Segundo a tradição
O grande bem não nos é nunca dado
e foste já furtado do segundo:
o resto é afogar-te com o amado
na líquida volúpia de um segundo
CICERO, Antonio. "Segundo a tradição". In:_____Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BLOG DE ANTONIO CICERO: poesia, arte, filosofia, crítica, literatura, política
Segundo a tradição
O grande bem não nos é nunca dado
e foste já furtado do segundo:
o resto é afogar-te com o amado
na líquida volúpia de um segundo
CICERO, Antonio. "Segundo a tradição". In:_____Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.
Definição ostensiva
Cerúleo:
o céu
o mar
os olhos dos alemães
os cabelos dos indianos
a noite
a morte
CICERO, Antonio. "Cerúleo". In:_____ Definição ostensiva. In: Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
O emigrante
Buscando o
ocidente com o olhar,
que desde
sempre foi límpido e grávido,
chegou à
terra ao fim de todo mar.
Sem planos
certos foi e até sem roupa,
sem cada dia
o pão e sem família,
sem nem saber
o que era o ocidente,
chegou
chorando assim como quem nasce
e o mundo
alumbra um segundo e assombra.
CICERO, Antonio. "O emigrante". In:_____ Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.
Canto XXIII:
Desafogo
a Sérgio Luz
A ameaçar as
naves do regresso
enquanto os
deuses se distraem
o combate
prossegue implacável,
os dardos e o
bronze a perfurar
órgãos
membros e sobretudo a pele
que sonhava
acostumar-se a brisas sóis olhos ardentes.
Antes morrer
de vez ou viver
que
desgastar-se feito agora ante os navios
contra homens
ignóbeis
CICERO, Antonio. "Canto XXIII: Desafogo". In:_____ Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.
Colono lacônico
É propício que Afrodite sempre vença as primeiras batalhas
e Atena sempre as últimas.
Hera deve perder.
Jamais regressarei a Esparta.
CICERO, Antonio. "Colono lacônico". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Merde de poète
Quem gosta de poesia "visceral",
ou seja, porca, preguiçosa, lerda,
que vá ao fundo e seja literal,
pedindo ao poeta, em vez de poemas, merda.
CICERO, Antonio. "Merde de poète". In:_____ A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.
NÊNIA
A
morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há,
ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava
de desejar a imortalidade em vão. Sua vida era infinita, não porque se estendesse
indefinidamente no tempo mas porque, como um campo visual, não tinha limite.
Tal qual outras coisas preciosas, ela não se media pela extensão mas pela
intensidade. Louvemos e contemos no número dos felizes os que bem empregaram o
parco tempo que a sorte lhes emprestou. Bom não é viver, mas viver bem. Ele viu
a luz do dia, teve amigos, amou e floresceu. Às vezes anuviava-se o seu brilho.
Às vezes era radiante. Quem pergunta quanto tempo viveu? Viveu e ilumina nossa
memória.
CICERO, Antonio. "Nênia". In:_____. A cidade e os livros. Rio de Janeiro: Record, 2002.
Praça
A praça tem uma torre
a torre tem um balcão,
o balcão tem uma dama,
a dama uma branca flor.
Pois passou um cavalheiro
-- quem sabe por que passou? --
e levou consigo a praça,
com sua torre e o balcão,
com o balcão e a dama,
a dama e a branca flor.
Plaza
La plaza tiene una torre,
la torre tiene un balcón,
el balcón tiene una dama,
la dama una blanca flor.
ha pasado un caballero
– ¿ quién sabe por qué pasó ?–,
y se ha llevado la plaza,
con su torre y su balcón,
con su balcón y su dama
su dama y su blanca flor.
MACHADO, António. "Plaza". In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (org.). Museum der modernen Poesie. Franfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 2002. Tradução de Antonio Cicero.
Síntese
PAI MÃE
CÉU CHÃO
MÃE CÉU
PAI XÃO
CICERO, Antonio. "Síntese". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Buonaparte
Vasos sagrados são os poetas,
Onde o vinho da vida, o espírito
Dos heróis se conserva;
O espírito desse jovem, porém,
Tão rápido, como não quebraria
Se o quisesse prender, o vaso?
Que o poeta o deixe intacto como o espírito da natureza,
Em tal matéria torna-se aprendiz o mestre.
No poema ele não pode viver e ficar:
Ele vive e fica no mundo.
Buonaparte
Heilige Gefäße sind die Dichter,
Worin des Lebens Wein, der Geist
Der Helden, sich aufbewahrt,
Aber der Geist dieses Jünglings,
Der schnelle, müßt er es nicht zersprengen,
Wo es ihn fassen wollte, das Gefäß?
Der Dichter laß ihn unberührt wie den Geist der Natur,
An solchem Stoffe wird zum Knaben der Meister.
Er kann im Gedichte nicht leben und bleiben,
Er lebt und bleibt in der Welt.
HÖLDERLIN, Friedrich „Buonaparte“. In:_____. Sämtliche Werke und Briefe.Vol.1. München: Carl Hanser Verlag, 1970,.
O livro de sombras de
Luciano Figueiredo
1
Para onde vou, de onde
vim?
Não sei se me acho ou
me extravio.
Ariadne não fia o seu
fio
à frente, mas sim atrás
de mim.
Não será a saída um
desvio
e o caminho o
verdadeiro fim ?
2
Não é hora de regressos
Não é hora
3
É certo que me perco em
sombras
e que, isolado em minha
ilha,
já não me atingem as
notícias
dos jornais a falar de
bolsas,
modas, cidades que
soçobram,
crimes, imitações da
vida
ou da morte televisiva,
quadrilhas, teias
penelópicas
de horrores ou de
maravilhas
que dia a dia se
desfiam
e fiam sem princípio ou
fim
novíssimas novas
artísticas,
científicas,
estatísticas...
E há na noite quente um
jasmim.
4
É aqui, mais real que
as notícias, na própria
matéria, na dobradura
de uma folha
em que se refolha este
meu coração
babilônico, na
configuração
da mancha gráfica sobre
a tessitura
do papel tensionado, ou
onde se apura
o lusco- fusco
produzido por linhas
e entrelinhas, entre o
preto e o branco e o cinza,
onde cada ideia, cada
ponto e vírgula
dos trabalhos e das
noites se confunde
com miríades de pontos
de retícula
e meios-tons de clichês,
entre o passado
que jamais está passado
e alguns volumes,
linhas e planos apenas
esboçados,
que súbito os elementos
mais dispersos
se articulam,
claro-escuro filme negro,
entre a pura
matemática, o acaso
e a arte (esta árvore
já foi vestido
de mulher) onde o delírio
é mais preciso,
transparece o meu
jornal imaginário.
5
Para onde vou, de onde
vim?
Não sei se me acho ou
me extravio.
Ariadne não fia o seu
fio
à frente, mas sim atrás
de mim.
Não será a saída um
desvio
E o caminho o verdadeiro fim?
CICERO, Antonio. "O Livro de Sombras de Luciano Figueiredo". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
La
Capricciosa
In memoriam
Roberto
Correia Lima, meu irmão
É claro que estou exposto
eu como todos os outros
animais às intempéries
que cedo ou tarde nos ferem;
mas aqui a noite, seda,
suavemente me enleia:
espelhos olhares vinhos
uvas cachos rosas risos
e ali, do lado de lá
das lâminas de cristal
tão tranquila e cintilante
quanto o céu, sonha a cidade.
Desperta-me um celular:
a morte também tem arte.
CICERO, Antonio. "La Capricciosa". In:-_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Acabo de ler, na Revista Pernambuco, Nº 167, de janeiro de 2020, revista que é o suplemento cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco, um excelente ensaio, escrito por Renato Gonçalves, sobre a canção Fullgás, que fiz em parceria com minha irmã, Marina Lima. Ei-lo:
O verso que quis nos ajudar a fazer um país
Sobre a música Fullgás, de Marina Lima e Antonio Cicero
por Renato Gonçalves
Democracia, há tempos não falávamos nessa palavra que, no início do século XXI, mostrou-se tão cara aos países latino-americanos. Denunciamos o seu fim e até mesmo chegamos a questionar se ela, de fato, um dia existiu entre nós de forma efetiva. Aproveitando o título de um dos melhores sintomas da contemporaneidade, o best seller Como morrem as democracias, dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, elaboremos uma pergunta na direção oposta: como nascem as democracias? Explicitar o lugar e o momento de formação dos projetos democráticos nos ajuda a compreender suas trajetórias.
Na experiência brasileira, o (re)nascimento da democracia é recente e se deu nos anos 1980. Uma década tratada de forma equivocada como “perdida” nos anais da História que abraçaram o rótulo designado às sucessivas, e fracassadas, iniciativas econômicas e governamentais. Por estar envolta em uma embalagem de imagens de excesso, efemeridade e nostalgia, parece que nada dela devia ser levado a sério. Diante dos últimos episódios políticos, no entanto, hoje parece que pagamos o preço por não termos compreendido a complexidade do contexto de criação da nossa jovem democracia.
A partir da canção Fullgás, composta por Marina Lima e Antonio Cicero, e lançada durante as campanhas pelas Diretas Já (1983-1984), marco do processo de abertura democrática, tracemos algumas linhas de interpretação dos sentidos envolvidos na criação da democracia brasileira. Se a Música Popular Brasileira (MPB), gestada nas décadas de 1960 e 1970, foi uma das principais expressões de resistência à ditadura militar, a nova e jovem geração de músicos da década posterior, sobretudo aquela alinhada ao rock e ao pop nacional, seria a trilha sonora da redemocratização.
A princípio, Fullgás, de versos como “meu mundo você é quem faz” e “onde quer que você vá, é lá que eu vou estar”, poderia ser lida apenas como uma radiofônica canção de amor. Declarando-se a um objeto de desejo, um eu lírico expressa seus sentimentos em jogo entre um “eu” e um “você”, marcados reiteradamente ao longo dos seus pouco mais de quatro minutos. À mínima suposição da ausência desse outro, o mundo se vê estranho: aquele que se ama lança tudo que há (“música, letra e dança”); é com ele que se faz “tudo de lindo”. Contudo, os versos finais, que são os únicos que se repetem ao longo da corrida canção, apontam para uma dimensão política que ganha sentido à luz da transição democrática pela qual o Brasil passava: “você me abre seus braços / e a gente faz um país”. A adesão política ficava ainda mais clara no seu videoclipe, quando a câmera focava a camiseta de Marina onde se podia ler “Brasil, urgente, diretas pra presidente”.
A democracia, no contexto brasileiro, substituiu os 21 anos de ditadura militar, que começou a ruir oficialmente em 1979 com o anúncio oficial de uma transição “lenta, gradual e segura” e a promulgação da Lei da Anistia “ampla, geral e irrestrita”. No início da década, o atentado frustrado no Riocentro, no Dia do Trabalhador, assinado pela ala conservadora do regime militar, juntamente à deflagração do “milagre econômico” inflamaram a opinião pública contra os militares, que, até então, obtinham apoio de grande parte da classe média e das elites financeiras alheias às violações do Estado.
Das greves gerais na região do ABC (São Paulo), lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva, às manifestações populares pelo retorno das eleições diretas, das quais participaram artistas e políticos de oposição, a movimentação política ganhava os espaços públicos. Após anos de obscurantismo, voltava a ser vislumbrada uma “trilha clara” para o Brasil “apesar da dor” (citando-se Nu com a minha música, lançada por Caetano Veloso em 1981). As fulgurações e as representações do que poderia ser o país eram retomadas por aqueles que outrora foram excluídos do discurso oficial e ufanista da ditadura militar. Entre os entulhos e desmanches do regime autoritário e o que ainda delinear-se-ia como um projeto democrático, havia espaço para se fazer um país, como sugere o derradeiro verso de Fullgás.
Os sentidos de fabulação, elaboração e construção de um país foram sintetizados por Marina Lima e Antonio Cicero no Manifesto Fullgás, veiculado no LP homônimo, cujos ideais seriam retomados pela cantora ao apresentar a música em seus shows, como mostra o registro presente no álbum Todas ao vivo (1986): “não existe caminho, viaduto, túnel, nenhum caminho direto que leve à plena realização de um país. Mas a gente tem que tentar. É preciso tentar. A gente vai ter que inventar o que nenhum outro país inventou”. Itamar Assumpção, que, a partir da canção, elaborou o show Fugaz, em 1984, igualmente explicitou um desejo coletivo de criação: “é isso que que o Brasil está precisando. A gente quer fazer um país. Cada um na sua atividade. O Brasil todo quer fazer um novo país. E isso é possível para todos. Só quem não demonstra essa dedicação ao original são os políticos. Na profissão que eles escolheram, eles não são tão criativos como nós, das outras áreas”. [nota 1]
Em paralelo às ideias de inventividade, a década de 1980 destacou os atravessamentos das forças políticas na constituição das subjetividades. Frutos das discussões pós-1968 – momento de renovação e efervescência intelectual, comportamental e cultural no Ocidente –, correntes filosóficas enxergavam o sujeito e suas singularidades como campos de potência política. Conjugada na primeira pessoa do singular, são o desejo e a individualidade que movem a campanha pelas Diretas Já: “eu quero votar para presidente”, frase de efeito usualmente escrita em uma tipografia manuscrita. O crescimento das discussões feministas, a inserção de pautas sobre as sexualidades e o fortalecimento do movimento negro à ocasião dos 100 anos da Abolição no Brasil mostraram as diferenças que, por anos, foram achatadas em nome de uma coletiva resistência política contra o autoritarismo da ditadura.
Nos limites da criação e da autonomia subjetiva, Marina e Cicero inventaram uma nova palavra. Fullgás, junção de “full gas” (expressão em inglês que indica o tanque cheio de um veículo) e “fugaz” (aquilo que é efêmero), alinhava e sintetiza o espírito do tempo dos anos da transição democrática. O termo aponta para a intensidade e a fugacidade das transformações que se davam em diversos níveis, potencializadas pelas incessantes inovações tecnológicas, pelo estabelecimento e fortalecimento dos processos de globalização e pelo discurso homogeneizado do consumo, vetores que atravessam o projeto de construção de um novo país.
Composta a partir de um loop de bateria eletrônica programado por Marina em um sintetizador japonês, uma das novidades do período, Fullgás desenvolve a linguagem internacional do pop, desenraizada de territórios e voltada ao consumo em massa. A linha de baixo, inspirada em Billie Jean, de Michael Jackson, emoldura os sintéticos e elaborados versos de Antonio Cicero, que se assemelham a slogans, formato publicitário que condensa o máximo de significados em sua síntese textual. Na medida em que se volta ao que estava sendo produzido internacionalmente, a canção apaga qualquer tensão entre o local e o global e acaba compartilhando um dos ideais da visão liberal que se estabeleceria fortemente na década.
No mundo de faz de conta conjugado pelas expressões do consumo, da publicidade e do liberalismo, onde “nada de mal nos alcança” e “nada machuca nem cansa”, qualquer possibilidade de desprazer é excluída. Para sustentar a fantasia da soberania do prazer, duas drogas seriam protagonistas da década: a cocaína, substância psicoativa que estimula a produção de serotonina, dopamina e noradrenalina; e a fluoxetina, “pílula da felicidade” comercializada, a partir do final da década, pela empresa farmacêutica Lilly sob o nome comercial Prozac. Nesse sentido, será coincidência a rima entre “feliz” e “país” nos versos finais de Fullgás?
Àquela altura, enfim, parecia chegar a felicidade esperada e profetizada pelas canções políticas das décadas de 1960 e 1970. Em contraposição à sombrias décadas que a antecederam, quando reinaram os “dias de frio” (como sugerido em Fullgás), os anos de transição democrática foram marcados pelos signos da luminosidade. Pro dia nascer feliz (Cazuza/ Frejat), hit da banda Barão Vermelho, uma das pioneiras expressões do rock que representaria parte de uma nova geração jovem que promovia uma revolução comportamental inicialmente alienada a questões políticas, cumpria o anúncio de Apesar de você (1978), de Chico Buarque: “você vai se amargar / quando o dia raiar / sem lhe pedir licença”. Nesta mesma direção, o sol estampado nas camisetas amarelas das manifestações pelas eleições diretas foi pensado pelos publicitários de Curitiba responsáveis pela comunicação visual da campanha. O raiar também surgiria em Pra começar (1986), de Marina e Cicero: ”se tudo caiu / que tudo caia / pois tudo raia”.
Apesar da euforia transbordante da “festa da democracia”, termo-slogan empregado diversas vezes pela cobertura jornalística realizada no período, o processo de redemocratização seria marcado por vários percalços até a promulgação da Constituição, em 1988. Embora tivesse grande força dentro do Congresso, a Emenda Dante de Oliveira, que garantiria o restabelecimento das eleições diretas, não foi aprovada. A eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 – uma alternativa para a retomada do poder popular – foi frustrada pelo seu falecimento nas semanas iniciais de seu mandato E, por fim, as sessões constituintes, entre 1987 e 1988, escancararam os abismos e as fissuras de um Brasil continental.
Passados os anos fullgás de transição democrática, vertiginosamente marcados pela intensidade e pela fugacidade das transformações que tomaram lugar nos campos da política, das subjetividades e do consumo, quem, de fato, ocupou as posições dominantes que possibilitaram a criação de um país? Não se trata de perguntarmos qual o perfil daqueles que foram às ruas pelas eleições diretas ou que torceram pela democracia, mas, sim, indagar sobre aqueles que conduziram o processo político e institucional nas instâncias executivas e legislativas. Um breve levantamento de dados nos dá algumas pistas das extensões da questão. Se olharmos atentamente as sessões de trabalho para a Constituição de 1988, apenas 4% de um quórum superior a 550 constituintes foi composto por mulheres. Quando realizamos um recorte racial, de políticos negros, havia menos de 2%. Diante dessas limitações, que não representam a pluralidade social do Brasil, a gente fez uma democracia a partir de quais bases?
NOTA
1. Declaração publicada na reportagem “Itamar Assumpção, a todo vapor”. Folha de S.Paulo, 29 de agosto de 1984, p. 40.
Hora
Para
Alex Varella
Ajax não pede a Zeus pela própria
vida mas sim que levante as trevas
e a névoa a cobri-lo e aos seus em Troia:
que tenha chegado a sua hora
sim! Mas não obscura: antes à plena
luz do dia e sua justa
glória.
CICERO, Antonio. "Hora". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012
E tu, meu coração
E tu, meu coração, por que bates
Feito um vigia melancólico
observo a noite e a morte
Et toi mon cœur
Et toi mon cœur pourquoi bats-tu
Comme un guetteur mélancolique
j'observe la nuit et la mort
APOLLINAIRE, Guillaume. "Et toi mon coeur". In: ENZENSBERGER, Hans Magnus (org.). Museum der modernen Poesie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2002.
Auden e Yeats
Eu exaltaria Auden,
viajante atormentado,
dialético e bizarro,
e lhe faria uma ode
se a tanto minha perícia
e minha audácia bastassem.
Ou quem sabe, Yeats, numa tarde
feito esta, tão vadia,
possa a leitura da tua
poesia, pura Musa,
inspirar a minha arte
se eu lhe implorar: Poesia,
na prisão destes meus dias
ensina-me a elogiar-te.
CICERO, Antonio. "Auden e Yeats". In:_____. Porventura. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Falar e dizer
a Waly Salomão
Não é
possível que portentos não tenham ocorrido
Ou visões
ominosas e graves profecias
Quando nasci.
Então nasce o
chamado
Herdeiro das
superfícies e das profundezas então
Desponta o
sol
E não
estremunha aterrado o mundo?
Assim à idade
da razão
Vazei os
olhos cegos dos arúspices e,
Fazendo rasos
seus templos devolutos,
Desde então
eu designo no universo vão
As coisas e
as palavras plenas.
Só
Com elas
Recôndito e
radiante ao sopro dos tempos
Falo e digo
Dito e decoro
O caos
arreganhado a receber-me incontinente.
CICERO, Antonio. "Falar e dizer". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1966.
As Musas, a Memória e o esquecimento
Vivemos
numa época que – com a Internet, os computadores, os celulares, os tablets etc. – experimenta o desenvolvimento
de uma tecnologia que tem, entre outras coisas, o sentido manifesto de acelerar
tanto a comunicação entre as pessoas quanto a aquisição, o processamento e a
produção de informação. Seria, portanto, de esperar que, podendo fazer mais
rapidamente o que fazíamos outrora, tivéssemos hoje à nossa disposição mais
tempo livre. Ora, ocorre exatamente o oposto: quase todo o mundo se queixa de
não ter mais tempo para nada. Na verdade, o tempo livre parece ter encolhido
muito.
Acontece
que a poesia exige mais tempo livre do que a fruição de obras pertencentes a
outros gêneros artísticos. Não precisamos nos concentrar numa canção ou numa
pintura ou numa escultura ou na arquitetura de um prédio para que elas nos
deleitem. Podemos apreciá-las en passant.
Não é assim com um poema escrito. Quem lê um poema como se fosse um artigo, um
ensaio ou um e-mail, por exemplo, não é capaz de fruí-lo. Para apreciar um
poema é necessário dedicar-lhe tempo.
E como
ninguém tem tempo para quase nada, por que perder tempo com algo que nada
ensina de útil? A menos que o faça para se distrair um pouco do trabalho. Mas,
como distração, não são poucos os que hoje afirmam que a poesia ficou para
trás: que foi superada pelos joguinhos eletrônicos, por exemplo, que exigem
menos pensamento e teriam mais a ver com o ritmo da vida contemporânea.
Pois bem,
penso o contrário. É exatamente numa época de aceleração desembestada que a
poesia mais se faz desejável. Por quê? Porque o que me parece inteiramente
indesejável é a aceitação passiva da inevitabilidade do encolhimento do nosso
tempo livre.
A verdade
é que, se praticamente não temos mais tempo livre, isso ocorre porque
praticamente todo o nosso tempo – mesmo aquele que se pretende livre – está
preso. Preso a quê? Ao princípio do trabalho, ou melhor – inclusive,
evidentemente nos tais joguinhos eletrônicos –, ao princípio do desempenho. Não
estamos livres quase nunca porque nos encontramos numa cadeia utilitária em que
parece que o sentido de todas as coisas e pessoas que se encontram no mundo, o
sentido inclusive de nós mesmos, é sermos instrumentais para outras coisas e
pessoas.
Nessas
circunstâncias, nada e ninguém jamais vale por si, mas apenas como um meio para
outra coisa ou pessoa que, por sua vez, também funciona como meio para ainda
outra coisa ou pessoa, e assim ad infinitum. Pode-se dizer que
participamos de uma espécie de linha de montagem em moto contínuo e vicioso, na
qual se enquadram as próprias “diversões” que se nos apresentam imediatamente.
Em tal
situação, parece-me que uma das poucas ocasiões em que conseguimos romper a
cadeia utilitária cotidiana e nos libertarmos da prisão utilitária do mundo do
desempenho é quando nos deixamos levar a viajar por uma obra de arte: a viajar,
por exemplo, através de um poema. Ao viajar por um poema, deixamos de lado o
princípio do desempenho e apreendemos a vida em si.
As Musas
eram tidas pelos gregos como filhas da deusa Memória. Normalmente, supõe-se que
isso signifique que elas guardam o passado. Penso que a leitura dos poetas
gregos mostra o contrário. O que o fato de que as Musas sejam filhas da Memória
significa é que aquilo que elas produzem seja inesquecível: seja memorável.
Assim são os grandes poemas. É isso que permite que, por exemplo, o poeta romano
Horácio (que, aliás, estudou em Atenas) possa dizer, na sua Ode III.xxx, (que se encontra também em latim aqui: http://antoniocicero.blogspot.com/2010/02/carpe-diem-o-seguinte-artigo-publicado.html) sobre
sua poesia:
Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o Pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
Melpómene, com o délfico louro.
Templo
Para que as
Musas residentes lá no Olimpo
façam meus
poemas palavras que desejem,
eu que, à sombra
de um deus muito mais triste, habito
a fralda de
uma montanha muito mais verde,
declaro não
serem os versos que escrevo obras
de arte mas
bases, paredes e donaires
de templos
construídos com mãos e com sobras
de paixões,
mergulhos, fodas, livros, viagens
(precário
material com o qual é elaborado
tudo o que
merece aspirar a eterna glória)
e -- ainda
com os seus andaimes -- os consagro
a elas, às
filhas alegres da Memória,
deusa que não
é, como querem crer os néscios,
a guardiã do
passado, com o qual pouco
se importa,
mas antes a que nos oferece o
esquecimento
quando canta o imorredouro.
CICERO, Antonio. "Templo". In:_____. Guardar. Rio de Janeiro: Record, 1996.