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3.6.14

Zizi Possi canta "Alma caiada", de Marina Lima e Antonio Cicero




Muita gente me pergunta qual foi a primeira letra de canção que fiz. Bem, era um poema, guardado na gaveta, que Marina musicou. Chama-se "Alma caiada". Maria Bethania chegou a gravá-la, mas ela foi censurada pela ditadura. Depois, Zizi Possi a gravou lindamente. Ei-la:


ALMA CAIADA

Aprendi desde criança
que é melhor me calar
e dançar conforme a dança
do que jamais ousar

mas às vezes pressinto
que não me enquadro na lei:
minto sobre o que sinto
e esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar:
sem me poder vencer,
tento afogar no mar
o fogo em que quero arder.

De dia caio minh’alma.
Só à noite caio em mim:
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.






1.10.08

Entrevista à revista "Filosofia (da série "Ciência & Vida")

Em maio deste ano dei a seguinte entrevista a Mônica Serrano, da revista "Filosofia", da série "Ciência & Vida":


Feito de opostos


De que bases de linguagem / pensamento parte a relação filosofia/ poesia?

A filosofia e a poesia são dois empreendimentos extremos – e opostos – do espírito humano.

O discurso filosófico, na medida em que é filosófico, é proposicional. Isso quer dizer que ele afirma determinadas coisas e, ao fazê-lo, nega o oposto dessas coisas. Assim, os empiristas, por exemplo, afirmam que todo conhecimento provém da experiência. Já os racionalistas afirmam que nem todo conhecimento provém da experiência, pois, segundo eles, há coisas que podemos conhecer a priori. Ora, a afirmação dos empiristas contradiz – logo, nega – a dos racionalistas e vice-versa. Quando nos interessamos pelo conteúdo filosófico de determinado discurso, queremos saber o que é que ele afirma e o que é que ele nega, e queremos saber se o que ele afirma é, de fato, verdadeiro, e se o que ele nega é, de fato, falso.

Já o discurso poético, na medida em que é poético, não é proposicional, isto é, não afirma nem nega coisa alguma. Assim, o poema mais famoso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, diz: “Tinha uma pedra no meio do caminho”. À primeira vista, trata-se de uma proposição que afirma determinada coisa: que afirma, isto é, que tinha uma pedra no meio do caminho. Na verdade, trata-se de uma pseudoproposição. Por que? Em primeiro lugar, porque não se pode saber exatamente o que é que essa pretensa proposição afirma e, consequentemente, não se pode saber se o que ela pretensamente afirma é verdadeiro ou falso. Tinha uma pedra no meio de que caminho? Quando? Em segundo lugar porque, de todo modo, ainda que fosse verdadeira ou falsa, sua verdade ou falsidade não teria a menor importância para a apreciação do poema. Que pensaríamos de alguém nos dissesse, por exemplo, que esse poema de Drummond é ruim porque, na verdade, não tinha pedra nenhuma no caminho? Acharíamos que tal pessoa fosse burra ou louca; ou, pelo menos, acharíamos que ela não soubesse o que é um poema. Em terceiro lugar, digamos que alguém escreva um poema dizendo o oposto do que esse diz, isto é: “Não tinha pedra alguma no meio do caminho”. Ainda que se trate de um bom poema, não acharemos que ele desminta o poema do Drummond. É que podemos apreciar igualmente um poema que, aparentemente, afirme X (seja lá o que for X) e um poema que, aparentemente, afirme não-X. E isso significa que, na verdade, nem um nem o outro afirma coisa alguma: nem um nem outro é proposicional.

Qual a importância dessa relação nas suas composições para Marina?

O que acabo de dizer significa, para mim, que o estado de espírito em que entro para pensar filosoficamente é inteiramente diferente do estado de espírito em que entro para escrever poesia. E considero letra de música algo da ordem da poesia. Quando escrevo poesia ou letra de música, uso tudo o que sei, todas as minhas potências: minha intuição, minha razão, meu intelecto, minha emoção, minha experiência, minha sensibilidade, meu senso de humor, minha cultura etc. Naturalmente, uso também o que sei de filosofia. Mas, nesse ponto, a filosofia não é mais importante do que as outras coisas que uso. Ela é apenas uma das coisas que fazem parte da minha vida.

Você continua com a atividade de letrista de música?

Sim. No último disco da Marina há algumas letras minhas. Uma delas, aliás, chamada “Três”, foi regravada tanto pela Adriana Calcanhotto quanto pela Ana Carolina.

Como você se descobriu letrista e qual a importância disso em sua vida?

Tornei-me letrista por acaso, graças à minha irmã, Marina. Ela é dez anos mais jovem do que eu e desde cedo começou a estudar violão. A certa altura, começou a compor músicas e, um belo dia, subtraiu um poema meu de uma gaveta e o musicou. Primeiro fiquei zangando com o fato de ela ter mexido nas minhas anotações, mas acabei gostando do resultado disso, isto é, da canção. A partir daí, mudamos o processo de composição. Como morávamos ambos na casa de nossos pais, passamos a compor em conjunto. Quando ela começava a bolar uma melodia, eu começava a escrever palavras que coubessem nessa melodia. A partir das primeiras frases, a música ia tomando forma, ela fazia mais um pedaço de música, eu fazia mais uns versos etc., até que a canção ficasse pronta. A música inspirava a letra, e a letra inspirava a música. Depois, quando cada qual foi morar na sua casa, passei a receber as melodias numa fita ou, de uns anos para cá, num cd, e a escrever os versos para preencher essas melodias, embora haja sempre momentos em que nos encontramos para conversar sobre o que está sendo feito.

Para mim, foi muito grande a importância de fazer letras de música, principalmente por duas razões. A primeira é que, embora eu escreva poemas desde adolescente, demorei a publicá-los. Primeiro, isso se deveu à timidez. Segundo, aconteceu de eu morar na Inglaterra, onde estudei filosofia, na mesma época em que estavam lá exilados Gilberto Gil e Caetano Veloso, com os quais fiz amizade. Nessa época, nem me ocorria escrever letra de música. Mas acontece que, na casa de Caetano e Gil, conheci também o poeta Haroldo de Campos e li as obras poéticas e teóricas dele, de seu irmão Augusto, e de Décio Pignattari. Tudo isso teve uma importância enorme na evolução da minha relação com a poesia. O que ocorre é que fiquei entusiasmado com o brilhantismo das teses concretistas. Excitou-me também o fato de que teses tão brilhantes e originais estivessem sendo elaboradas por brasileiros, pois o nosso país, em matéria de pensamento teórico, é notoriamente tímido. No entanto, a verdade é que, no que diz respeito à poesia, o que eu gostava realmente de ler e de escrever não eram (fora algumas exceções) poemas concretos, mas poemas discursivos, escritos em versos. Ademais, enquanto os concretistas valorizavam sobretudo a visualidade do poema, o importante para mim era a sua musicalidade. Produziu-se então o que chamo de conflito entre o meu intelecto e a minha sensibilidade. Fiquei inseguro em relação aos meus poemas. O efeito mais notável disso foi que, mesmo depois que voltei ao Brasil, demorei muito tempo para publicar o meu primeiro livro de poemas. O que me libertou dessa inibição foi justamente o fato de fazer letras de música que foram cantadas, gravadas, publicadas. Além disso, as restrições concretistas aos poemas em formas tradicionais não se aplicavam às canções: ao contrário, o próprio Augusto escrevera o seu admirável “Balanço da bossa” valorizando a música popular e os seus letristas. Só anos depois, quando eu já tinha elaborado um pensamento estético independente do concretismo (e que se encontra em parte exposto no meu livro “Finalidades sem fim”), comecei a publicar livros de poemas. Penso portanto sobre a relação entre música e poesia a partir dessas experiências e de minhas reflexões teóricas.

A segunda razão pela qual a atividade de letrista foi importante para mim é que ela me proporcionou a possibilidade de viver do meu trabalho artístico, coisa que teria sido impensável se eu escrevesse apenas poemas para serem lidos.

Dê-nos um exemplo de poesia clássica ou de letras tuas em que a relação poesia / espanto filosófico fica explícita.

Como eu disse, acho filosofia e poesia dois empreendimentos igualmente extremos – mas opostos – do espírito humano. Eu mesmo ora sou aprendiz de poeta, ora aprendiz de filósofo, nunca os dois ao mesmo tempo. A coisa se dá assim: o poeta vai embora quando o filósofo aparece; e quando o filósofo está presente, o poeta não aparece. Concordo, portanto, com Goethe, Guimarães Rosa e João Cabral, entre outros que dizem que a filosofia atrapalha a poesia. Nietzsche, que quis ser poeta e filósofo ao mesmo tempo, enlouqueceu, e não se sabe o que veio antes: a tentativa de ser as duas coisas ao mesmo tempo ou a loucura. Toda filosofia é pensamento, mas nem todo pensamento é filosofia. Nietzsche é um grande pensador e está na moda, mas a verdade é que, ao contrário do que Deleuze afirmou, o pensamento dele não é nem sistemático, nem consistente, para que ele possa ser considerado um grande filósofo. Embora tenha grandes intuições, Nietzsche freqüentemente se contradiz, pois é um híbrido de poeta e filósofo.


Há como fazer uso da filosofia para criticar poesia ou qualquer tipo de arte? Vemos que em Finalidades sem fim você toca de alguma maneira neste assunto.

Sim , porque a estética faz parte da filosofia, e é possível desenvolver uma teoria da arte a partir de categorias estéticas. É Algumas obras filosóficas, como, por exemplo, a “Crítica do juízo”, de Kant, proporcionam instrumentos conceituais para se pensar a especificidade da obra de arte. O título do meu livro mesmo, “Finalidades sem fim”, vem do conceito de finalidade sem fim, que designa, para Kant, o fato de que o objeto belo tem a forma da finalidade – achamos que ele é o que devia ser – e, no entanto, não tem fim determinado, pois não nos é possível determinar o que é que ele devia ser. Outros conceitos estéticos de Kant são, por exemplo, o de desinteresse, o de universalidade sem conceito etc.

E como analisar movimentos artísticos a partir da filosofia?

Em “Finalidades sem fim” emprego categorias filosóficas para falar da arte de vanguarda, da poesia de Waly Salomão, do Tropicalismo, de Drummond, de Homero etc.

A questão da vanguarda, por exemplo, tem a ver com a questão da autonomia da arte, e esta, por sua vez, depende da autonomia do estético, que foi objeto da “Crítica do Juízo”, de Kant. A vanguarda histórica combateu a arte enquanto instituição, isto é, combateu a autonomia da arte, concebendo-a como um modo de esterilizar ou domesticar a arte. Isso, na verdade, deveu-se a uma compreensão demasiadamente estreita do estético. Nesse ponto, a meu ver, ela estava errada. Ora, essa discussão, que não cabe detalhar aqui, já é filosófica. O equívoco da vanguarda histórica, entretanto, não teve conseqüências puramente negativas. Ao contrário: como mostro em “Finalidades sem fim”, no próprio processo de combater a instituição da arte, ao romper as categorias, os gêneros e as formas artísticas tradicionais, a vanguarda histórica ajudou, na prática, a revelar o caráter convencional de tais categorias, gêneros e formas. Isso foi um feito extraordinário, que transformou definitivamente a concepção moderna de arte.

Por falar em vanguarda, como vc vê a vanguarda nas artes plásticas? A impressão que se tem é que a transgressão que marcou a arte contemporânea ficou presa no tempo enquanto que outros tipos de arte como a música abriram espaço para diferentes vertestes, permitindo diferentes expressões. Já as artes plásticas continuam na transgressão e não aceitam nada que fique fora desse contexto. Isso não é contraditório?

Penso que não há mais vanguarda em arte nenhuma. “Vanguarda”, de “avant-garde”, quer dizer o destacamento que vai à frente, abrindo caminho para o grosso do exército. De vanguarda foram portanto os artistas que abriram caminhos previamente fechados. Por exemplo, os primeiros músicos a fazer música atonal, os primeiros pintores a fazer pintura abstrata ou concreta etc. Abrir um caminho significa relativizar todos os caminhos que já estavam abertos. Essa relativização afeta todos os demais artistas, isto é, afeta o “grosso do exército”. Hoje, porém, não há mais caminhos interditados: logo, não há mais vanguarda. Ao mesmo tempo, os caminhos que já haviam sido abertos por gerações passadas continuam abertos. Houve uma época em que a vanguarda, ao mesmo tempo em que abria novos caminhos, queria fechar os antigos. Isso não vingou.

Assim, mesmo nas artes plásticas, não tenho a impressão de que a ideologia vanguardista da transgressão seja tão dominante quanto você sugere. Aqui mesmo no Brasil não se pode negar a importância de pintores como Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Luciano Figueiredo, Ronaldo Rego Macedo, Artur Barrio etc.

Em seu livro Finalidades sem fim você afirma que a vanguarda cumpriu o seu papel e abriu novas possibilidades artísticas. Atualmente, o que há de novo na música/poesia/artes plásticas?

Em música, há o belíssimo disco da Adriana Calcanhotto, “Maré”; em poesia, o livro de Eucanaã Ferraz, “Cinemateca”; e em artes plásticas, a exposição de Luciano Figueiredo, “Tercetos”. Não são obras de vanguarda porque, como eu já disse, não há mais vanguarda. São simplesmente obras belíssimas, que acabam de sair, de três artistas que se encontram no que parece ser o acme, como diziam os gregos, no que parece ser o auge da sua maturidade artística.

Qual sua opinião sobre a filosofia ser matéria no ensino médio? Poderia opinar sobre a contribuição da cultura filosófica na educação?

Sou totalmente favorável. Por ser um pensamento crítico e radical, ilimitado, e questionar todos os pressupostos, a filosofia é capaz de funcionar como instrumento para aqueles que desejem pensar autonomamente.

Você acha que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na poesia?

Não. Por que o faria, se, como eu disse antes, filosofar é inteiramente diferente de fazer poesia? Como o faria, se a filosofia é pensamento abstrato e a poesia, concreto, de modo que, quando alguém filosofa, não faz poesia e, quando faz poesia, não filosofa? Penso que a filosofia na educação seria um caminho para despertar interesse na própria filosofia. A apreciação de poesia deve ser ensinada em outros cursos, de cursos de poesia mesmo ou de literatura, jamais no curso de filosofia.

Platão já considerava antiga a rixa entre a poesia e a filosofia. Foram Heidegger e a filosofia pós-estruturalista – que, na verdade, devia se chamar “filosofia neo-heideggeriana”, pois foi e é fortemente influenciada por Heidegger – que tentaram reconciliá-las. Mas é uma iniciativa destinada ao fracasso, pois, na medida em que é “filosófica”, a poesia perde sua densidade específica e, na medida em que é “poética”, a filosofia perde a sua incisividade.

De que vertentes filosóficas beberia para explicar/legitimar a homossexualidade? Recorreria a Foucault e Deleuze?

Não acho que seja necessário explicar ou legitimar a homossexualidade. Embora já tenha sido ilegal e perseguida -- e continue a sê-lo, em alguns países retrógrados -- a homossexualidade nunca deixou de ser uma expressão legítima de liberdade individual. E o que deve ser explicado não é a homossexualidade, mas a repressão a ela. Mas isso tem que ser feito tanto por uma crítica filosófica e sociológica da religião quanto através de conceitos psicanalíticos como os de Freud, Marcuse ou M.D. Magno, e não pelos pensamentos, no fundo obscurantistas, de Deleuze ou Foucault.

Você poderia explicar melhor o obscurantismo de Foucault nesse contexto?

Emprego a expressão “obscurantista” no sentido etimológico “de adversário das luzes da razão, inimigo do iluminismo”. Ora a História da loucura na época clássica, de Foucault, no fundo pretende ser, pelo avesso, uma história crítica da razão: e mais, uma história da razão ou da racionalidade ocidental, como se houvesse muitas razões particulares: como se a razão não fosse universal. Trata-se, portanto, de uma tentativa de relativizar a razão. Acontece que, como toda crítica provém da razão, qualquer tentativa de relativizar a razão só pode ser feita pela própria razão, que, ao reconhecer esse fato, automaticamente anula a relativização a que se submeteu. É o que, corretamente, faz a “Crítica da razão pura”, de Kant. Por não fazer o mesmo, escamoteando os paradoxos e as antinomias em que forçosamente recai, a crítica de Foucault resulta num empreendimento obscurantista, que reduz a razão a uma “luz despótica”. É verdade que a História da loucura é uma das primeiras obras de Foucault e que, mais tarde, ele começou a rever a sua posição em relação ao Iluminismo. Infelizmente, porém, ele morreu antes de poder realizar plenamente o que parecia estar a esboçar. E o fato é que, ainda em 1978, ele se extasiava com a “política com dimensão espiritual” da revolução islamista do aiatolá Khomeini, que, como se sabe, conduziu o Irã a um dos regimes mais obscurantistas do mundo. E note-se que, nos textos dessa época, Foucault usava a palavra “espiritual” no sentido vulgar de “religioso”.

Quanto a Deleuze, limito-me a lembrar que ele chegou a dizer que “a razão é sempre uma região recortada no irracional.[...] No fundo de toda razão [estão] o delírio, a deriva”.

O que é mais forte em vc a filosofia ou a poesia?

A poesia. Sublinho que considero a poesia mais importante para mim, e não de modo absoluto e universal. Outros podem achar a filosofia mais importante. Mas para mim a poesia é mais importante, em primeiro lugar porque, enquanto a filosofia resulta principalmente da atividade do meu intelecto, a poesia resulta, como eu disse acima, do uso, no mais alto grau, de todas as minhas faculdades: intelecto, intuição, emoção, experiência, sensibilidade, senso de humor, cultura etc. Ela é feita, portanto, do melhor de mim. Em segundo lugar porque, para pensar filosoficamente, eu me separo do objeto do meu pensamento e o considero abstratamente; já um poema é concreto, no sentido de ser ao mesmo tempo pensamento e linguagem, sujeito e objeto, eu e não-eu, sentido e som, conceito e imagem, etc. Identifico-me, portanto, infinitamente mais com um poema que eu faça do que com um ensaio de filosofia que eu escreva. Mas a verdade é que não me identifico apenas com os poemas que eu escreva, mas com todos os poemas de que gosto. Digo mais: sinto como se eu mesmo tivesse escrito todos os poemas de que gosto. Ora, eu jamais diria isso das obras de filosofia que admiro. No poema “Dita” acho que consegui exprimir a sensação que tenho ao ler um bom poema:


DITA

Qualquer poema bom provém do amor
narcíseo. Sei bem do que estou falando
e os faço eu mesmo, pondo à orelha a flor
da pele da palavras, justo quando
assino os heterônimos famosos:
Catulo, Caetano, Safo ou Fernando.
Falo por todos. Somos fabulosos
por sermos enquanto nos desejando.
Beijando o espelho d’água da linguagem,
jamais tivemos mesmo outra mensagem,
jamais adivinhando se a arte imita
a vida ou se a incita ou se é bobagem:
desejarmo-nos é a nossa desdita,
pedindo-nos demais que seja dita.

Quais são seus projetos atuais?

Publicar o meu novo livro de poemas e escrever um livro sobre poesia. Sobre o livro de poemas não sei falar. O livro sobre poesia, porém, será uma obra sistemática. Direi tudo o que sei – ou penso que sei – sobre o assunto: sobre as formas poéticas, sobre a leitura de poemas, sobre a vanguarda, sobre letras de música, sobre métrica, sobre recursos paronomásticos etc.



De:

7.5.08

Entrevista a Daniela Name

Dada a discussão sobre o meu artigo "O sentido da vanguarda", resolvi postar a versão integral da entrevista que dei a Daniela Name e que foi publicada, com alguns cortes, em O Globo, em 24/07/2002:



Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir


1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?

Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.

2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?

Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.

3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)

Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.

4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?

Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.

Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.

Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.

Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.

5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?

Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.

6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?


Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.

7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?

Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.

Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.

Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.

Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.

Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.

8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?

No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.

Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.

Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.

É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.

Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.

9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?

Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.

10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!


Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.