a caminho
"Abriu-se majestosa e circunspecta
sem emitir um som que fosse impuro"
Carlos Drummond de Andrade
estava a caminho: canoa
comprida-boa partindo
a sombra, a meio-e-meio, no rio
silêncio-cutelo e, certo,
o dia aberto seu ventre
(azáfama de zangões urgentes)
cego
estava a caminho e era
tido por meu o rio
sem costas nem frente,
a brio
inteirado em silêncio
por dentro uma chusma de insetos
vazante, na beira, o estrépito
— meu enxame de equívocos
estava a caminho, e na curva
as águas fendidas as duas
águas se apartam, súditas
do incêndio, das espadas,
do verde (sem acaso)
ruivo que picava
as folhas do gravatá
o gravatá — o suave
súbito roçar de
dedos (vermelho-
acicate) no umbigo
dos nimbos, acordar
a paisagem
o gravatá — seu recato:
ritmo intacto, enflorado,
servindo de pasto
para besouros, girinos
bebedor de símios
o gravatá — o severo
cerne,
o fero centro que ergue
verde-negro, estrela
de silêncio
e precisão
aqui a água turva,
de mistura com raízes
a curvatura da terra
empena,
oblitera a íris
aqui o rio dobra, a nau
soçobra, a cuia escura
do céu emborca
uma água dura,
às catadupas,
cai — fustiga como um pai
resta o caminho — o sombrio
seguir-do-rio (tateio
à guisa de aprendiz)
dedo cego, palavra‑
(sem rasgos na pele da água)
de-superfície
mudo, vazio,
cingido pela água difícil,
braçando no lodo, sigo,
às escuras,
a mão nua abrindo o fio
(começa comigo) a
costura invisível
do rio
ROQUETTE-PINTO, Claudia. "a caminho". In:_____. Zona de sombra. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.