beleza etc.). Ele o aborda e é capaz de fazê-lo como se ninguém antes o tivesse feito: como se não fosse um tema poético. Só o poeta fraco quer fazer algo tão "novo" que não possa ser comparado com o que os grandes mestres do passado já fizeram. O poeta forte, longe de temer tal comparação, provoca-a.
É claro que ao que afirmar que os poetas fortes não temem tema algum, não tenho a menor intenção de insinuar que Cabral seja um poeta fraco. Cabral não temia coisa alguma: ele estava apenas, de acordo com o ethos vanguardista, proscrevendo aquilo que pensava haver superado.
Ao se opor aos temas poéticos tradicionais, Cabral estava reagindo contra preconceitos arraigados que haviam sido usados para desclassificar a sua própria produção poética. Sérgio Buarque de Hollanda relata que Domingos Carvalho da Silva, por exemplo, membro do grupo conhecido como Geração de 45, ao qual o próprio Cabral havia pertencido, "decretara que o bom verso não contém esdrúxulas (apesar de Camões), que a palavra "fruta" deve ser desterrada da poesia, em favor de "fruto", e a palavra "cachorro" igualmente abolida, em proveito de "cão'; e mais, que o oceano Pacífico (adeus Melville e Gauguin!) não é nada poético, bem ao oposto do que sucede com seu vizinho, o oceano Índico".
Ora, já na primeira estrofe de "Cão sem Plumas", João Cabral infringe dois desses tabus: "A cidade é passada pelo rio / como uma rua / é passada por um cachorro; / uma fruta / por uma espada".
O que ocorre é que se, antes do modernismo, determinadas formas haviam sido fetichizadas, isto é, se a elas (por exemplo, às rimas) atribuíam-se determinados poderes, o legado da vanguarda foi a desfetichização dessas formas tradicionais.
Mencionei um poeta que atribui às palavras "fruto", "cão" e "Oceano Índico" certa virtus poética da qual as palavras "fruta", "cachorro" e "Oceano Pacífico" são carentes. Ora, ao desencantar as formas encantadas, a vanguarda mostrou que na poesia ou no poético não existe prêt-à-porter à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas ou rimas ou metros ou palavras.
Inversamente, mostrou também que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada. Isso implica o reconhecimento de que a poesia se encontra somente em obras singulares, onde é o produto de uma combinação imprevisível e irreproduzível de fatores que não podem ser definidos a priori.
Mas essa descoberta é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o caminho que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena.
Esse caminho, porém, não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar as formas tradicionais, a vanguarda as manteve fetichizadas, porém inverteu o valor desse feitiço.
Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas formas admissíveis na poesia, a vanguarda passou a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis na poesia. Foi assim que Cabral proscreveu justamente os temas tradicionalmente poéticos.
30.1.09
Entrevista a Adriano Nunes
No dia 12 do corrente dei a seguinte entrevista para o Adriano Nunes, que a publicou no seu belo blog (Quefaçocomoquenãofaço):
ADRIANO NUNES: Como se deu seu interesse pela Poesia?
ANTONIO CICERO: Quando garoto, no ginásio, ao ler I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, na antologia escolar. Depois, quando fui com minha família morar nos Estados Unidos, ao ler, no “high school”, os poetas românticos ingleses, Walt Whitman e Emily Dickinson.
ADRIANO NUNES: Em que período da sua vida você sentiu/descobriu que era poeta? Esta descoberta não perturbou o seu "eu" filosófico já que a Filosofia é uma das suas paixões?
ANTONIO CICERO: Por essa época eu comecei a escrever textos que considerava poemas. Mas a poesia não é uma profissão. Ninguém vive de poesia, de modo que, quando eu pensava no que queria ser quando me tornasse adulto, jamais me passava pela cabeça ser poeta. Entretanto, eu escrevia esses textos que considerava poemas, de modo que talvez, se pensasse no assunto, me considerasse poeta: mas eu não pensava no assunto. Ser poeta era, nesse sentido, uma coisa que fazia parte de mim, como ter cabelos pretos. Mas demorou muito para que eu me definisse como poeta. Na verdade, isso só ocorreu depois que diferentes pessoas começaram a pensar em mim como poeta.
Muito cedo li Tolstoi, Dostoievski, Thomas Mann, Machado de Assis etc., de modo que o que eu queria mesmo ser era um romancista, ou melhor, ser um grande romancista, pois era muito ambicioso. Depois, quando comecei a ler filosofia, pensei em ser um filósofo, embora jamais – nem mesmo hoje, nem mesmo depois que algumas outras passaram a me chamar de “filósofo” – ousei me dizer tal. É que basta que uma pessoa escreva poemas – mesmo que não sejam bons – para que, de certo modo, eu ache certo chamá-la de poeta, mas não basta que uma pessoa escreva livros de filosofia ou dê aula de filosofia para que eu a considere um filósofo. Só considero filósofo aquele cujo pensamento conceitual seja capaz de me obrigar a aguçar ou a tornar mais profundo ou mais preciso ou mais sutil o meu próprio pensamento conceitual. Assim, para mim, “filósofo” é um título honorífico, que só pode ser atribuído por outros filósofos.
ADRIANO NUNES: Atualmente, a Poesia ou a Filosofia lhe dá mais alegria?
ANTONIO CICERO: A poesia, que é aberta ao princípio do prazer. A filosofia, por outro lado, obedece ao princípio do desempenho.
ADRIANO NUNES: Ter blog, escrever canções, fazer poemas, filosofar... como você utiliza o seu tempo no dia-a-dia para conciliar suas atividades artísticas?
ANTONIO CICERO: No momento, está muito complicada essa conciliação. Ando muito sem tempo, o que está me angustiando.
ADRIANO NUNES: Quais poetas diretamente e indiretamente influenciaram suas obras?
ANTONIO CICERO: Não é fácil saber o que foi que realmente nos influenciou. Tudo aquilo de que realmente gostei me influenciou. Entre os poetas de que mais gosto estão Homero, Horácio, Baudelaire, Goethe, Hölderlin, Rilke, Yeats, T.S. Eliot, Pessoa, Drummond.
ADRIANO NUNES: Vêem-se claramente em seus poemas temas mitológicos. Você consegue transpor tais temas para o cotidiano e o leitor se identifica com as imagens ali projetadas. Seria influência mesmo dos clássicos gregos ou fascínio pela Mitologia?
ANTONIO CICERO: O que chamamos de “mitologia” são histórias contadas nas obras dos grandes poetas gregos: Homero, Hesíodo, Píndaro, Sófocles etc. Essas obras, como todas as obras canônicas, fazem parte importante do patrimônio cultural dos poetas – e dos leitores de poesia – modernos. Elas fazem parte do vocabulário da nossa imaginação. Eu as uso mais ou menos como uso as palavras da língua. Elas são minhas, fazem parte do meu ser.
ADRIANO NUNES: Quando se discute Vanguarda no Brasil, o seu nome é frequentemente citado. O seu livro Finalidades Sem Fim trata deste assunto com clareza e requinte. Não há mais Vanguarda? Não é possível mais haver movimentos vanguardistas?
ANTONIO CICERO: A vanguarda é o que vai à frente, para mostrar o caminho para todos os demais. Só se pode falar do caminho quando se trata de um só caminho para todos. Ora, o único caminho que todos devem seguir é o de compreender que não há um só, que não há um único caminho, que há uma infinidade de caminhos possíveis: que cada um tem o direito de seguir o seu próprio caminho. Querendo ou não querendo, foi esse o caminho que a vanguarda apontou. Depois disso não há mais necessidade de vanguarda. Não é mais necessário mostrar que há uma infinidade de caminhos, porque isso já foi feito; e se, ao contrário, alguém quiser voltar a um único caminho, ou um único conjunto de caminhos, essa pessoa estará, na verdade, voltando atrás, e não sendo vanguardista. A pretensão de ser vanguardista hoje é, portanto, algo reacionário. É claro que todo tipo de experimentação é e sempre será possível, mas seria errado chamá-la de “vanguarda”.
ADRIANO NUNES: Na apresentação do seu livro de poemas A Cidade e o Livros, José Miguel Wisnik diz:"Um livro espantosamente belo, e ainda capaz - homoeróticas - das mais límpidas declarações de amor que temos visto." Há preconceito na Poesia? Por que "ainda capaz" soa como se não fosse possível?
ANTONIO CICERO: Não considero preconceituosa a declaração do Wisnik. Eu a parafrasearia do seguinte modo: “um livro que, além de espantosamente belo, é capaz das mais límpidas declarações de amor – por acaso homoeróticas – que temos visto”.
ADRIANO NUNES: Você sempre procura alertar para que todo poema seja bem trabalhado. O que é ser bem trabalhado?
ANTONIO CICERO: Um poema é bem trabalhado quando o poeta não confia apenas na sua primeira intuição e não se contenta rapidamente com a primeira manifestação dele, mas dá chance a que essa primeira manifestação se desenvolva maximamente, empregando ao mais alto grau todas as faculdades de que ele (o poeta) for dotado.
ADRIANO NUNES: Em muitas antologias poéticas contemporâneas, o seu poema Guardar está presente e muitos críticos/poetas/artistas consideram esse poema um dos mais belos da Poesia Brasileira. Como se deu o processo de criação desse poema?
ANTONIO CICERO: Não sei explicar. Ele parece ter-se desdobrado por conta própria.
ADRIANO NUNES: Você esperava vencer o Prêmio Nestlé de Literatura?
ANTONIO CICERO: Não esperava, mas é claro que queria ganhá-lo.
ADRIANO NUNES: As letras de suas canções tratam de variados assuntos, mais e intensamente de amor e paixão e ao mesmo tempo de amores em que o amante/amado encontram-se como se afastados do amor e da felicidade, numa luta de egos e de fugas/entregas/medos...como se tivessem que aprender a amar. Por quê?
ANTONIO CICERO: É outra coisa que não sei explicar. Elas vêm assim.
ADRIANO NUNES: O seu blog Acontecimentos é muito visitado. Como consegue manter atualizadas suas postagens e ainda responder aos comentários dos leitores? É gratificante essa troca de informações pela Internet?
ANTONIO CICERO: Ponho no blog as coisas de que gosto muito. Sempre fui muito organizado nas minhas leituras. Desde estudante universitário, tomo notas, acompanhadas de observações minhas, de quase tudo o que leio. Mas, no blog, não tenho tido tempo de fazer tantos comentários quanto antigamente. De todo modo, quando o faço, não só os leitores me ensinam muitas coisas mas, quando tento lhes explicar o que penso, explico-o também para mim mesmo.
ADRIANO NUNES: Quais poetas em atividade você pode citar como bons, que estão produzindo poemas belos, que estão em busca de Poesia de Qualidade, se é que tal termo possa ser aplicado.
ANTONIO CICERO: Acho que tal termo pode ser aplicado. Há vários poetas bons em atividade. É sempre ruim citar porque a gente não pode citar todo o mundo e sempre esquece de alguém que não podia ter deixado de citar. Além dos já clássicos Ferreira Gullar, Augusto de Campos e Décio Pignatari, que continuam produzindo, há, por exemplo, em ordem alfabética, Arnaldo Antunes, Eucanaã Ferraz, Nelson Ascher e Paulo Henrique Brito. Dos novíssimos, Omar Salomão é muito bom.
ADRIANO NUNES: O que faz um poema ser considerado belo?
ANTONIO CICERO: Não há regra geral para isso. Isso não quer dizer que valha tudo. É que são muitos os elementos que entram em jogo na apreciação de um poema. Entretanto, a verdade é que, com o tempo, embora qualquer um, de qualquer origem, possa se manifestar, e embora muitíssimos efetivamente se manifestem, tende a haver consenso em torno de determinadas obras.
ADRIANO NUNES: Os poetas virtuais estão aí publicando poemas em blog/sites, já que há certa dificuldade/custo com editoras para que um livro seja publicado. O que seria preciso para que as Editoras publicassem mais livros de poemas? Nas livrarias, o espaço reservado para a área "POESIA" é sempre menor em comparação com outras áreas. Poesia não dá dinheiro?
ANTONIO CICERO: Não, poesia não dá dinheiro. Leminski dizia que isso é uma das grandes vantagens da poesia sobre as outras artes, pois significa que ninguém faz poesia por dinheiro. Observo que isso não é de hoje. Sempre foi assim, desde que surgiu a poesia escrita. E antigamente era pior, pois não havia Internet. Além disso, é muito mais barato publicar um livro hoje do que há poucos anos atrás.
ADRIANO NUNES: Quais seus próximos projetos literários?
ANTONIO CICERO: Um livro de poemas.
ADRIANO NUNES: Que há de "novo" e bom no gigantesco mundo das Artes?
ANTONIO CICERO: O reconhecimento internacional da importância das artes plásticas brasileiras. O caminho foi aberto pelas exposições de Hélio Oiticica na Europa e nos Estados Unidos. No momento, Cildo Meireles está tendo uma grande exposição na Tate Modern, em Londres.
ADRIANO NUNES: Há algum poeta nesse mundo virtual de blog/sites que você considera como bom e promissor?
ANTONIO CICERO: Sim: você, por exemplo.
ADRIANO NUNES: Qual o poder e o peso de um poema?
ANTONIO CICERO: A leitura cuidadosa de um grande poema é capaz de fazer o leitor dizer a si próprio, como Rilke, ao contemplar o torso arcaico de Apolo: “Tens que mudar tua vida”.
ADRIANO NUNES: Como se deu seu interesse pela Poesia?
ANTONIO CICERO: Quando garoto, no ginásio, ao ler I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, na antologia escolar. Depois, quando fui com minha família morar nos Estados Unidos, ao ler, no “high school”, os poetas românticos ingleses, Walt Whitman e Emily Dickinson.
ADRIANO NUNES: Em que período da sua vida você sentiu/descobriu que era poeta? Esta descoberta não perturbou o seu "eu" filosófico já que a Filosofia é uma das suas paixões?
ANTONIO CICERO: Por essa época eu comecei a escrever textos que considerava poemas. Mas a poesia não é uma profissão. Ninguém vive de poesia, de modo que, quando eu pensava no que queria ser quando me tornasse adulto, jamais me passava pela cabeça ser poeta. Entretanto, eu escrevia esses textos que considerava poemas, de modo que talvez, se pensasse no assunto, me considerasse poeta: mas eu não pensava no assunto. Ser poeta era, nesse sentido, uma coisa que fazia parte de mim, como ter cabelos pretos. Mas demorou muito para que eu me definisse como poeta. Na verdade, isso só ocorreu depois que diferentes pessoas começaram a pensar em mim como poeta.
Muito cedo li Tolstoi, Dostoievski, Thomas Mann, Machado de Assis etc., de modo que o que eu queria mesmo ser era um romancista, ou melhor, ser um grande romancista, pois era muito ambicioso. Depois, quando comecei a ler filosofia, pensei em ser um filósofo, embora jamais – nem mesmo hoje, nem mesmo depois que algumas outras passaram a me chamar de “filósofo” – ousei me dizer tal. É que basta que uma pessoa escreva poemas – mesmo que não sejam bons – para que, de certo modo, eu ache certo chamá-la de poeta, mas não basta que uma pessoa escreva livros de filosofia ou dê aula de filosofia para que eu a considere um filósofo. Só considero filósofo aquele cujo pensamento conceitual seja capaz de me obrigar a aguçar ou a tornar mais profundo ou mais preciso ou mais sutil o meu próprio pensamento conceitual. Assim, para mim, “filósofo” é um título honorífico, que só pode ser atribuído por outros filósofos.
ADRIANO NUNES: Atualmente, a Poesia ou a Filosofia lhe dá mais alegria?
ANTONIO CICERO: A poesia, que é aberta ao princípio do prazer. A filosofia, por outro lado, obedece ao princípio do desempenho.
ADRIANO NUNES: Ter blog, escrever canções, fazer poemas, filosofar... como você utiliza o seu tempo no dia-a-dia para conciliar suas atividades artísticas?
ANTONIO CICERO: No momento, está muito complicada essa conciliação. Ando muito sem tempo, o que está me angustiando.
ADRIANO NUNES: Quais poetas diretamente e indiretamente influenciaram suas obras?
ANTONIO CICERO: Não é fácil saber o que foi que realmente nos influenciou. Tudo aquilo de que realmente gostei me influenciou. Entre os poetas de que mais gosto estão Homero, Horácio, Baudelaire, Goethe, Hölderlin, Rilke, Yeats, T.S. Eliot, Pessoa, Drummond.
ADRIANO NUNES: Vêem-se claramente em seus poemas temas mitológicos. Você consegue transpor tais temas para o cotidiano e o leitor se identifica com as imagens ali projetadas. Seria influência mesmo dos clássicos gregos ou fascínio pela Mitologia?
ANTONIO CICERO: O que chamamos de “mitologia” são histórias contadas nas obras dos grandes poetas gregos: Homero, Hesíodo, Píndaro, Sófocles etc. Essas obras, como todas as obras canônicas, fazem parte importante do patrimônio cultural dos poetas – e dos leitores de poesia – modernos. Elas fazem parte do vocabulário da nossa imaginação. Eu as uso mais ou menos como uso as palavras da língua. Elas são minhas, fazem parte do meu ser.
ADRIANO NUNES: Quando se discute Vanguarda no Brasil, o seu nome é frequentemente citado. O seu livro Finalidades Sem Fim trata deste assunto com clareza e requinte. Não há mais Vanguarda? Não é possível mais haver movimentos vanguardistas?
ANTONIO CICERO: A vanguarda é o que vai à frente, para mostrar o caminho para todos os demais. Só se pode falar do caminho quando se trata de um só caminho para todos. Ora, o único caminho que todos devem seguir é o de compreender que não há um só, que não há um único caminho, que há uma infinidade de caminhos possíveis: que cada um tem o direito de seguir o seu próprio caminho. Querendo ou não querendo, foi esse o caminho que a vanguarda apontou. Depois disso não há mais necessidade de vanguarda. Não é mais necessário mostrar que há uma infinidade de caminhos, porque isso já foi feito; e se, ao contrário, alguém quiser voltar a um único caminho, ou um único conjunto de caminhos, essa pessoa estará, na verdade, voltando atrás, e não sendo vanguardista. A pretensão de ser vanguardista hoje é, portanto, algo reacionário. É claro que todo tipo de experimentação é e sempre será possível, mas seria errado chamá-la de “vanguarda”.
ADRIANO NUNES: Na apresentação do seu livro de poemas A Cidade e o Livros, José Miguel Wisnik diz:"Um livro espantosamente belo, e ainda capaz - homoeróticas - das mais límpidas declarações de amor que temos visto." Há preconceito na Poesia? Por que "ainda capaz" soa como se não fosse possível?
ANTONIO CICERO: Não considero preconceituosa a declaração do Wisnik. Eu a parafrasearia do seguinte modo: “um livro que, além de espantosamente belo, é capaz das mais límpidas declarações de amor – por acaso homoeróticas – que temos visto”.
ADRIANO NUNES: Você sempre procura alertar para que todo poema seja bem trabalhado. O que é ser bem trabalhado?
ANTONIO CICERO: Um poema é bem trabalhado quando o poeta não confia apenas na sua primeira intuição e não se contenta rapidamente com a primeira manifestação dele, mas dá chance a que essa primeira manifestação se desenvolva maximamente, empregando ao mais alto grau todas as faculdades de que ele (o poeta) for dotado.
ADRIANO NUNES: Em muitas antologias poéticas contemporâneas, o seu poema Guardar está presente e muitos críticos/poetas/artistas consideram esse poema um dos mais belos da Poesia Brasileira. Como se deu o processo de criação desse poema?
ANTONIO CICERO: Não sei explicar. Ele parece ter-se desdobrado por conta própria.
ADRIANO NUNES: Você esperava vencer o Prêmio Nestlé de Literatura?
ANTONIO CICERO: Não esperava, mas é claro que queria ganhá-lo.
ADRIANO NUNES: As letras de suas canções tratam de variados assuntos, mais e intensamente de amor e paixão e ao mesmo tempo de amores em que o amante/amado encontram-se como se afastados do amor e da felicidade, numa luta de egos e de fugas/entregas/medos...como se tivessem que aprender a amar. Por quê?
ANTONIO CICERO: É outra coisa que não sei explicar. Elas vêm assim.
ADRIANO NUNES: O seu blog Acontecimentos é muito visitado. Como consegue manter atualizadas suas postagens e ainda responder aos comentários dos leitores? É gratificante essa troca de informações pela Internet?
ANTONIO CICERO: Ponho no blog as coisas de que gosto muito. Sempre fui muito organizado nas minhas leituras. Desde estudante universitário, tomo notas, acompanhadas de observações minhas, de quase tudo o que leio. Mas, no blog, não tenho tido tempo de fazer tantos comentários quanto antigamente. De todo modo, quando o faço, não só os leitores me ensinam muitas coisas mas, quando tento lhes explicar o que penso, explico-o também para mim mesmo.
ADRIANO NUNES: Quais poetas em atividade você pode citar como bons, que estão produzindo poemas belos, que estão em busca de Poesia de Qualidade, se é que tal termo possa ser aplicado.
ANTONIO CICERO: Acho que tal termo pode ser aplicado. Há vários poetas bons em atividade. É sempre ruim citar porque a gente não pode citar todo o mundo e sempre esquece de alguém que não podia ter deixado de citar. Além dos já clássicos Ferreira Gullar, Augusto de Campos e Décio Pignatari, que continuam produzindo, há, por exemplo, em ordem alfabética, Arnaldo Antunes, Eucanaã Ferraz, Nelson Ascher e Paulo Henrique Brito. Dos novíssimos, Omar Salomão é muito bom.
ADRIANO NUNES: O que faz um poema ser considerado belo?
ANTONIO CICERO: Não há regra geral para isso. Isso não quer dizer que valha tudo. É que são muitos os elementos que entram em jogo na apreciação de um poema. Entretanto, a verdade é que, com o tempo, embora qualquer um, de qualquer origem, possa se manifestar, e embora muitíssimos efetivamente se manifestem, tende a haver consenso em torno de determinadas obras.
ADRIANO NUNES: Os poetas virtuais estão aí publicando poemas em blog/sites, já que há certa dificuldade/custo com editoras para que um livro seja publicado. O que seria preciso para que as Editoras publicassem mais livros de poemas? Nas livrarias, o espaço reservado para a área "POESIA" é sempre menor em comparação com outras áreas. Poesia não dá dinheiro?
ANTONIO CICERO: Não, poesia não dá dinheiro. Leminski dizia que isso é uma das grandes vantagens da poesia sobre as outras artes, pois significa que ninguém faz poesia por dinheiro. Observo que isso não é de hoje. Sempre foi assim, desde que surgiu a poesia escrita. E antigamente era pior, pois não havia Internet. Além disso, é muito mais barato publicar um livro hoje do que há poucos anos atrás.
ADRIANO NUNES: Quais seus próximos projetos literários?
ANTONIO CICERO: Um livro de poemas.
ADRIANO NUNES: Que há de "novo" e bom no gigantesco mundo das Artes?
ANTONIO CICERO: O reconhecimento internacional da importância das artes plásticas brasileiras. O caminho foi aberto pelas exposições de Hélio Oiticica na Europa e nos Estados Unidos. No momento, Cildo Meireles está tendo uma grande exposição na Tate Modern, em Londres.
ADRIANO NUNES: Há algum poeta nesse mundo virtual de blog/sites que você considera como bom e promissor?
ANTONIO CICERO: Sim: você, por exemplo.
ADRIANO NUNES: Qual o poder e o peso de um poema?
ANTONIO CICERO: A leitura cuidadosa de um grande poema é capaz de fazer o leitor dizer a si próprio, como Rilke, ao contemplar o torso arcaico de Apolo: “Tens que mudar tua vida”.
1.10.08
Entrevista à revista "Filosofia (da série "Ciência & Vida")
Em maio deste ano dei a seguinte entrevista a Mônica Serrano, da revista "Filosofia", da série "Ciência & Vida":
Feito de opostos
De que bases de linguagem / pensamento parte a relação filosofia/ poesia?
A filosofia e a poesia são dois empreendimentos extremos – e opostos – do espírito humano.
O discurso filosófico, na medida em que é filosófico, é proposicional. Isso quer dizer que ele afirma determinadas coisas e, ao fazê-lo, nega o oposto dessas coisas. Assim, os empiristas, por exemplo, afirmam que todo conhecimento provém da experiência. Já os racionalistas afirmam que nem todo conhecimento provém da experiência, pois, segundo eles, há coisas que podemos conhecer a priori. Ora, a afirmação dos empiristas contradiz – logo, nega – a dos racionalistas e vice-versa. Quando nos interessamos pelo conteúdo filosófico de determinado discurso, queremos saber o que é que ele afirma e o que é que ele nega, e queremos saber se o que ele afirma é, de fato, verdadeiro, e se o que ele nega é, de fato, falso.
Já o discurso poético, na medida em que é poético, não é proposicional, isto é, não afirma nem nega coisa alguma. Assim, o poema mais famoso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz: “Tinha uma pedra no meio do caminho”. À primeira vista, trata-se de uma proposição que afirma determinada coisa: que afirma, isto é, que tinha uma pedra no meio do caminho. Na verdade, trata-se de uma pseudoproposição. Por que? Em primeiro lugar, porque não se pode saber exatamente o que é que essa pretensa proposição afirma e, consequentemente, não se pode saber se o que ela pretensamente afirma é verdadeiro ou falso. Tinha uma pedra no meio de que caminho? Quando? Em segundo lugar porque, de todo modo, ainda que fosse verdadeira ou falsa, sua verdade ou falsidade não teria a menor importância para a apreciação do poema. Que pensaríamos de alguém nos dissesse, por exemplo, que esse poema de Drummond é ruim porque, na verdade, não tinha pedra nenhuma no caminho? Acharíamos que tal pessoa fosse burra ou louca; ou, pelo menos, acharíamos que ela não soubesse o que é um poema. Em terceiro lugar, digamos que alguém escreva um poema dizendo o oposto do que esse diz, isto é: “Não tinha pedra alguma no meio do caminho”. Ainda que se trate de um bom poema, não acharemos que ele desminta o poema do Drummond. É que podemos apreciar igualmente um poema que, aparentemente, afirme X (seja lá o que for X) e um poema que, aparentemente, afirme não-X. E isso significa que, na verdade, nem um nem o outro afirma coisa alguma: nem um nem outro é proposicional.
Qual a importância dessa relação nas suas composições para Marina?
O que acabo de dizer significa, para mim, que o estado de espírito em que entro para pensar filosoficamente é inteiramente diferente do estado de espírito em que entro para escrever poesia. E considero letra de música algo da ordem da poesia. Quando escrevo poesia ou letra de música, uso tudo o que sei, todas as minhas potências: minha intuição, minha razão, meu intelecto, minha emoção, minha experiência, minha sensibilidade, meu senso de humor, minha cultura etc. Naturalmente, uso também o que sei de filosofia. Mas, nesse ponto, a filosofia não é mais importante do que as outras coisas que uso. Ela é apenas uma das coisas que fazem parte da minha vida.
Você continua com a atividade de letrista de música?
Sim. No último disco da Marina há algumas letras minhas. Uma delas, aliás, chamada “Três”, foi regravada tanto pela Adriana Calcanhotto quanto pela Ana Carolina.
Como você se descobriu letrista e qual a importância disso em sua vida?
Tornei-me letrista por acaso, graças à minha irmã, Marina. Ela é dez anos mais jovem do que eu e desde cedo começou a estudar violão. A certa altura, começou a compor músicas e, um belo dia, subtraiu um poema meu de uma gaveta e o musicou. Primeiro fiquei zangando com o fato de ela ter mexido nas minhas anotações, mas acabei gostando do resultado disso, isto é, da canção. A partir daí, mudamos o processo de composição. Como morávamos ambos na casa de nossos pais, passamos a compor em conjunto. Quando ela começava a bolar uma melodia, eu começava a escrever palavras que coubessem nessa melodia. A partir das primeiras frases, a música ia tomando forma, ela fazia mais um pedaço de música, eu fazia mais uns versos etc., até que a canção ficasse pronta. A música inspirava a letra, e a letra inspirava a música. Depois, quando cada qual foi morar na sua casa, passei a receber as melodias numa fita ou, de uns anos para cá, num cd, e a escrever os versos para preencher essas melodias, embora haja sempre momentos em que nos encontramos para conversar sobre o que está sendo feito.
Para mim, foi muito grande a importância de fazer letras de música, principalmente por duas razões. A primeira é que, embora eu escreva poemas desde adolescente, demorei a publicá-los. Primeiro, isso se deveu à timidez. Segundo, aconteceu de eu morar na Inglaterra, onde estudei filosofia, na mesma época em que estavam lá exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso, com os quais fiz amizade. Nessa época, nem me ocorria escrever letra de música. Mas acontece que, na casa de Caetano e Gil, conheci também o poeta Haroldo de Campos e li as obras poéticas e teóricas dele, de seu irmão Augusto, e de Décio Pignattari. Tudo isso teve uma importância enorme na evolução da minha relação com a poesia. O que ocorre é que fiquei entusiasmado com o brilhantismo das teses concretistas. Excitou-me também o fato de que teses tão brilhantes e originais estivessem sendo elaboradas por brasileiros, pois o nosso país, em matéria de pensamento teórico, é notoriamente tímido. No entanto, a verdade é que, no que diz respeito à poesia, o que eu gostava realmente de ler e de escrever não eram (fora algumas exceções) poemas concretos, mas poemas discursivos, escritos em versos. Ademais, enquanto os concretistas valorizavam sobretudo a visualidade do poema, o importante para mim era a sua musicalidade. Produziu-se então o que chamo de conflito entre o meu intelecto e a minha sensibilidade. Fiquei inseguro em relação aos meus poemas. O efeito mais notável disso foi que, mesmo depois que voltei ao Brasil, demorei muito tempo para publicar o meu primeiro livro de poemas. O que me libertou dessa inibição foi justamente o fato de fazer letras de música que foram cantadas, gravadas, publicadas. Além disso, as restrições concretistas aos poemas em formas tradicionais não se aplicavam às canções: ao contrário, o próprio Augusto escrevera o seu admirável “Balanço da bossa” valorizando a música popular e os seus letristas. Só anos depois, quando eu já tinha elaborado um pensamento estético independente do concretismo (e que se encontra em parte exposto no meu livro “Finalidades sem fim”), comecei a publicar livros de poemas. Penso portanto sobre a relação entre música e poesia a partir dessas experiências e de minhas reflexões teóricas.
A segunda razão pela qual a atividade de letrista foi importante para mim é que ela me proporcionou a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, coisa que teria sido impensável se eu escrevesse apenas poemas para serem lidos.
Dê-nos um exemplo de poesia clássica ou de letras tuas em que a relação poesia / espanto filosófico fica explícita.
Como eu disse, acho filosofia e poesia dois empreendimentos igualmente extremos – mas opostos – do espírito humano. Eu mesmo ora sou aprendiz de poeta, ora aprendiz de filósofo, nunca os dois ao mesmo tempo. A coisa se dá assim: o poeta vai embora quando o filósofo aparece; e quando o filósofo está presente, o poeta não aparece. Concordo, portanto, com Goethe, Guimarães Rosa e João Cabral, entre outros que dizem que a filosofia atrapalha a poesia. Nietzsche, que quis ser poeta e filósofo ao mesmo tempo, enlouqueceu, e não se sabe o que veio antes: a tentativa de ser as duas coisas ao mesmo tempo ou a loucura. Toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento é filosofia. Nietzsche é um grande pensador e está na moda, mas a verdade é que, ao contrário do que Deleuze afirmou, o pensamento dele não é nem sistemático, nem consistente, para que ele possa ser considerado um grande filósofo. Embora tenha grandes intuições, Nietzsche freqüentemente se contradiz, pois é um híbrido de poeta e filósofo.
Há como fazer uso da filosofia para criticar poesia ou qualquer tipo de arte? Vemos que em Finalidades sem fim você toca de alguma maneira neste assunto.
Sim , porque a estética faz parte da filosofia, e é possível desenvolver uma teoria da arte a partir de categorias estéticas. É Algumas obras filosóficas, como, por exemplo, a “Crítica do juízo”, de Kant, proporcionam instrumentos conceituais para se pensar a especificidade da obra de arte. O título do meu livro mesmo, “Finalidades sem fim”, vem do conceito de finalidade sem fim, que designa, para Kant, o fato de que o objeto belo tem a forma da finalidade – achamos que ele é o que devia ser – e, no entanto, não tem fim determinado, pois não nos é possível determinar o que é que ele devia ser. Outros conceitos estéticos de Kant são, por exemplo, o de desinteresse, o de universalidade sem conceito etc.
E como analisar movimentos artísticos a partir da filosofia?
Em “Finalidades sem fim” emprego categorias filosóficas para falar da arte de vanguarda, da poesia de Waly Salomão, do Tropicalismo, de Drummond, de Homero etc.
A questão da vanguarda, por exemplo, tem a ver com a questão da autonomia da arte, e esta, por sua vez, depende da autonomia do estético, que foi objeto da “Crítica do Juízo”, de Kant. A vanguarda histórica combateu a arte enquanto instituição, isto é, combateu a autonomia da arte, concebendo-a como um modo de esterilizar ou domesticar a arte. Isso, na verdade, deveu-se a uma compreensão demasiadamente estreita do estético. Nesse ponto, a meu ver, ela estava errada. Ora, essa discussão, que não cabe detalhar aqui, já é filosófica. O equívoco da vanguarda histórica, entretanto, não teve conseqüências puramente negativas. Ao contrário: como mostro em “Finalidades sem fim”, no próprio processo de combater a instituição da arte, ao romper as categorias, os gêneros e as formas artísticas tradicionais, a vanguarda histórica ajudou, na prática, a revelar o caráter convencional de tais categorias, gêneros e formas. Isso foi um feito extraordinário, que transformou definitivamente a concepção moderna de arte.
Por falar em vanguarda, como vc vê a vanguarda nas artes plásticas? A impressão que se tem é que a transgressão que marcou a arte contemporânea ficou presa no tempo enquanto que outros tipos de arte como a música abriram espaço para diferentes vertestes, permitindo diferentes expressões. Já as artes plásticas continuam na transgressão e não aceitam nada que fique fora desse contexto. Isso não é contraditório?
Penso que não há mais vanguarda em arte nenhuma. “Vanguarda”, de “avant-garde”, quer dizer o destacamento que vai à frente, abrindo caminho para o grosso do exército. De vanguarda foram portanto os artistas que abriram caminhos previamente fechados. Por exemplo, os primeiros músicos a fazer música atonal, os primeiros pintores a fazer pintura abstrata ou concreta etc. Abrir um caminho significa relativizar todos os caminhos que já estavam abertos. Essa relativização afeta todos os demais artistas, isto é, afeta o “grosso do exército”. Hoje, porém, não há mais caminhos interditados: logo, não há mais vanguarda. Ao mesmo tempo, os caminhos que já haviam sido abertos por gerações passadas continuam abertos. Houve uma época em que a vanguarda, ao mesmo tempo em que abria novos caminhos, queria fechar os antigos. Isso não vingou.
Assim, mesmo nas artes plásticas, não tenho a impressão de que a ideologia vanguardista da transgressão seja tão dominante quanto você sugere. Aqui mesmo no Brasil não se pode negar a importância de pintores como Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Luciano Figueiredo, Ronaldo Rego Macedo, Artur Barrio etc.
Em seu livro Finalidades sem fim você afirma que a vanguarda cumpriu o seu papel e abriu novas possibilidades artísticas. Atualmente, o que há de novo na música/poesia/artes plásticas?
Em música, há o belíssimo disco da Adriana Calcanhotto, “Maré”; em poesia, o livro de Eucanaã Ferraz, “Cinemateca”; e em artes plásticas, a exposição de Luciano Figueiredo, “Tercetos”. Não são obras de vanguarda porque, como eu já disse, não há mais vanguarda. São simplesmente obras belíssimas, que acabam de sair, de três artistas que se encontram no que parece ser o acme, como diziam os gregos, no que parece ser o auge da sua maturidade artística.
Qual sua opinião sobre a filosofia ser matéria no ensino médio? Poderia opinar sobre a contribuição da cultura filosófica na educação?
Sou totalmente favorável. Por ser um pensamento crítico e radical, ilimitado, e questionar todos os pressupostos, a filosofia é capaz de funcionar como instrumento para aqueles que desejem pensar autonomamente.
Você acha que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na poesia?
Não. Por que o faria, se, como eu disse antes, filosofar é inteiramente diferente de fazer poesia? Como o faria, se a filosofia é pensamento abstrato e a poesia, concreto, de modo que, quando alguém filosofa, não faz poesia e, quando faz poesia, não filosofa? Penso que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na própria filosofia. A apreciação de poesia deve ser ensinada em outros cursos, de cursos de poesia mesmo ou de literatura, jamais no curso de filosofia.
Platão já considerava antiga a rixa entre a poesia e a filosofia. Foram Heidegger e a filosofia pós-estruturalista – que, na verdade, devia se chamar “filosofia neo-heideggeriana”, pois foi e é fortemente influenciada por Heidegger – que tentaram reconciliá-las. Mas é uma iniciativa destinada ao fracasso, pois, na medida em que é “filosófica”, a poesia perde sua densidade específica e, na medida em que é “poética”, a filosofia perde a sua incisividade.
De que vertentes filosóficas beberia para explicar/legitimar a homossexualidade? Recorreria a Foucault e Deleuze?
Não acho que seja necessário explicar ou legitimar a homossexualidade. Embora já tenha sido ilegal e perseguida -- e continue a sê-lo, em alguns países retrógrados -- a homossexualidade nunca deixou de ser uma expressão legítima de liberdade individual. E o que deve ser explicado não é a homossexualidade, mas a repressão a ela. Mas isso tem que ser feito tanto por uma crítica filosófica e sociológica da religião quanto através de conceitos psicanalíticos como os de Freud, Marcuse ou M.D. Magno, e não pelos pensamentos, no fundo obscurantistas, de Deleuze ou Foucault.
Você poderia explicar melhor o obscurantismo de Foucault nesse contexto?
Emprego a expressão “obscurantista” no sentido etimológico “de adversário das luzes da razão, inimigo do iluminismo”. Ora a História da loucura na época clássica, de Foucault, no fundo pretende ser, pelo avesso, uma história crítica da razão: e mais, uma história da razão ou da racionalidade ocidental, como se houvesse muitas razões particulares: como se a razão não fosse universal. Trata-se, portanto, de uma tentativa de relativizar a razão. Acontece que, como toda crítica provém da razão, qualquer tentativa de relativizar a razão só pode ser feita pela própria razão, que, ao reconhecer esse fato, automaticamente anula a relativização a que se submeteu. É o que, corretamente, faz a “Crítica da razão pura”, de Kant. Por não fazer o mesmo, escamoteando os paradoxos e as antinomias em que forçosamente recai, a crítica de Foucault resulta num empreendimento obscurantista, que reduz a razão a uma “luz despótica”. É verdade que a História da loucura é uma das primeiras obras de Foucault e que, mais tarde, ele começou a rever a sua posição em relação ao Iluminismo. Infelizmente, porém, ele morreu antes de poder realizar plenamente o que parecia estar a esboçar. E o fato é que, ainda em 1978, ele se extasiava com a “política com dimensão espiritual” da revolução islamista do aiatolá Khomeini, que, como se sabe, conduziu o Irã a um dos regimes mais obscurantistas do mundo. E note-se que, nos textos dessa época, Foucault usava a palavra “espiritual” no sentido vulgar de “religioso”.
Quanto a Deleuze, limito-me a lembrar que ele chegou a dizer que “a razão é sempre uma região recortada no irracional.[...] No fundo de toda razão [estão] o delírio, a deriva”.
O que é mais forte em vc a filosofia ou a poesia?
A poesia. Sublinho que considero a poesia mais importante para mim, e não de modo absoluto e universal. Outros podem achar a filosofia mais importante. Mas para mim a poesia é mais importante, em primeiro lugar porque, enquanto a filosofia resulta principalmente da atividade do meu intelecto, a poesia resulta, como eu disse acima, do uso, no mais alto grau, de todas as minhas faculdades: intelecto, intuição, emoção, experiência, sensibilidade, senso de humor, cultura etc. Ela é feita, portanto, do melhor de mim. Em segundo lugar porque, para pensar filosoficamente, eu me separo do objeto do meu pensamento e o considero abstratamente; já um poema é concreto, no sentido de ser ao mesmo tempo pensamento e linguagem, sujeito e objeto, eu e não-eu, sentido e som, conceito e imagem, etc. Identifico-me, portanto, infinitamente mais com um poema que eu faça do que com um ensaio de filosofia que eu escreva. Mas a verdade é que não me identifico apenas com os poemas que eu escreva, mas com todos os poemas de que gosto. Digo mais: sinto como se eu mesmo tivesse escrito todos os poemas de que gosto. Ora, eu jamais diria isso das obras de filosofia que admiro. No poema “Dita” acho que consegui exprimir a sensação que tenho ao ler um bom poema:
DITA
Qualquer poema bom provém do amor
narcíseo. Sei bem do que estou falando
e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor
da pele da palavras, justo quando
assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.
Beijando o espelho d’água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais adivinhando se a arte imita
a vida ou se a incita ou se é bobagem:
desejarmo-nos é a nossa desdita,
pedindo-nos demais que seja dita.
Quais são seus projetos atuais?
Publicar o meu novo livro de poemas e escrever um livro sobre poesia. Sobre o livro de poemas não sei falar. O livro sobre poesia, porém, será uma obra sistemática. Direi tudo o que sei – ou penso que sei – sobre o assunto: sobre as formas poéticas, sobre a leitura de poemas, sobre a vanguarda, sobre letras de música, sobre métrica, sobre recursos paronomásticos etc.
De:
Feito de opostos
De que bases de linguagem / pensamento parte a relação filosofia/ poesia?
A filosofia e a poesia são dois empreendimentos extremos – e opostos – do espírito humano.
O discurso filosófico, na medida em que é filosófico, é proposicional. Isso quer dizer que ele afirma determinadas coisas e, ao fazê-lo, nega o oposto dessas coisas. Assim, os empiristas, por exemplo, afirmam que todo conhecimento provém da experiência. Já os racionalistas afirmam que nem todo conhecimento provém da experiência, pois, segundo eles, há coisas que podemos conhecer a priori. Ora, a afirmação dos empiristas contradiz – logo, nega – a dos racionalistas e vice-versa. Quando nos interessamos pelo conteúdo filosófico de determinado discurso, queremos saber o que é que ele afirma e o que é que ele nega, e queremos saber se o que ele afirma é, de fato, verdadeiro, e se o que ele nega é, de fato, falso.
Já o discurso poético, na medida em que é poético, não é proposicional, isto é, não afirma nem nega coisa alguma. Assim, o poema mais famoso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz: “Tinha uma pedra no meio do caminho”. À primeira vista, trata-se de uma proposição que afirma determinada coisa: que afirma, isto é, que tinha uma pedra no meio do caminho. Na verdade, trata-se de uma pseudoproposição. Por que? Em primeiro lugar, porque não se pode saber exatamente o que é que essa pretensa proposição afirma e, consequentemente, não se pode saber se o que ela pretensamente afirma é verdadeiro ou falso. Tinha uma pedra no meio de que caminho? Quando? Em segundo lugar porque, de todo modo, ainda que fosse verdadeira ou falsa, sua verdade ou falsidade não teria a menor importância para a apreciação do poema. Que pensaríamos de alguém nos dissesse, por exemplo, que esse poema de Drummond é ruim porque, na verdade, não tinha pedra nenhuma no caminho? Acharíamos que tal pessoa fosse burra ou louca; ou, pelo menos, acharíamos que ela não soubesse o que é um poema. Em terceiro lugar, digamos que alguém escreva um poema dizendo o oposto do que esse diz, isto é: “Não tinha pedra alguma no meio do caminho”. Ainda que se trate de um bom poema, não acharemos que ele desminta o poema do Drummond. É que podemos apreciar igualmente um poema que, aparentemente, afirme X (seja lá o que for X) e um poema que, aparentemente, afirme não-X. E isso significa que, na verdade, nem um nem o outro afirma coisa alguma: nem um nem outro é proposicional.
Qual a importância dessa relação nas suas composições para Marina?
O que acabo de dizer significa, para mim, que o estado de espírito em que entro para pensar filosoficamente é inteiramente diferente do estado de espírito em que entro para escrever poesia. E considero letra de música algo da ordem da poesia. Quando escrevo poesia ou letra de música, uso tudo o que sei, todas as minhas potências: minha intuição, minha razão, meu intelecto, minha emoção, minha experiência, minha sensibilidade, meu senso de humor, minha cultura etc. Naturalmente, uso também o que sei de filosofia. Mas, nesse ponto, a filosofia não é mais importante do que as outras coisas que uso. Ela é apenas uma das coisas que fazem parte da minha vida.
Você continua com a atividade de letrista de música?
Sim. No último disco da Marina há algumas letras minhas. Uma delas, aliás, chamada “Três”, foi regravada tanto pela Adriana Calcanhotto quanto pela Ana Carolina.
Como você se descobriu letrista e qual a importância disso em sua vida?
Tornei-me letrista por acaso, graças à minha irmã, Marina. Ela é dez anos mais jovem do que eu e desde cedo começou a estudar violão. A certa altura, começou a compor músicas e, um belo dia, subtraiu um poema meu de uma gaveta e o musicou. Primeiro fiquei zangando com o fato de ela ter mexido nas minhas anotações, mas acabei gostando do resultado disso, isto é, da canção. A partir daí, mudamos o processo de composição. Como morávamos ambos na casa de nossos pais, passamos a compor em conjunto. Quando ela começava a bolar uma melodia, eu começava a escrever palavras que coubessem nessa melodia. A partir das primeiras frases, a música ia tomando forma, ela fazia mais um pedaço de música, eu fazia mais uns versos etc., até que a canção ficasse pronta. A música inspirava a letra, e a letra inspirava a música. Depois, quando cada qual foi morar na sua casa, passei a receber as melodias numa fita ou, de uns anos para cá, num cd, e a escrever os versos para preencher essas melodias, embora haja sempre momentos em que nos encontramos para conversar sobre o que está sendo feito.
Para mim, foi muito grande a importância de fazer letras de música, principalmente por duas razões. A primeira é que, embora eu escreva poemas desde adolescente, demorei a publicá-los. Primeiro, isso se deveu à timidez. Segundo, aconteceu de eu morar na Inglaterra, onde estudei filosofia, na mesma época em que estavam lá exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso, com os quais fiz amizade. Nessa época, nem me ocorria escrever letra de música. Mas acontece que, na casa de Caetano e Gil, conheci também o poeta Haroldo de Campos e li as obras poéticas e teóricas dele, de seu irmão Augusto, e de Décio Pignattari. Tudo isso teve uma importância enorme na evolução da minha relação com a poesia. O que ocorre é que fiquei entusiasmado com o brilhantismo das teses concretistas. Excitou-me também o fato de que teses tão brilhantes e originais estivessem sendo elaboradas por brasileiros, pois o nosso país, em matéria de pensamento teórico, é notoriamente tímido. No entanto, a verdade é que, no que diz respeito à poesia, o que eu gostava realmente de ler e de escrever não eram (fora algumas exceções) poemas concretos, mas poemas discursivos, escritos em versos. Ademais, enquanto os concretistas valorizavam sobretudo a visualidade do poema, o importante para mim era a sua musicalidade. Produziu-se então o que chamo de conflito entre o meu intelecto e a minha sensibilidade. Fiquei inseguro em relação aos meus poemas. O efeito mais notável disso foi que, mesmo depois que voltei ao Brasil, demorei muito tempo para publicar o meu primeiro livro de poemas. O que me libertou dessa inibição foi justamente o fato de fazer letras de música que foram cantadas, gravadas, publicadas. Além disso, as restrições concretistas aos poemas em formas tradicionais não se aplicavam às canções: ao contrário, o próprio Augusto escrevera o seu admirável “Balanço da bossa” valorizando a música popular e os seus letristas. Só anos depois, quando eu já tinha elaborado um pensamento estético independente do concretismo (e que se encontra em parte exposto no meu livro “Finalidades sem fim”), comecei a publicar livros de poemas. Penso portanto sobre a relação entre música e poesia a partir dessas experiências e de minhas reflexões teóricas.
A segunda razão pela qual a atividade de letrista foi importante para mim é que ela me proporcionou a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, coisa que teria sido impensável se eu escrevesse apenas poemas para serem lidos.
Dê-nos um exemplo de poesia clássica ou de letras tuas em que a relação poesia / espanto filosófico fica explícita.
Como eu disse, acho filosofia e poesia dois empreendimentos igualmente extremos – mas opostos – do espírito humano. Eu mesmo ora sou aprendiz de poeta, ora aprendiz de filósofo, nunca os dois ao mesmo tempo. A coisa se dá assim: o poeta vai embora quando o filósofo aparece; e quando o filósofo está presente, o poeta não aparece. Concordo, portanto, com Goethe, Guimarães Rosa e João Cabral, entre outros que dizem que a filosofia atrapalha a poesia. Nietzsche, que quis ser poeta e filósofo ao mesmo tempo, enlouqueceu, e não se sabe o que veio antes: a tentativa de ser as duas coisas ao mesmo tempo ou a loucura. Toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento é filosofia. Nietzsche é um grande pensador e está na moda, mas a verdade é que, ao contrário do que Deleuze afirmou, o pensamento dele não é nem sistemático, nem consistente, para que ele possa ser considerado um grande filósofo. Embora tenha grandes intuições, Nietzsche freqüentemente se contradiz, pois é um híbrido de poeta e filósofo.
Há como fazer uso da filosofia para criticar poesia ou qualquer tipo de arte? Vemos que em Finalidades sem fim você toca de alguma maneira neste assunto.
Sim , porque a estética faz parte da filosofia, e é possível desenvolver uma teoria da arte a partir de categorias estéticas. É Algumas obras filosóficas, como, por exemplo, a “Crítica do juízo”, de Kant, proporcionam instrumentos conceituais para se pensar a especificidade da obra de arte. O título do meu livro mesmo, “Finalidades sem fim”, vem do conceito de finalidade sem fim, que designa, para Kant, o fato de que o objeto belo tem a forma da finalidade – achamos que ele é o que devia ser – e, no entanto, não tem fim determinado, pois não nos é possível determinar o que é que ele devia ser. Outros conceitos estéticos de Kant são, por exemplo, o de desinteresse, o de universalidade sem conceito etc.
E como analisar movimentos artísticos a partir da filosofia?
Em “Finalidades sem fim” emprego categorias filosóficas para falar da arte de vanguarda, da poesia de Waly Salomão, do Tropicalismo, de Drummond, de Homero etc.
A questão da vanguarda, por exemplo, tem a ver com a questão da autonomia da arte, e esta, por sua vez, depende da autonomia do estético, que foi objeto da “Crítica do Juízo”, de Kant. A vanguarda histórica combateu a arte enquanto instituição, isto é, combateu a autonomia da arte, concebendo-a como um modo de esterilizar ou domesticar a arte. Isso, na verdade, deveu-se a uma compreensão demasiadamente estreita do estético. Nesse ponto, a meu ver, ela estava errada. Ora, essa discussão, que não cabe detalhar aqui, já é filosófica. O equívoco da vanguarda histórica, entretanto, não teve conseqüências puramente negativas. Ao contrário: como mostro em “Finalidades sem fim”, no próprio processo de combater a instituição da arte, ao romper as categorias, os gêneros e as formas artísticas tradicionais, a vanguarda histórica ajudou, na prática, a revelar o caráter convencional de tais categorias, gêneros e formas. Isso foi um feito extraordinário, que transformou definitivamente a concepção moderna de arte.
Por falar em vanguarda, como vc vê a vanguarda nas artes plásticas? A impressão que se tem é que a transgressão que marcou a arte contemporânea ficou presa no tempo enquanto que outros tipos de arte como a música abriram espaço para diferentes vertestes, permitindo diferentes expressões. Já as artes plásticas continuam na transgressão e não aceitam nada que fique fora desse contexto. Isso não é contraditório?
Penso que não há mais vanguarda em arte nenhuma. “Vanguarda”, de “avant-garde”, quer dizer o destacamento que vai à frente, abrindo caminho para o grosso do exército. De vanguarda foram portanto os artistas que abriram caminhos previamente fechados. Por exemplo, os primeiros músicos a fazer música atonal, os primeiros pintores a fazer pintura abstrata ou concreta etc. Abrir um caminho significa relativizar todos os caminhos que já estavam abertos. Essa relativização afeta todos os demais artistas, isto é, afeta o “grosso do exército”. Hoje, porém, não há mais caminhos interditados: logo, não há mais vanguarda. Ao mesmo tempo, os caminhos que já haviam sido abertos por gerações passadas continuam abertos. Houve uma época em que a vanguarda, ao mesmo tempo em que abria novos caminhos, queria fechar os antigos. Isso não vingou.
Assim, mesmo nas artes plásticas, não tenho a impressão de que a ideologia vanguardista da transgressão seja tão dominante quanto você sugere. Aqui mesmo no Brasil não se pode negar a importância de pintores como Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Luciano Figueiredo, Ronaldo Rego Macedo, Artur Barrio etc.
Em seu livro Finalidades sem fim você afirma que a vanguarda cumpriu o seu papel e abriu novas possibilidades artísticas. Atualmente, o que há de novo na música/poesia/artes plásticas?
Em música, há o belíssimo disco da Adriana Calcanhotto, “Maré”; em poesia, o livro de Eucanaã Ferraz, “Cinemateca”; e em artes plásticas, a exposição de Luciano Figueiredo, “Tercetos”. Não são obras de vanguarda porque, como eu já disse, não há mais vanguarda. São simplesmente obras belíssimas, que acabam de sair, de três artistas que se encontram no que parece ser o acme, como diziam os gregos, no que parece ser o auge da sua maturidade artística.
Qual sua opinião sobre a filosofia ser matéria no ensino médio? Poderia opinar sobre a contribuição da cultura filosófica na educação?
Sou totalmente favorável. Por ser um pensamento crítico e radical, ilimitado, e questionar todos os pressupostos, a filosofia é capaz de funcionar como instrumento para aqueles que desejem pensar autonomamente.
Você acha que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na poesia?
Não. Por que o faria, se, como eu disse antes, filosofar é inteiramente diferente de fazer poesia? Como o faria, se a filosofia é pensamento abstrato e a poesia, concreto, de modo que, quando alguém filosofa, não faz poesia e, quando faz poesia, não filosofa? Penso que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na própria filosofia. A apreciação de poesia deve ser ensinada em outros cursos, de cursos de poesia mesmo ou de literatura, jamais no curso de filosofia.
Platão já considerava antiga a rixa entre a poesia e a filosofia. Foram Heidegger e a filosofia pós-estruturalista – que, na verdade, devia se chamar “filosofia neo-heideggeriana”, pois foi e é fortemente influenciada por Heidegger – que tentaram reconciliá-las. Mas é uma iniciativa destinada ao fracasso, pois, na medida em que é “filosófica”, a poesia perde sua densidade específica e, na medida em que é “poética”, a filosofia perde a sua incisividade.
De que vertentes filosóficas beberia para explicar/legitimar a homossexualidade? Recorreria a Foucault e Deleuze?
Não acho que seja necessário explicar ou legitimar a homossexualidade. Embora já tenha sido ilegal e perseguida -- e continue a sê-lo, em alguns países retrógrados -- a homossexualidade nunca deixou de ser uma expressão legítima de liberdade individual. E o que deve ser explicado não é a homossexualidade, mas a repressão a ela. Mas isso tem que ser feito tanto por uma crítica filosófica e sociológica da religião quanto através de conceitos psicanalíticos como os de Freud, Marcuse ou M.D. Magno, e não pelos pensamentos, no fundo obscurantistas, de Deleuze ou Foucault.
Você poderia explicar melhor o obscurantismo de Foucault nesse contexto?
Emprego a expressão “obscurantista” no sentido etimológico “de adversário das luzes da razão, inimigo do iluminismo”. Ora a História da loucura na época clássica, de Foucault, no fundo pretende ser, pelo avesso, uma história crítica da razão: e mais, uma história da razão ou da racionalidade ocidental, como se houvesse muitas razões particulares: como se a razão não fosse universal. Trata-se, portanto, de uma tentativa de relativizar a razão. Acontece que, como toda crítica provém da razão, qualquer tentativa de relativizar a razão só pode ser feita pela própria razão, que, ao reconhecer esse fato, automaticamente anula a relativização a que se submeteu. É o que, corretamente, faz a “Crítica da razão pura”, de Kant. Por não fazer o mesmo, escamoteando os paradoxos e as antinomias em que forçosamente recai, a crítica de Foucault resulta num empreendimento obscurantista, que reduz a razão a uma “luz despótica”. É verdade que a História da loucura é uma das primeiras obras de Foucault e que, mais tarde, ele começou a rever a sua posição em relação ao Iluminismo. Infelizmente, porém, ele morreu antes de poder realizar plenamente o que parecia estar a esboçar. E o fato é que, ainda em 1978, ele se extasiava com a “política com dimensão espiritual” da revolução islamista do aiatolá Khomeini, que, como se sabe, conduziu o Irã a um dos regimes mais obscurantistas do mundo. E note-se que, nos textos dessa época, Foucault usava a palavra “espiritual” no sentido vulgar de “religioso”.
Quanto a Deleuze, limito-me a lembrar que ele chegou a dizer que “a razão é sempre uma região recortada no irracional.[...] No fundo de toda razão [estão] o delírio, a deriva”.
O que é mais forte em vc a filosofia ou a poesia?
A poesia. Sublinho que considero a poesia mais importante para mim, e não de modo absoluto e universal. Outros podem achar a filosofia mais importante. Mas para mim a poesia é mais importante, em primeiro lugar porque, enquanto a filosofia resulta principalmente da atividade do meu intelecto, a poesia resulta, como eu disse acima, do uso, no mais alto grau, de todas as minhas faculdades: intelecto, intuição, emoção, experiência, sensibilidade, senso de humor, cultura etc. Ela é feita, portanto, do melhor de mim. Em segundo lugar porque, para pensar filosoficamente, eu me separo do objeto do meu pensamento e o considero abstratamente; já um poema é concreto, no sentido de ser ao mesmo tempo pensamento e linguagem, sujeito e objeto, eu e não-eu, sentido e som, conceito e imagem, etc. Identifico-me, portanto, infinitamente mais com um poema que eu faça do que com um ensaio de filosofia que eu escreva. Mas a verdade é que não me identifico apenas com os poemas que eu escreva, mas com todos os poemas de que gosto. Digo mais: sinto como se eu mesmo tivesse escrito todos os poemas de que gosto. Ora, eu jamais diria isso das obras de filosofia que admiro. No poema “Dita” acho que consegui exprimir a sensação que tenho ao ler um bom poema:
DITA
Qualquer poema bom provém do amor
narcíseo. Sei bem do que estou falando
e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor
da pele da palavras, justo quando
assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.
Beijando o espelho d’água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais adivinhando se a arte imita
a vida ou se a incita ou se é bobagem:
desejarmo-nos é a nossa desdita,
pedindo-nos demais que seja dita.
Quais são seus projetos atuais?
Publicar o meu novo livro de poemas e escrever um livro sobre poesia. Sobre o livro de poemas não sei falar. O livro sobre poesia, porém, será uma obra sistemática. Direi tudo o que sei – ou penso que sei – sobre o assunto: sobre as formas poéticas, sobre a leitura de poemas, sobre a vanguarda, sobre letras de música, sobre métrica, sobre recursos paronomásticos etc.
De:
19.9.08
Entrevista à revista Azougue
No ensaio “Poesia e paisagens urbanas”, você argumenta que as vanguardas acabaram, não porque falharam, mas justamente porque tiveram êxito no seu papel de expandir os horizontes da arte. Qual é a relação entre este papel histórico e a potência ou contundência particular que diversas de suas obras nos legaram? Estarão superadas em virtude de seus momentos históricos? De que maneira permanecem?
Não há uma resposta genérica a essa pergunta. É preciso considerar cada obra de arte individualmente. O importante é reconhecer que a importância histórica de uma obra não coincide necessariamente com o seu valor estético. Fontaine, de Duchamp, tem uma enorme importância conceitual e histórica, mas o seu valor estético é praticamente nulo, como, aliás, o próprio Duchamp reconhecia. Por outro lado, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem, além da sua importância histórica, um grande valor estético. A prova de que há uma diferença é que não é preciso ver Fontaine para saber tudo o que importa sobre essa obra, mas, a menos que se veja Les demoiselles d’Avignon, é impossível saber tudo o que realmente importa sobre esse quadro.
O modernismo fundamentou-se na especificidade dos gêneros artísticos. Como você vê o desguarnecimento das fronteiras entre as artes que caracteriza o momento “pós-moderno”?
Tanto a busca da essência de cada arte quanto a rejeição dessa essência fazem parte da modernidade. Elas são os dois lados de uma mesma moeda, dois diferentes caminhos abertos pela compreensão moderna de que as formas que nos foram legadas pela tradição são arbitrárias, convencionais, contingentes. É verdade que a própria busca da essência acaba também resultando na sua rejeição, isto é, na convicção de que a arte não tem uma essência descritível, mas esse processo se passa no interior da mesma modernidade. Assim, o movimento Dada, que data da Primeira Guerra, já funde todas as artes. Não há “pós-modernidade”. Esta noção é espúria. O que vivemos hoje é a modernidade plenamente auto-consciente. Uma vez, num ensaio sobre Hélio Oiticica, eu a chamei de supermoderna. Haroldo de Campos, ao ler esse ensaio, me disse gostar muito desse conceito, mas observou que preferia a palavra “supramoderno” a “supermoderno”. Eu prefiro esta última, pelas suas ressonâncias pop-nietzscheanas.
No caso brasileiro, você diria que a antropofagia de Oswald de Andrade está circunscrita a seu momento histórico? Quais rupturas e continuidades estabelece com as experiências contemporâneas?
Os manifestos de Oswald só têm valor histórico, mas a obra poética dele e a noção de antropofagia, não. Contra o nacionalismo e o regionalismo defensivos, tudo o que é mais forte no Brasil – Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Modernismo, Manuel Bandeira, o samba, Drummond, a bossa-nova, João Cabral, o Concretismo, o Néo-
concretismo, o Tropicalismo e mesmo, contra todas as aparências, o próprio Guimarães Rosa – foram agressiva e seletivamente cosmopolitas, isto é, antropofágicos.
Grosso modo, podemos identificar duas frentes principais nas vanguardas: a objetiva (alinhada com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão) e a subjetivas (a exploração do inconsciente, do sagrado e dos desregramentos via uma postura crítica com relação à modernidade). No Brasil, e em momentos distintos, a primeira frente parece influenciar aquelas vertentes que se integraram ao projeto de modernização do país e seguem um programa estético racionalista; a segunda, por sua vez, caracteriza os movimentos artísticos definidos como marginais, subjetivistas e, muitas vezes, acusados de diletantismo. Como avalia as passagens destas frentes oriundas do modernismo europeu para a cultura brasileira?
Para dizer a verdade, acho que, com exceção da teoria (mas não tanto da prática) de João Cabral e dos manifestos e teorias da fase heróica dos concretistas, praticamente não há poetas que se alinhem com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão, ou que tenham um programa estético racionalista. Não vejo elogio nenhum do racionalismo na poesia de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles ou Ferreira Gullar, por exemplo. Por outro lado, o surrealismo (que explora o inconsciente,o sagrado, os desregramentos etc.) não conseguiu ter, no Brasil, a expressão que teve na França, na Espanha ou em Portugal, por exemplo. Quanto à poesia marginal, parece-me ser outra coisa. Não é possível identificá-la com o surrealismo. Pelo menos quantitativamente, ela é muito forte. Mas acho que eu faria outro recorte da poesia brasileira. Para mim, há os poetas que tomam a poesia como a construção de uma obra de arte – entre os quais eu colocaria não só Cabral e os concretistas, mas esses cujos nomes citei – e os poetas que tomam a poesia como expressão vital, entre os quais eu colocaria os marginais. Interessam-me muito mais os primeiros.
Em Finalidades sem fim, você considera as inovações das vanguardas européias (o desenraizamento, o cosmopolitismo) como desdobramentos da conquista da escrita pela cultura ocidental herdeira da Grécia. Ao mesmo tempo, certas vanguardas abriram caminho ao não-ocidental e fizeram disso um dos focos de crítica à modernidade letrada: instauraram a via cosmopolita, entre outras coisas, justamente por incluírem as contribuições da alteridade. Não acha então que, ao fazerem assim, as vanguardas mostraram que pensamentos cosmopolitas e desenraizados, ao contrário do que sustentam nossos pressupostos imperiais, podem ser encontrados também por outras partes que não nos centros estendidos da cultura européia modernista?
Permitam-me explicar melhor o que penso. A razão – que é, em primeiro lugar, a capacidade de criticar – e a modernidade não são produtos do Ocidente, nem pertencem a ele ou a qualquer cultura particular. Não poderia haver etnocentrismo ou “pressuposto imperial” mais descarado do que a pretensão de que a razão e a modernidade pertencessem exclusivamente ao Ocidente. Ao contrário: no Ocidente, a modernidade surge como uma fenda, como uma crítica, exercida pela razão, à própria cultura ocidental. Quando Montaigne, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado. Nesse momento, ele está sendo moderno, e está sendo um dos introdutores da modernidade na Europa. A modernidade não surge, portanto, como um desenvolvimento da própria cultura ocidental, mas como uma crítica a esta, feita por indivíduos que, em certa medida, já dela se separaram, já dela se desenraizaram, e que, ao criticá-la, fazem uso da razão, que não pertence a cultura nenhuma e está disponível a todos os seres humanos, de todas as culturas. Pois bem, a escrita alfabética, por ser, em princípio, acessível a todas as pessoas, foi um mais fortes fatores que favoreceram o desenvolvimento da crítica em geral e, com ela, o desenraizamento, no Ocidente. Essa é sem dúvida essa uma das principais causas pelas quais historicamente foi no Ocidente que a modernidade se manifestou com mais força. Isso não quer dizer que ela não se tenha manifestado também em outras partes do mundo, como já mostrou, por exemplo, Amartya Sen, falando da Índia. Quanto à “crítica à modernidade letrada”, de que você fala, observo que qualquer crítica concebível é necessariamente uma manifestação da própria modernidade letrada: a modernidade letrada só pode ser criticada pela própria modernidade letrada.
Com sua “Fontaine” e seus ready-mades, Marcel Duchamp inaugura uma vertente para a arte que ganha força com o movimento da arte conceitual nos anos 1960 e continua a dominar a assim chamada “arte contemporânea”. Essa vertente artística conceitual não se fundamenta na estética, ao contrário, procura superá-la. Ao ler seu Finalidades sem fim, entendo que para você não existe arte sem estética. Das duas uma: ou a “arte contemporânea” não é arte, ou sua concepção de arte está superada...
Em primeiro lugar, há outras possibilidades que vocês não estão levando em conta. Uma delas é que eu entenda por “estética” algo diferente do que alguns desses “artistas contemporâneos” entendem. E isso, de fato, ocorre. A descoberta de Kant de que a apreciação estética é independente de todo interesse foi normalmente interpretada como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando qualquer conteúdo ou significado. Se fosse assim, também eu acharia que Kant estava errado nesse ponto. Schiller, porém, que, a meu ver, melhor entendeu – ou desenvolveu – esse aspecto do pensamento de Kant, afirmava, ao contrário, que apreciar esteticamente uma coisa significa permitir que ela se relacione com a totalidade das nossas diversas potências, sem ser um objeto determinado para nenhuma delas em particular. Devemos entender que, enquanto obra de arte, um objeto não tem nenhuma função utilitária (seja fisiológica, seja política ou seja comercial), nem nenhuma função prática ou cognitiva: que enquanto obra de arte ele não serve para nada. É sem nenhum fim ulterior que uma obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, a nossa razão, a nossa inteligência, a nossa sensibilidade, a nossa sensualidade, a nossa sensitividade, as nossas emoções, o nosso humor etc. e faz com que todas essas faculdades interajam, e que interajam de maneiras também surpreendentes, nem utilitárias, nem práticas, nem cognitivas. Se a “arte contemporânea” de que vocês estão falando não é capaz de fazer isso, então, realmente, não é arte. Observo, porém, que, para mim, “arte contemporânea” é tudo o que se faz contemporaneamente. Uma obra de Luciano Figueiredo, uma canção de Caetano Veloso e um poema de Eucanaã Ferraz, por exemplo, são arte contemporânea e fazem isso. Observo que há também quem negue que a arte tenha a ver com a estética porque ache que a arte não tem que ser bela. Isso, porém, é uma tolice, pois “belo” é uma noção transcendental e não descritiva. Quando chamamos alguma coisa de “bela”, isso quer dizer apenas que a aprovamos, do ponto de vista estético: e podemos aprová-la embora outras pessoas a desaprovem, isto é, a chamem de “feia”. Por exemplo, o quadro, que já citei, Les demoiselles d’Avignon foi em parte inspirado por máscaras africanas, que, na época, eram tidas como feias. Hoje as achamos belas. Esse próprio quadro era tido por feio por quase todo o mundo, quando foi pintado. Hoje, quase todo o mundo o acha belo. Assim, se aprovo uma obra de “arte contemporânea”, vou chamá-la de “bela”; se a chamo de “feia”, estou simplesmente manifestando minha desaprovação.
Um dos conceitos que você apresenta em Finalidades sem fim é o de “modernidade plena” – aliás o fim das vanguardas seria um sintoma da realização da modernidade, sua “plenitude”. O conceito de “modernidade plena” parece inferir uma espécie de superioridade da cultura ocidental sobre as outras. O cosmopolitismo faz um par, portanto, com o autoritarismo iluminista. Sua constante defesa da open society não implica também em desconsiderar toda uma vertente da filosofia que, ao menos desde Nietzsche, reflete de modo crítico sobre as mazelas da modernidade? Como vê esta tensão?
Como já observei ao responder à pergunta 5, a modernidade não é um produto do Ocidente. É um acidente que ela se tenha manifestado com mais força e antes na Europa do que noutras regiões. Dado que a modernidade constitui uma fissura na cultura em que surge, ela manifesta antes a fraqueza do que a força desta. Quanto ao “autoritarismo iluminista”, trata-se de um mito. Autoritárias são as religiões e as culturas pré-modernas, não o iluminismo que é, ao contrário, um movimento de crítica a toda autoridade. É curioso que o pensamento realmente autoritário, como, por exemplo, o católico, tenha conseguido pôr a pecha de autoritário justamente no iluminismo. Penso que o Marxismo foi cúmplice dessa inversão, ao qualificar – ou melhor, desqualificar – a democracia e o individualismo como “burgueses”. Um dos resultados dessa confusão toda é o absurdo – bem contemporâneo – de considerar Nietzsche como um pensador anti-autoritário. Para realmente conhecer o pensamento de Nietzsche, os nietzscheanos de hoje deviam deixar Deleuze, Klossowski e seus epígonos de lado, e ler o próprio Nietzsche. Eles saberiam então que o autor de Assim falou Zaratustra condena a modernidade, não porque esta seja autoritária, mas por não o ser suficientemente; e que defende autoridade, hierarquia e tradição até o ponto de idolatrar o sistema de castas. Deixem-me escolher duas, entre centenas de citações que poderiam provar o que digo. No § 39 de Crepúsculo dos ídolos, intitulado “Crítica da modernidade”, Nietzsche diz: “Para que haja instituições, é preciso haver uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até a malvadeza: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações, para a frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não tem mais os instintos de que nascem as instituições, de que nasce o futuro: talvez nada contrarie tanto o seu ‘espírito moderno’”. E no § 57 de O Anticristo, diz: “Quem eu mais odeio, dessa gentalha de hoje em dia?” E responde: “a gentalha socialista, os apóstolos da chandala, que corroem o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com sua existenciazinha – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais se encontra na desigualdade de direitos, mas na aspiração a direitos iguais...”
Em O homem sem conteúdo, Agamben diz que o homem contemporâneo está perigosamente amortecido pelo juízo crítico da arte e prega uma superação da estética. Em suas palavras, “Perhaps nothing is more urgent – if we really want to engage the problem of art in our time – than a destruction of aesthetics that would, by clearing away what is usually taken for granted, allow us to bring into question the very meaning of aesthetics as the science of the work of art.” Como você analisa o trabalho e proposições de Agamben sobre arte e estética? Quais são as opções para além da matriz kantiana?
Se não me engano, esse livro é um dos primeiros de Agamben. Parece escrito por um discípulo de Heidegger que, como seu mestre, tem ojeriza à modernidade. O horror à estética é o horror à autonomia da arte, que é uma das grandes conquistas da modernidade. E o que ele oferece no lugar da autonomia da arte? Absolutamente nada além de nostalgia pela época da heteronomia da arte. Agamben parece não ter compreendido Kant quando diz que este pensa que, para julgarmos uma obra de arte, devemos ter um conceito do que o objeto deveria ser, pois “o fundamento da obra de arte é algo diferente de nós, isto é, o princípio formal-criativo do artista”. O que Agamben não percebe é que, nesse contexto, Kant entende por obra de arte a obra da técnica. Para Kant, há uma diferença entre as obras de arte ordinárias (que são obras da técnica) e as obras das belas-artes, que, são antes produtos do gênio – logo, da natureza – do que da arte, de modo que devem ser apreciadas como se fossem produtos da natureza: “devemos”, diz Kant, “estar conscientes de que se trata de arte [técnica], e não de natureza; porém a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre de todo constrangimento de regras arbitrárias como se fosse um produto da pura natureza”. Sobre Kant, deve-se dizer que ele foi, sem dúvida, o maior filósofo da modernidade, de modo que, goste-se dele ou não, ele é inevitável. Mas, naturalmente, Kant também foi humano, de modo que tem que ser complementado em alguns pontos, corrigido em outros, e superado em terceiros. Tento, na medida das minhas escassas possibilidades, fazer todas essas coisas, quando faço filosofia. O que não dá é para enterrar a Crítica do juízo antes da hora, como Agamben pretende fazer.
No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de ser tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica?
Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são interrelacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. Como eu disse na resposta a outra pergunta, o leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc. Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira “dinâmica”; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a atualização e a interação das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas.
In: Azougue: edição especial 2006-2008. Organização Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
Não há uma resposta genérica a essa pergunta. É preciso considerar cada obra de arte individualmente. O importante é reconhecer que a importância histórica de uma obra não coincide necessariamente com o seu valor estético. Fontaine, de Duchamp, tem uma enorme importância conceitual e histórica, mas o seu valor estético é praticamente nulo, como, aliás, o próprio Duchamp reconhecia. Por outro lado, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso, tem, além da sua importância histórica, um grande valor estético. A prova de que há uma diferença é que não é preciso ver Fontaine para saber tudo o que importa sobre essa obra, mas, a menos que se veja Les demoiselles d’Avignon, é impossível saber tudo o que realmente importa sobre esse quadro.
O modernismo fundamentou-se na especificidade dos gêneros artísticos. Como você vê o desguarnecimento das fronteiras entre as artes que caracteriza o momento “pós-moderno”?
Tanto a busca da essência de cada arte quanto a rejeição dessa essência fazem parte da modernidade. Elas são os dois lados de uma mesma moeda, dois diferentes caminhos abertos pela compreensão moderna de que as formas que nos foram legadas pela tradição são arbitrárias, convencionais, contingentes. É verdade que a própria busca da essência acaba também resultando na sua rejeição, isto é, na convicção de que a arte não tem uma essência descritível, mas esse processo se passa no interior da mesma modernidade. Assim, o movimento Dada, que data da Primeira Guerra, já funde todas as artes. Não há “pós-modernidade”. Esta noção é espúria. O que vivemos hoje é a modernidade plenamente auto-consciente. Uma vez, num ensaio sobre Hélio Oiticica, eu a chamei de supermoderna. Haroldo de Campos, ao ler esse ensaio, me disse gostar muito desse conceito, mas observou que preferia a palavra “supramoderno” a “supermoderno”. Eu prefiro esta última, pelas suas ressonâncias pop-nietzscheanas.
No caso brasileiro, você diria que a antropofagia de Oswald de Andrade está circunscrita a seu momento histórico? Quais rupturas e continuidades estabelece com as experiências contemporâneas?
Os manifestos de Oswald só têm valor histórico, mas a obra poética dele e a noção de antropofagia, não. Contra o nacionalismo e o regionalismo defensivos, tudo o que é mais forte no Brasil – Machado de Assis, Joaquim Nabuco, o Modernismo, Manuel Bandeira, o samba, Drummond, a bossa-nova, João Cabral, o Concretismo, o Néo-
concretismo, o Tropicalismo e mesmo, contra todas as aparências, o próprio Guimarães Rosa – foram agressiva e seletivamente cosmopolitas, isto é, antropofágicos.
Grosso modo, podemos identificar duas frentes principais nas vanguardas: a objetiva (alinhada com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão) e a subjetivas (a exploração do inconsciente, do sagrado e dos desregramentos via uma postura crítica com relação à modernidade). No Brasil, e em momentos distintos, a primeira frente parece influenciar aquelas vertentes que se integraram ao projeto de modernização do país e seguem um programa estético racionalista; a segunda, por sua vez, caracteriza os movimentos artísticos definidos como marginais, subjetivistas e, muitas vezes, acusados de diletantismo. Como avalia as passagens destas frentes oriundas do modernismo europeu para a cultura brasileira?
Para dizer a verdade, acho que, com exceção da teoria (mas não tanto da prática) de João Cabral e dos manifestos e teorias da fase heróica dos concretistas, praticamente não há poetas que se alinhem com as promessas civilizatórias da revolução industrial e da razão, ou que tenham um programa estético racionalista. Não vejo elogio nenhum do racionalismo na poesia de Bandeira, Drummond, Cecília Meireles ou Ferreira Gullar, por exemplo. Por outro lado, o surrealismo (que explora o inconsciente,o sagrado, os desregramentos etc.) não conseguiu ter, no Brasil, a expressão que teve na França, na Espanha ou em Portugal, por exemplo. Quanto à poesia marginal, parece-me ser outra coisa. Não é possível identificá-la com o surrealismo. Pelo menos quantitativamente, ela é muito forte. Mas acho que eu faria outro recorte da poesia brasileira. Para mim, há os poetas que tomam a poesia como a construção de uma obra de arte – entre os quais eu colocaria não só Cabral e os concretistas, mas esses cujos nomes citei – e os poetas que tomam a poesia como expressão vital, entre os quais eu colocaria os marginais. Interessam-me muito mais os primeiros.
Em Finalidades sem fim, você considera as inovações das vanguardas européias (o desenraizamento, o cosmopolitismo) como desdobramentos da conquista da escrita pela cultura ocidental herdeira da Grécia. Ao mesmo tempo, certas vanguardas abriram caminho ao não-ocidental e fizeram disso um dos focos de crítica à modernidade letrada: instauraram a via cosmopolita, entre outras coisas, justamente por incluírem as contribuições da alteridade. Não acha então que, ao fazerem assim, as vanguardas mostraram que pensamentos cosmopolitas e desenraizados, ao contrário do que sustentam nossos pressupostos imperiais, podem ser encontrados também por outras partes que não nos centros estendidos da cultura européia modernista?
Permitam-me explicar melhor o que penso. A razão – que é, em primeiro lugar, a capacidade de criticar – e a modernidade não são produtos do Ocidente, nem pertencem a ele ou a qualquer cultura particular. Não poderia haver etnocentrismo ou “pressuposto imperial” mais descarado do que a pretensão de que a razão e a modernidade pertencessem exclusivamente ao Ocidente. Ao contrário: no Ocidente, a modernidade surge como uma fenda, como uma crítica, exercida pela razão, à própria cultura ocidental. Quando Montaigne, em nome da razão, critica a França, a Europa, a Cristandade etc., comparando-as desfavoravelmente a outras culturas, inclusive à dos índios brasileiros, ele está, enquanto indivíduo portador da razão, a se separar da França, da Europa, da Cristandade etc.: ele está, a partir da razão, a relativizar a cultura ocidental, que é a cultura em que foi criado. Nesse momento, ele está sendo moderno, e está sendo um dos introdutores da modernidade na Europa. A modernidade não surge, portanto, como um desenvolvimento da própria cultura ocidental, mas como uma crítica a esta, feita por indivíduos que, em certa medida, já dela se separaram, já dela se desenraizaram, e que, ao criticá-la, fazem uso da razão, que não pertence a cultura nenhuma e está disponível a todos os seres humanos, de todas as culturas. Pois bem, a escrita alfabética, por ser, em princípio, acessível a todas as pessoas, foi um mais fortes fatores que favoreceram o desenvolvimento da crítica em geral e, com ela, o desenraizamento, no Ocidente. Essa é sem dúvida essa uma das principais causas pelas quais historicamente foi no Ocidente que a modernidade se manifestou com mais força. Isso não quer dizer que ela não se tenha manifestado também em outras partes do mundo, como já mostrou, por exemplo, Amartya Sen, falando da Índia. Quanto à “crítica à modernidade letrada”, de que você fala, observo que qualquer crítica concebível é necessariamente uma manifestação da própria modernidade letrada: a modernidade letrada só pode ser criticada pela própria modernidade letrada.
Com sua “Fontaine” e seus ready-mades, Marcel Duchamp inaugura uma vertente para a arte que ganha força com o movimento da arte conceitual nos anos 1960 e continua a dominar a assim chamada “arte contemporânea”. Essa vertente artística conceitual não se fundamenta na estética, ao contrário, procura superá-la. Ao ler seu Finalidades sem fim, entendo que para você não existe arte sem estética. Das duas uma: ou a “arte contemporânea” não é arte, ou sua concepção de arte está superada...
Em primeiro lugar, há outras possibilidades que vocês não estão levando em conta. Uma delas é que eu entenda por “estética” algo diferente do que alguns desses “artistas contemporâneos” entendem. E isso, de fato, ocorre. A descoberta de Kant de que a apreciação estética é independente de todo interesse foi normalmente interpretada como se significasse que a apreciação estética fosse puramente formal, desprezando qualquer conteúdo ou significado. Se fosse assim, também eu acharia que Kant estava errado nesse ponto. Schiller, porém, que, a meu ver, melhor entendeu – ou desenvolveu – esse aspecto do pensamento de Kant, afirmava, ao contrário, que apreciar esteticamente uma coisa significa permitir que ela se relacione com a totalidade das nossas diversas potências, sem ser um objeto determinado para nenhuma delas em particular. Devemos entender que, enquanto obra de arte, um objeto não tem nenhuma função utilitária (seja fisiológica, seja política ou seja comercial), nem nenhuma função prática ou cognitiva: que enquanto obra de arte ele não serve para nada. É sem nenhum fim ulterior que uma obra de arte mobiliza de maneiras surpreendentes as nossas faculdades, a nossa razão, a nossa inteligência, a nossa sensibilidade, a nossa sensualidade, a nossa sensitividade, as nossas emoções, o nosso humor etc. e faz com que todas essas faculdades interajam, e que interajam de maneiras também surpreendentes, nem utilitárias, nem práticas, nem cognitivas. Se a “arte contemporânea” de que vocês estão falando não é capaz de fazer isso, então, realmente, não é arte. Observo, porém, que, para mim, “arte contemporânea” é tudo o que se faz contemporaneamente. Uma obra de Luciano Figueiredo, uma canção de Caetano Veloso e um poema de Eucanaã Ferraz, por exemplo, são arte contemporânea e fazem isso. Observo que há também quem negue que a arte tenha a ver com a estética porque ache que a arte não tem que ser bela. Isso, porém, é uma tolice, pois “belo” é uma noção transcendental e não descritiva. Quando chamamos alguma coisa de “bela”, isso quer dizer apenas que a aprovamos, do ponto de vista estético: e podemos aprová-la embora outras pessoas a desaprovem, isto é, a chamem de “feia”. Por exemplo, o quadro, que já citei, Les demoiselles d’Avignon foi em parte inspirado por máscaras africanas, que, na época, eram tidas como feias. Hoje as achamos belas. Esse próprio quadro era tido por feio por quase todo o mundo, quando foi pintado. Hoje, quase todo o mundo o acha belo. Assim, se aprovo uma obra de “arte contemporânea”, vou chamá-la de “bela”; se a chamo de “feia”, estou simplesmente manifestando minha desaprovação.
Um dos conceitos que você apresenta em Finalidades sem fim é o de “modernidade plena” – aliás o fim das vanguardas seria um sintoma da realização da modernidade, sua “plenitude”. O conceito de “modernidade plena” parece inferir uma espécie de superioridade da cultura ocidental sobre as outras. O cosmopolitismo faz um par, portanto, com o autoritarismo iluminista. Sua constante defesa da open society não implica também em desconsiderar toda uma vertente da filosofia que, ao menos desde Nietzsche, reflete de modo crítico sobre as mazelas da modernidade? Como vê esta tensão?
Como já observei ao responder à pergunta 5, a modernidade não é um produto do Ocidente. É um acidente que ela se tenha manifestado com mais força e antes na Europa do que noutras regiões. Dado que a modernidade constitui uma fissura na cultura em que surge, ela manifesta antes a fraqueza do que a força desta. Quanto ao “autoritarismo iluminista”, trata-se de um mito. Autoritárias são as religiões e as culturas pré-modernas, não o iluminismo que é, ao contrário, um movimento de crítica a toda autoridade. É curioso que o pensamento realmente autoritário, como, por exemplo, o católico, tenha conseguido pôr a pecha de autoritário justamente no iluminismo. Penso que o Marxismo foi cúmplice dessa inversão, ao qualificar – ou melhor, desqualificar – a democracia e o individualismo como “burgueses”. Um dos resultados dessa confusão toda é o absurdo – bem contemporâneo – de considerar Nietzsche como um pensador anti-autoritário. Para realmente conhecer o pensamento de Nietzsche, os nietzscheanos de hoje deviam deixar Deleuze, Klossowski e seus epígonos de lado, e ler o próprio Nietzsche. Eles saberiam então que o autor de Assim falou Zaratustra condena a modernidade, não porque esta seja autoritária, mas por não o ser suficientemente; e que defende autoridade, hierarquia e tradição até o ponto de idolatrar o sistema de castas. Deixem-me escolher duas, entre centenas de citações que poderiam provar o que digo. No § 39 de Crepúsculo dos ídolos, intitulado “Crítica da modernidade”, Nietzsche diz: “Para que haja instituições, é preciso haver uma espécie de vontade, de instinto, de imperativo, antiliberal até a malvadeza: a vontade de tradição, de autoridade, de responsabilidade por séculos adiante, de solidariedade entre cadeias de gerações, para a frente e para trás in infinitum. [...] O Ocidente inteiro não tem mais os instintos de que nascem as instituições, de que nasce o futuro: talvez nada contrarie tanto o seu ‘espírito moderno’”. E no § 57 de O Anticristo, diz: “Quem eu mais odeio, dessa gentalha de hoje em dia?” E responde: “a gentalha socialista, os apóstolos da chandala, que corroem o instinto, o prazer, o sentimento de satisfação do trabalhador com sua existenciazinha – que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança... A injustiça jamais se encontra na desigualdade de direitos, mas na aspiração a direitos iguais...”
Em O homem sem conteúdo, Agamben diz que o homem contemporâneo está perigosamente amortecido pelo juízo crítico da arte e prega uma superação da estética. Em suas palavras, “Perhaps nothing is more urgent – if we really want to engage the problem of art in our time – than a destruction of aesthetics that would, by clearing away what is usually taken for granted, allow us to bring into question the very meaning of aesthetics as the science of the work of art.” Como você analisa o trabalho e proposições de Agamben sobre arte e estética? Quais são as opções para além da matriz kantiana?
Se não me engano, esse livro é um dos primeiros de Agamben. Parece escrito por um discípulo de Heidegger que, como seu mestre, tem ojeriza à modernidade. O horror à estética é o horror à autonomia da arte, que é uma das grandes conquistas da modernidade. E o que ele oferece no lugar da autonomia da arte? Absolutamente nada além de nostalgia pela época da heteronomia da arte. Agamben parece não ter compreendido Kant quando diz que este pensa que, para julgarmos uma obra de arte, devemos ter um conceito do que o objeto deveria ser, pois “o fundamento da obra de arte é algo diferente de nós, isto é, o princípio formal-criativo do artista”. O que Agamben não percebe é que, nesse contexto, Kant entende por obra de arte a obra da técnica. Para Kant, há uma diferença entre as obras de arte ordinárias (que são obras da técnica) e as obras das belas-artes, que, são antes produtos do gênio – logo, da natureza – do que da arte, de modo que devem ser apreciadas como se fossem produtos da natureza: “devemos”, diz Kant, “estar conscientes de que se trata de arte [técnica], e não de natureza; porém a finalidade na forma do mesmo deve parecer tão livre de todo constrangimento de regras arbitrárias como se fosse um produto da pura natureza”. Sobre Kant, deve-se dizer que ele foi, sem dúvida, o maior filósofo da modernidade, de modo que, goste-se dele ou não, ele é inevitável. Mas, naturalmente, Kant também foi humano, de modo que tem que ser complementado em alguns pontos, corrigido em outros, e superado em terceiros. Tento, na medida das minhas escassas possibilidades, fazer todas essas coisas, quando faço filosofia. O que não dá é para enterrar a Crítica do juízo antes da hora, como Agamben pretende fazer.
No Brasil de hoje, talvez no mundo, parece haver um duplo fenômeno de proliferação dos poetas e de diminuição da circulação da poesia (por exemplo, no debate público e no mercado). Uma das possíveis explicações para isso é a resistência que a poesia tem de se tornar um produto mercantil, ou seja, de ser tornar objeto da cultura de massas. Ao mesmo tempo, numa sociedade de consumo e laica, parece não haver mais uma função social para o poeta, substituído por outros personagens. A poesia, compreendida como a arte de criar poemas, se tornou anacrônica?
Parece-me que a poesia escrita sempre será – pelo menos em tempo previsível – coisa para poucas pessoas. É que ela exige muito do seu leitor. Para ser plenamente apreciado, cada poema deve ser lido lentamente, em voz baixa ou alta, ou ainda “aural”, como diz o poeta Jacques Roubaud. Alguns de seus trechos, ou ele inteiro, devem ser relidos, às vezes mais de uma vez. Há muitas coisas a serem descobertas num poema, e tudo nele é sugestivo: os sentidos, as alusões, a sonoridade, o ritmo, as relações paronomásicas, as aliterações, as rimas, os assíndetos, as associações icônicas etc. Todos os componentes de um poema escrito podem (e devem) ser levados em conta. Muitos deles são interrelacionados. Tudo isso deve ser comparado a outros poemas que o leitor conheça. E, de preferência, o leitor deve ser familiarizado com os poemas canônicos. Como eu disse na resposta a outra pergunta, o leitor deve convocar e deixar que interajam uns com os outros, até onde não puder mais, todos os recursos de que dispõe: razão, intelecto, experiência, cultura, emoção, sensibilidade, sensualidade, intuição, senso de humor etc. Sem isso tudo, a leitura do poema não compensa: é uma chatice. Um quadro pode ser olhado en passant; um romance, lido à maneira “dinâmica”; uma música, ouvida distraidamente; um filme, uma peça de teatro, um ballet, idem. Um poema, não. Nada mais entediante do que a leitura desatenta de um poema. Quanto melhor ele for, mais faculdades nossas, e em mais alto grau, são por ele solicitadas e atualizadas. É por isso que muita gente tem preguiça de ler um poema, e muita gente jamais o faz. Os que o fazem, porém, sabem que é precisamente a exigência do poema – a atualização e a interação das nossas faculdades – que constitui a recompensa (incomparável) que ele oferece ao seu leitor. Mas os bons poemas são raridades. A função do poeta é fazer essas raridades. Felizmente elas são anacrônicas, porque nos fazem experimentar uma temporalidade inteiramente diferente da temporalidade utilitária em que passamos a maior parte das nossas vidas.
In: Azougue: edição especial 2006-2008. Organização Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.
1.6.08
Ainda a vanguarda
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008:
FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO
Ainda a vanguarda
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.
FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO
Ainda a vanguarda
EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.
Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.
Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.
Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.
Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.
Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.
Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.
Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.
No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.
Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.
7.5.08
Entrevista a Daniela Name
Dada a discussão sobre o meu artigo "O sentido da vanguarda", resolvi postar a versão integral da entrevista que dei a Daniela Name e que foi publicada, com alguns cortes, em O Globo, em 24/07/2002:
Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir
1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?
Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.
2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?
Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.
3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)
Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.
4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?
Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.
Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.
Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.
Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.
5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?
Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.
6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?
Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.
7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?
Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.
Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.
Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.
Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.
Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.
8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?
No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.
Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.
Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.
É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.
Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.
9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?
Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.
10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!
Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.
Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir
1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?
Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.
2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?
Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.
3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)
Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.
4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?
Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.
Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.
Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.
Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.
5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?
Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.
6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?
Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.
7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?
Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.
Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.
Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.
Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.
Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.
8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?
No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.
Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.
Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.
É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.
Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.
9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?
Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.
10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!
Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.
4.5.08
O sentido da vanguarda
O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da Ilustrada, da Folha de São Paulo, sábado, 3 de maio:
O sentido da vanguarda
Não se deve ignorar o sentido metafórico da palavra "vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de “vanguarda” os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar, mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da "destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada de possibilidades experimentais. Acontece porém que, quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados? Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno -e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu"- é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".
O sentido da vanguarda
Não se deve ignorar o sentido metafórico da palavra "vanguarda". No âmbito militar em que se origina, ela designa o dispositivo avançado de um exército ou de uma frota, isto é, o destacamento que, indo à frente, indica ou abre caminho para o grosso do Exército ou da frota. Analogamente, chamam-se de “vanguarda” os artistas que, estando à frente dos demais, indicam ou abrem os caminhos que serão eventualmente tomados por estes.
Historicamente, a vanguarda não só se atribuiu o papel de indicar ou abrir caminhos, mas efetivamente o cumpriu. Por exemplo, antes da eclosão das vanguardas, as formas poéticas mais tradicionais em uso nas línguas modernas haviam sido fetichizadas. Supunha-se que o uso de métrica ou de rima ou o emprego de alguma das diversas formas fixas então catalogadas (tais quais o soneto, a balada e a sextina) fosse necessário para a produção de um bom poema. Desse modo, consideravam-se naturais determinadas formas convencionais.
Pois bem: ao produzir autênticos poemas sem o emprego dessas formas, as vanguardas mostraram, em primeiro lugar, o caráter convencional de tais formas; em segundo lugar, mostraram que a poesia ou o poético não se encontram prêt-à-porter, à disposição do poeta, nestas ou naquelas formas fixas; em terceiro lugar, mostraram que a poesia não é necessariamente incompatível com nenhuma forma determinada: que é possível inventar novas formas para ela.
Assim, ao desfetichizar as formas poéticas tradicionais, as vanguardas abriram novas possibilidades para todos os poetas. E ressalto que, apesar da retórica da "morte", da "destruição", do "fim" das formas poéticas que a vanguarda mostrou serem relativas, a verdade é que nenhuma das formas convencionais jamais deixou de existir ou de continuar a ser realizada, em maior ou menor grau. As formas existentes podem ser relativizadas, mas não morrem.
No meu artigo anterior, observei que, no seu "Plano-Piloto", a poesia concreta errara ao dar por encerrado o ciclo do verso. Por outro lado, o "Plano-Piloto" também afirmava que "a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaço-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear".
Pois bem, ao efetivamente criar poemas de estrutura não-discursiva, espaço-temporal, a poesia concreta eliminou a possibilidade de qualquer fetichismo residual em relação a qualquer forma convencional da poesia. Trata-se, sem dúvida, de um feito eminentemente vanguardista, pois todos os poetas são afetados tanto pelas possibilidades que ele abre quanto pela conseqüente relativização de todas as formas tradicionais de poesia.
Entretanto, é preciso reconhecer que esse foi o derradeiro feito da vanguarda no campo da poesia. Com isso, não quero dizer, de maneira nenhuma, que deixe de existir a poesia experimental. Ao contrário: o feito vanguardista consistiu exatamente na abertura ilimitada de possibilidades experimentais. Acontece porém que, quando todas as experiências são possíveis e nenhuma possibilidade já experimentada está morta, cada qual está livre para seguir o seu próprio e singular caminho.
Que diríamos de um poeta ou crítico que hoje decretasse serem poemas só os experimentos vídeo-áudio-verbais? Ou só aquilo que fosse composto em versos metrificados e rimados? Ou, ao contrário, só aquilo que fosse escrito em versos livres? Sabemos hoje que, por princípio, não se pode em são juízo decretar o que é admissível e o que é inadmissível num poema; nem estabelecer critérios a priori pelos quais todos os poemas devam ser julgados.
O poeta moderno -e moderno aqui quer dizer "que vive depois que a experiência da vanguarda se cumpriu"- é capaz de empregar as formas que bem entender para fazer os seus poemas, mas não pode deixar de saber que elas constituem apenas algumas das formas possíveis; e o crítico deve reconhecer esse fato. Em tal situação, não pode haver nenhum caminho a ser indicado ou aberto por alguns poucos, para ser seguido pelos outros muitos. Não há mais vanguarda.
Nesse sentido, não há como não concordar com Haroldo de Campos quando, em seu ensaio "Poesia e Modernidade: Da Morte do Verso à Constelação. O Poema Pós-Utópico", afirma que "ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis".
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