Não é surpreendente que o início da Lógica de Hegel, sobre a identidade de SER e NADA, provoque alguma confusão e perplexidade. Tal como se apresenta, ele me parece extremamente brilhante e, à primeira vista, claro: ofuscantemente claro; súbito, obscuro.
Transcrevo a seguir o parágrafo de O mundo desde o fim [Ed. Francisco Alves, 1995, cap.IV, § 16, p.77 ss.] em que critico a passagem, na Lógica de Hegel, do A. SER e do B. NADA para C. DEVIR:
Hegel, para deixar claro que nada ficou de fora do absoluto, principia sua Lógica pela categoria ao mesmo tempo mais universal e mais e mais simples, pela imediaticidade simples do puro ser. "O começo", diz Hegel introdutoriamente,
precisa ser absoluto ou, o que aqui é equivalente, ser começo abstrato; ele não deve pressupor nada, não deve ser mediatizado por nada nem ter um fundamento; deve ao contrário ser ele mesmo fundamento da ciência inteira. Deve portanto ser absolutamente um imediato, ou antes apenas a imediaticidade mesma. Como não pode ter determinação em relação a outra coisa, tampouco pode ter determinação em si, ou conteúdo, pois tal seria diferença e relação de diferentes uns com os outros e, com isso, uma mediação. O começo é, portanto, o ser puro. [HEGEL, G. Wissenschaft der Logik. Hamburg: Felix Meiner, 1932 primeiro livro, p.54]
O começo absoluto é, portanto, o começo abstrato, isto é, o absoluto abstrato. Em que consiste mesmo esse absoluto abstrato ou essa abstração absoluta? O ser puro não possui nenhuma determinidade, nenhuma diferença interna ou externa, nenhuma positividade, particularidade, relatividade. E Hegel adiciona, num parágrafo merecidamente famoso:
Nada há nele a intuir, se é que de intuição pode ser falado aqui; ou ele é apenas essa pura e vazia intuição mesma. Tampouco há algo nele a pensar, ou ele é do mesmo modo apenas esse puro pensamento vazio. O ser, o imediato indeterminado, nada é de fato, e nem mais nem menos que nada. [Ibid., primeira parte, primeiro capítulo, p.66-67]
O ser é o pensamento puro. "O ser puro", diz Hegel na Enzyklopädie,
Constitui o começo porque é tanto puro pensamento quanto o imediato indeterminado, simples, o e o primeiro início não pode ser nada mediado ou mais determinado. [HEGEL, G. "Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse I". In:. Werke. Vol.8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, § 86, p.182-2]
A Lógica se dá inteira no elemento do pensamento livre. Nesse sentido, ela pressupõe a Fenomenologia, que trouxe a consciência ao conceito da ciência, ou ao saber puro. É por isso que o ser puro pode ser concebido como idêntico ao puro intuir ou ao puro pensamento. O puro pensamento é o pensamento que abstraiu de si absolutamente toda determinidade, o pensamento pensante. Este se identifica com o puro nada. O ser é o nada. Da mesma maneira, quando concebo o nada, estou concebendo o pensamento pensante, o ser abstrato-abstrainte. O nada é o ser.
A verdade do ser e do nada é, para Hegel, o devir, pois "o que é a verdade não é nem o ser nem o nada mas que o ser passa -- ou melhor, já passou -- ao nada e o nada ao ser." [HEGEL, G. Wissenschaft... ibid.]
Mas pode objetar-se que não há trânsito efetivo do nada ao ser ou vice-versa. Se o ser é conceitualmente o mesmo que o nada, e o nada, o mesmo que o ser, então só uma ilusão pode levar alguém a falar de transição, pois o mesmo não transita ao mesmo. Prevendo essa possível objeção, Hegel afirma que
tão correta quanto a unidade de ser e nada é porém também que são absolutamente distintos -- que um não é o que o outro é. Apenas, uma vez que a diferença aqui ainda não se determinou, pois justamente ser e nada são ainda o imediato, ela é, como se encontra neles, o indizível, a mera opinião. [HEGEL, G. Enzyklopädie I, § 88, p.188]
Contudo, a verdade é que essa diferença jamais se torna mais precisa. Ela não é capaz de superar o status de doxa, imaginação, ilusão. O tornar-se não pode ser a identidade do ser absoluto e do nada absoluto justamente porque ele é diferente tanto de um quanto de outro, que são idênticos. O ser absoluto é conceitualmente idêntico ao nada absoluto, e isso basta. Por essa razão, resulta ininteligível a explicação de Hegel para a coagulação do tornar-se no estar aí (Dasein) ou no ser determinado:
O tornar-se contém em si o ser e o nada, e de tal maneira que esses dois simplesmente se transformam um no outro e se superam mutuamente. Com isso, o tornar-se se demonstra como inteiramente inquieto, mas incapaz de se manter nessa inquietação abstrata; pois na medida em que ser e nada se esvanecem no devir e só isto é o seu conceito, ele próprio é um esvanecente, feito um fogo que se consome em si mesmo enquanto devora o seu material. Mas o resultado desse processo não é o nada vazio mas o ser idêntico à negação, que chamamos estar aí (Dasein)... [Ibid., § 89, p.195]
Ora, como já foi dito, se o ser é idêntico ao nada, não há tornar-se um o outro. Isso significa que, dado que o devir é o elo entre o momento do ser-nada e o momento do estar aí (Dasein), isto é, do ser determinado, pode declarar-se insatisfatória a passagem crucial do primeiro para o segundo capítulo da Lógica. Isso não significa que não haja uma diferença fundamental entre o ser ou o nada absoluto e o ser determinado. Muito pelo contrário: trata-se da verdadeira diferença ontológica. O que a insuficiência da derivação hegeliana significa é que o conceito de ser absoluto ou o absoluto abstrato não pode ser reduzido a uma representação inadequada do ser determinado. Assim, desde o primeiro passo não se realiza a pretensão hegeliana de que o absoluto abstrato não passe da mais pobre das definições do absoluto, destinada a ser relativamente superada por todos os significados subseqüentes revelados pela Lógica.
Há outras formas de considerar a relação entre o ser absoluto e a determinidade. Chegamos ao ser absoluto ou ao nada absoluto através da abstração absoluta. Trata-se da atividade de negação absoluta. Em primeiro lugar, uma tal atividade se constitui como o não-ser de todas as outras coisas, como o nada dessas coisas, não porque as destrua mas porque as nega de si ou se nega a elas. Ao negá-las de si, isto é, ao negá-las da negação, a negação absoluta se dá como negação negante e as coisas negadas são por ela constituídas como negações negadas. A negação negada é positividade. Logo, a positividade pode ser também considerada como negação relativa. É, portanto, a negação relativa, ou melhor, a negação negada, que normalmente dizemos ser isto ou aquilo. A negação absoluta, porém, nada tem de relativo, nada tem de negado. Ela consiste em pura negação negante.
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27.2.07
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