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18.9.13

Chega de fetiche





O seguinte artigo meu foi publicado na segunda-feira, 16 de setembro, em O Globo, na coluna de colunistas convidados intitulada "O Estado da Arte" (http://oglobo.globo.com/cultura/chega-de-fetiche-9969532#ixzz2fGcou558): 


Chega de fetiche

RIO - Salta aos olhos a pluralidade formal da poesia contemporânea. Poemas concretos, sextinas, poemas em versos livres, sonetos, poemas em prosa, haikus... Para os poetas contemporâneos, não há nem tabus nem fetiches. Em princípio, nada é a priori exigido ou proibido.

Não me surpreende, porém, que haja versejadores e críticos que, rejeitando tal abertura, sejam nostálgicos do mundo fechado e tradicionalista, e condenem tudo o que não se conforme a padrões estabelecidos. Sempre haverá reacionários

O que acho estranho é o modo, digamos, pseudoprogressista de pensar daqueles que, no polo oposto, acreditam que a pluralidade formal seja efeito de uma espécie de pós-modernismo retrógrado ou de má-fé daqueles que valorizam a tradição acima da invenção.
A meu ver, como já observei em diferentes artigos, a pluralidade formal não é efeito de nenhum movimento “pós-modernista”. Trata-se, ao contrário, da plena realização da modernidade, no campo da poesia.

Pode-se dizer que tanto as culturas pré-modernas quanto o mundo incipientemente moderno haviam fetichizado (isto é, imaginariamente atribuído poderes mágicos a) determinadas formas poéticas, tais como a métrica, a rima e o verso, convencidos de que, fora delas, não era possível produzirem-se poemas de verdade.

De maneira geral, as vanguardas modernas, ao realizarem obras que ao longo do tempo foram reconhecidas como efetivamente poéticas, apesar de não se conformarem às formas fetichizadas, provaram o caráter meramente convencional de tais formas.

Por outro lado, se, tradicionalmente, as formas convencionais haviam sido tomadas como as únicas admissíveis na poesia, os poetas vanguardistas passaram a tomá-las como as únicas formas inadmissíveis — verdadeiros tabus — na poesia. Sendo assim, pode-se dizer que, ao fazê-lo, esses poetas mantiveram tais formas fetichizadas, tendo apenas invertido o valor desse fetiche.

Com o tempo, porém, tendo aparecido poemas modernos e de grande qualidade que empregavam formas tabuizadas como sonetos — lembro, por exemplo, os de Carlos Drummond de Andrade (que, aliás, havia sido um poeta vanguardista) no livro “Claro enigma” — desmoralizou-se também esse fetiche negativo.

Pois bem, tanto, por um lado, o questionamento e a rejeição vanguardista do fetichismo das formas tradicionais quanto, por outro, o questionamento e a rejeição pós-vanguardista dos tabus vanguardistas fazem, evidentemente, parte do ceticismo moderno em relação a toda tese que não passa de preconceito, isto é, que não é capaz de se sustentar racionalmente. Por isso, afirmo que resulta da plena realização da modernidade no campo da poesia a consciência de que não há formas — experimentais ou tradicionais — que sejam, em princípio, incompatíveis com a produção de um poema.

Voltando aos “pseudoprogressistas”, inimigos da pluralidade formal contemporânea, lembro de ter lido textos que lamentam que as formas poéticas tenham deixado de ser valores que cobrem “adesão” à experiência histórica de sua época. Tais textos incorrem exatamente no fetichismo formal de que já se livraram quase todos os poetas contemporâneos. O fato é que as formas poéticas jamais cobram adesão nenhuma. Um soneto tinha um sentido para Petrarca, outro, completamente diferente, para Ronsard, e um terceiro, também completamente diferente, para Góngora; e o mesmo pode ser dito, em relação a seus predecessores, de um soneto de Baudelaire ou de Mário de Andrade ou de Drummond, ou de Paulo Henrique Britto. Ademais, o soneto de cada um deles tem a ver com a respectiva época, e não com as dos seus antecessores.

A verdade é que, em cada poema, tudo é conteúdo: e tudo é forma. É entre formas que se repetem e formas que não se repetem que se criam todos os poemas. A sintaxe do poema, seu ritmo, sua melodia, as relações paronomásticas das palavras que o compõem e as próprias palavras são formas/conteúdos. Em relação a tais formas, as formas fixas não possuem nenhum privilégio. Trata-se apenas de formas que foram catalogadas porque se repetiram com frequência. Nesse sentido, elas se assemelham às próprias palavras da língua. No final, o que conta é a totalidade das formas/conteúdos que, interagindo entre si, produzem os objetos absolutamente singulares que são os poemas. Dado que não há fórmulas nem receitas para criar tais objetos, todos os poemas bons podem ser considerados experimentais.

Além disso, muitos poetas são capazes de usar as formas fixas simplesmente na qualidade de autoimposições formais arbitrárias que, contrapondo-se à espontaneidade criativa, imponham tensões estimulantes ao processo da produção do poema. Tal é o sentido, por exemplo, da afirmação de João Cabral de que a rima é necessária, pois, “para se criar algo, é necessário um esforço. Um obstáculo diante do ser o obriga a muito mais esforço e faz com que ele atinja o seu extremo”. É muitas vezes com tal propósito que os poetas contemporâneos usam as formas fixas.

Sugiro, portanto, não apenas aos reacionários, mas sobretudo aos pseudoprogressistas, que abandonem seus preconceitos e observem melhor como trabalham e o que produzem os poetas contemporâneos.



Veja também, sobre poesia, a entrevista que concedi ao jornalista Arnaldo Bloch, em http://oglobo.globo.com/videos/t/todos-os-videos/v/antonio-cicero-fala-sobre-o-que-e-a-poesia-hoje/2822935/.


1.6.08

Ainda a vanguarda

O seguinte artigo foi publicado na minha coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 31 de maio de 2008:


FSP, 1 de Junho de 2008
ANTONIO CICERO


Ainda a vanguarda

EM ARTIGO que aqui publiquei em 3 do corrente, afirmei que, tendo cumprido a sua função, a vanguarda acabou. Não cheguei, porém, a explicar que uma das principais razões pelas quais penso assim é que estou convencido de que o feito principal da vanguarda enquanto vanguarda não foi de natureza propriamente estética ou artística, mas cognitiva e, mais precisamente, conceitual.

Em outras palavras, não é que, a partir da experiência da vanguarda, a arte tenha ficado melhor do que era, mas que, sobre ela, se aprendeu alguma coisa que não se sabia antes. Deu-se um aprendizado, um progresso cognitivo após o qual se passou a saber algo fundamental, antes não plenamente reconhecido, sobre a natureza da arte.

Com certeza o divórcio mais célebre entre o feito conceitual e o feito estético de uma obra não se deu no campo da poesia, mas no das artes plásticas. Refiro-me, é claro, a "Fontaine", o urinol que Marcel Duchamp pôs de cabeça para baixo e expôs como arte. Como se sabe, a partir de "Fontaine" e do conceito correlato de ready-made, foi profunda e amplamente posto em discussão o próprio conceito de arte. Ou seja, uma peça de valor artístico ou estético praticamente insignificante foi capaz de ter uma importância conceitual incalculável.

Ora, evidentemente, o valor puramente conceitual de uma coisa está naquilo que ela ensinou, e não nela própria. É claro que nada impede que uma obra seja importante tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista conceitual. Se o seu valor é exclusivamente conceitual, porém, ela não passa de veículo para o que ensina. Logo que o que ensina é aprendido, ela passa a ser mero exemplo do que ensinou, dotado, no máximo, de um valor histórico.

Em outras palavras, uma vez realizado o feito conceitual de uma obra puramente cognitiva, ela se torna supérflua. Assim como quem quiser aprender a lei da gravidade fará melhor lendo um livro-texto de física clássica do que os "Principia" de Newton, cujo texto original tem hoje um valor meramente histórico, assim também mais vale ler sobre "Fontaine" e ver as suas fotos do que contemplar uma das suas réplicas (a obra "original" desapareceu há muito tempo). O mesmo jamais poderia ser dito de uma obra dotada de valor estético, como "Les Demoiselles d'Avignon", de Picasso, ou o soneto "Salut", de Mallarmé, cujas presenças são insubstituíveis.
Supor que uma obra importante do ponto de vista cognitivo fosse necessariamente importante do ponto de vista artístico ou estético foi um equívoco comum da vanguarda e dos seus admiradores.

Por outro lado, não perceber ou negar que uma obra estética ou artisticamente insignificante ("Fontaine" é o caso clássico) pudesse ter uma grande importância conceitual e histórica foi o erro dos detratores da vanguarda.

Não só o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi primariamente conceitual, mas o que com esse feito se aprendeu pode ser enunciado em poucas palavras. Aprendeu-se, de uma vez por todas, não ser possível determinar nem a necessidade nem a impossibilidade -em princípio- de que a arte empregue qualquer forma concebível. Abriu-se para ela a perspectiva de uma infinidade de caminhos possíveis, porém contingentes. O "gênero" artístico revelou-se como convencional e perdeu toda a importância. A obra de arte não se vale de direitos hereditários ou de prerrogativas de família. Isso não significa que todas as obras se equivalham, mas que cada uma é antes um indivíduo do que um membro de uma espécie ou gênero e que é enquanto indivíduo que exige ser considerada.

Ora, o caminho até essas descobertas -que, no fundo, são o desdobramento de uma só- já foi cumprido e não tem como se estender. Não é possível ir "além" ou voltar "aquém" delas. Nesse sentido, não há mais vanguarda. O seu percurso já foi cumprido e nenhum artista ou crítico moderno pode dar-se ao luxo de ignorá-lo.

No artigo mencionado, eu já havia observado que se, etimologicamente, vanguarda é, como se sabe, o destacamento que, progredindo à frente do grosso do exército, abre caminho para este, de modo que, analogamente, dizem-se vanguarda também os artistas que, progredindo à frente dos demais, abrem caminho para estes, então essa designação só é de fato inteiramente adequada aos artistas cujo progresso não pode deixar de ser reconhecido e assimilado pelos demais.

Tal é o caso do progresso cognitivo que acabo de descrever que, sendo tão irrepetível quanto a descoberta da lei da gravidade, não pode mais ocorrer na arte experimental contemporânea.

7.5.08

Entrevista a Daniela Name

Dada a discussão sobre o meu artigo "O sentido da vanguarda", resolvi postar a versão integral da entrevista que dei a Daniela Name e que foi publicada, com alguns cortes, em O Globo, em 24/07/2002:



Antonio Cicero mistura cidades e palavras num mundo a se descobrir


1- "A cidade e os livros" parece ser um livro que tem mais unidade, que é mais orgânico do que "Guardar" - e aí não vai nenhum juízo de valor dos poemas. Vc concorda com isso? Por quê?

Concordo. O que ocorre é que “Guardar” foi o meu primeiro livro de poesia. Cerca de 30% dos seus poemas eram novos; os outros haviam sido escritos em diferentes épocas de minha vida. O critério que usei para selecionar cada poema foi o sentimento de que ainda hoje poderia escrevê-lo e me orgulhar de assiná-lo. Entretanto, o fato é que só os 30% novos haviam sido feitos para integrar um livro. Já os poemas de “A cidade e os livros” foram feitos nos últimos quatro anos, e, com uma ou outra exceção, feitos para integrar esse livro.

2- Um dos aspectos mais interessantes do livro - e o Wisnik o destaca lindamente na orelha - é a fusão que você faz entre os mitos clássicos (Prometeu, Ícaro, Narciso) e a vida de todo dia, das ruas cariocas, da praia, das angústias presentes. Como fazer esta mistura? Como lidar com todo este patrimônio clássico, que é berço da nossa palavra, nosso teatro e nossa filosofia de um jeito que transmita frescor e uma certa autenticidade?

Para mim, a literatura clássica constitui grande parte das idéias e do vocabulário com os quais pensamos e imaginamos o mundo em que vivemos. Por direito, o mundo clássico pertence aos brasileiros, assim como nos pertence a língua portuguesa. Como diz Ezra Pound, “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. A grande poesia grega e latina está viva, mas está viva por tornar mais vital a minha própria vida (e a vida de todos aqueles que amam as línguas e a literatura clássicas), no século XXI.

3- O Centro do Rio e suas livrarias estão presentes em "A cidade..." em muitos poemas, inclusive na dedicatória à dona Vanna. Queria que você comentasse este aspecto labiríntico da cidade, que se confunde com o labirinto da própria construção de um texto. Falasse também do aspecto de libertação X claustrofobia que há nos labirintos de ambos os casos e de como, tantos anos depois de ter vindo para cá, vc enxerga hoje o Rio-labirinto. (nossa, que pergunta tagarela!!!)

Na verdade, eu sou carioca, do Leblon. Mas, quando criança, fora o Leblon e Ipanema, o resto da cidade era off-limits, para mim. O que descrevo no poema “A cidade e os livros” é a descoberta de que o centro da cidade – e, por extensão, todo o resto desta e das demais cidades do mundo – era um território aberto à minha exploração: que tudo isso me pertencia, por direito, assim como, por direito, me pertencia tudo o que havia sido escrito. Mas acho que os poemas do meu livro falam melhor sobre as coisas que você me pergunta do que eu poderia fazê-lo aqui.

4- Você usa soneto, decassílabo, odes, enfim, recorre a formas "clássicas" de fazer poema. Como se dá o processo de escolha da forma, que é tudo num poema? E como esta herança clássica se relaciona com a confusão e uma certa decadência contemporânea, que também aparece no livro?

Para falar a verdade, não penso que o mundo esteja em decadência, nem tenho nada contra a “confusão” contemporânea. Estou longe de pensar que o mundo seja velho ou que tudo já tenha sido dito, ou que o melhor já tenha passado. Como diz um verso de um poema desse livro, “ontem nasceu o mundo”. Mil vezes pior do que as “confusões” que observamos são as reações religiosas e políticas a elas, as tentativas de voltar atrás e de “organizar” ou “simplificar” o mundo. Essas reações incluem tanto o terrorismo dos fundamentalistas quanto a violência dos ideólogos da guerra – também religiosos – que tomaram o poder nos Estados Unidos. É essa gente terrível que, querendo reprimir a liberdade do mundo moderno, o acusa de estar em decadência.

Quanto à questão da forma, é verdade que, muitas vezes, uso formas tradicionais. Entretanto, não as idolatro. Em si, nenhum formato é melhor do que nenhum outro. Tanto a invenção de um novo formato quanto o uso de um formato tradicional se justificará ex post facto, caso o poema, estando pronto e bem realizado, retroativamente pareça tornar necessário o formato em que foi feito: embora necessário apenas para o poema individual em questão. A poesia é o que transforma o arbitrário em necessário. Gosto das formas fixas porque me estimulam. Acho o soneto conveniente principalmente tem quatorze versos de igual tamanho, o que, em geral, é muito adequado para os meus projetos líricos.

Entretanto, os formatos tradicionais são, na verdade, dispositivos dotados da propriedade de produzir determinados efeitos. A métrica dos versos, por exemplo, é um método que propicia a obtenção de certos ritmos. Assim, o decassílabo tende a ser acentuado na sexta e na décima sílabas (verso heróico), o que resulta em pentâmetros jâmbicos, ou então na quarta, na oitava e na décima sílabas (verso sáfico), o que produz dois dijambos e um jambo. Pois bem, para mim, justamente tais efeitos tornaram-se excessivamente gastos e, por isso, enjoativos. Para evitá-los, pratico freqüentemente o enjambement e uma pontuação que quebra internamente os versos. Desse modo, eles se tornam mais sujos e menos previsíveis. Assim também as rimas, quando perfeitas, são excessivamente calculáveis e restritivas. Uso, por isso, rimas assonantes. Meus sonetos são, portanto, desnaturados.

Contudo, quero ressaltar que a minha intenção, ao desnaturar os sonetos, não é conspurcar o seu formato. Longe disso: desnaturo-os somente na medida em que essa é a única maneira pela qual torno interessante, para mim, escrevê-los. Faço uso dos sonetos porque, ao contrário tanto dos que os idolatram quanto dos que os vilipendiam, não os tenho como fetiches. Sou justamente contra a associação automática de qualquer soneto, ou de qualquer forma dada, a uma postura determinada: tradicionalista ou vanguardista. Todo o repertório formal e lingüístico já dado está disponível a meu uso e nenhum preconceito me obrigará a abrir mão do direito de fazê-lo, exatamente como não abro mão do direito de inventar novas palavras ou formas, se isso me parecer necessário.

5- Ainda sobre esta questão formal, "Guardar" trazia vários poemas que viraram letras de música. Isto também está acontecendo/vai acontecer com alguns versos de "A cidade..."? Você me contou que os primeiros poemas foram musicados por Marina sem a sua autorização. Mas hoje, como isso se dá?

Não escrevi esses poemas com a pretensão de que fossem musicados. Tenho a impressão de que a maior parte deles não seriam facilmente musicáveis, isto é, não ficariam bem numa canção. Isso não impede que um ou outro possa sê-lo. Alguns poemas de “Guardar” foram musicados depois de publicado o livro. Na verdade, um trecho do poema “Don’Ana” e o poema “Francisca” são recitados à maneira de um rap, no disco novo da Marina.

6- No livro, há Citera e Narciso, mas também personagens como Don'Ana e
Francisca. Como esta memória pessoal, no primeiro caso, e um certo ar de
crônica, no segundo, invadem o poema?


Don’Ana foi personagem da minha infância e Francisca, da vida inteira. Eu quis “guardá-las”, no sentido em que uso essa palavra no poema “Guardar”. Mas não sei explicar exatamente por que é que uma coisa entra num poema e outra não.

7- A filosofia de um lado, a poesia de outro. Duas vertentes clássicas quase opostas. Às vezes, pinta em vc uma sensação esquizofrênica? (risos) Foi a filosofia que retardou seu primeiro livro de poemas, já lançado numa idade madura?

Há, de fato, certa esquizofrenia na relação entre a poesia e a filosofia, tais como as concebo. São extremidades opostas do meu espírito. Lutam para se apossar do tempo que me é dado. Não me é fácil administrar esse tempo. Sou um palco microcósmico em que se representa a velha rixa entre a poesia e a filosofia. Quando me dedico a escrever sobre filosofia, não consigo escrever poemas, pois, para escrevê-los, é necessário pôr à disposição da poesia la crême de la crême do meu tempo livre: Ovídio o diz muito bem: vacuae carmina mentis opus, isto é, os poemas são obra de uma mente desocupada; e para que o creme do creme do meu tempo livre esteja disponível à poesia, não posso estar preocupado com questões filosóficas.

Embora, desde a adolescência, eu escrevesse tanto em prosa quanto em verso, nada do que fazia parecia-me estar à altura dos critérios que eu mesmo me impunha, isto é, à altura de mim mesmo. O destino de quase todos os meus escritos era o lixo, após terem passado por uma gaveta qualquer. Mesmo sabendo que, em parte, isso se devia ao medo de me definir ou limitar, isto é, ao medo de escolher uma realidade finita no lugar da potencialidade infinita, e soubesse que como diz Hegel, “quem tem demasiado desprezo pelo finito não chega a realidade alguma, permanece no abstrato e consome-se a si próprio”, eu não conseguia agir de outro modo.

Há também uma razão, digamos, conjuntural para a minha relutância. É que, no Brasil, no terreno da poesia, a vanguarda mais consistente era a concretista, que, no seu “Plano-Piloto”, havia dado por encerrado o “ciclo histórico do verso”. Ora, por um lado, ideológica e intuitivamente, eu queria ver o mundo com olhos novos e tinha horror à mistificação conservadora dos gêneros e das formas tradicionais, de modo que me identificava com a vanguarda na vontade de fazer tabula rasa dos preconceitos e das convenções; por outro lado, pelo feitio da minha sensibilidade, eu preferia e ainda prefiro a poesia discursiva e, em particular, a poesia feita em versos. Por essas razões, não me identificava totalmente nem com os concretistas (embora admirasse então e admire ainda a primeira geração da poesia concreta, isto é, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignattari) nem com os seus inimigos. Havia também, é claro, a poesia marginal, que tendia a confundir poesia e vida; mas essa jamais me interessou, pois, para mim, era claro que a poesia não era vida, mas escritura, isto é, produção de formas. Tal isolamento no que diz respeito às tendências dominantes da poesia brasileira tornava-me ainda mais recalcitrante quanto a publicar.

Esse quadro começou a mudar a partir do momento em que minha irmã, Marina, pôs música em alguns poemas meus. Tendo sido musicado, um poema se transformava na letra de uma canção; ora, como eu sempre pensara em ser escritor, mas nunca em ser compositor, meus critérios eram literários e não se aplicavam imediatamente a canções. Esse fato me ajudou a contornar o meu superego. Além disso, como as canções não eram somente minhas, mas também da Marina, acontecia que, quando me dava por mim, elas já tinham sido cantadas perante outras pessoas, gravadas etc. É verdade que, como as minhas letras eram, de certo modo, publicadas nas canções dos discos, isso me aliviou a angústia de não publicar um livro de poemas: o que me permitiu demorar ainda mais um pouco para publicar... Mas, por outro lado, eu tinha, por assim dizer, perdido o cabaço. A partir daí, comecei a publicar em periódicos, e o futuro livro me apareceu no horizonte das coisas realmente exequíveis.

Hoje penso que, independentemente da música, eu devia ter exercido menos autocensura e publicado mais poemas mais cedo. Dei-me conta de que, enquanto a gente não publica, tende a sempre reescrever as mesmas peças. Entre outras coisas, o poema “Guardar” exprime essa percepção. No entanto, eu detestaria que alguém tivesse recolhido os textos que joguei fora, e jamais permitiria que algo que eu mesmo não tivesse destinado à publicação fosse publicado agora ou no futuro.

8- Em "Merde de poète", você faz graça com a poesia "visceral". Sua poesia parece estar mais ligada ao clássico e a uma linhagem do modernismo maduro brasileiro (Cabral, Drummond) do que às chamadas vanguardas. A experimentação dos anos 50 ficou datada? Ou passou a haver outras formas de se experimentar?

No Brasil, a poesia que se quer “visceral” é, de certo modo, o oposto da poesia praticada pela vanguarda mais forte, que era, ao contrário, construtivista. É da poesia “visceral” que não gosto. Gosto de poesia construída.

Acho que, de certo modo, toda poesia boa é experimental, pois ela tenta exceder os limites do que se considera possível, ela força ou explode os limites do possível. Isso não surgiu com a época moderna: toda boa poesia sempre foi assim. A partir do uso da palavra ácros pelo poeta Calímaco, chamo esse tipo de ambição de “acroísmo”.
Num sentido mais estreito, diz-se “poesia experimental” aquela que experimenta com novas formas, linguagens, veículos, suportes etc. Chamo esse exercício de poesia de “experimentalismo”. Penso, por exemplo, em Eduardo Kak, que usa a holografia em alguns trabalhos. Pois bem, creio que sempre haverá lugar para o experimentalismo. Entretanto, o que torna um poema bom não é o fato de ser experimentalista. Um poema experimentalista pode ser bom ou ruim. E, evidentemente, nem toda poesia tem que ser experimentalista.

Finalmente, chama-se de “experimental” também a poesia da vanguarda. Mas, se toda vanguarda é experimentalista, nem todo experimentalismo é vanguardista. As vanguardas foram o experimentalismo que teve a função cognitiva – já cumprida com êxito – de revelar uma coisa muito importante sobre a natureza da arte.
Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram – e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas – foi o fato de que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, foram inventadas diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. Do século XVII ao XIX, essas formas estiveram institucionalizadas, principalmente pelas academias. No século XIX, elas se apresentavam como “naturais” e infringi-las parecia anti-natural. As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas “naturais” eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.

É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo. O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essenciais à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.

Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.

9- Faz parte da atividade do poeta uma certa superexposição de sentimentos. Em "A cidade... " você volta a fazer declarações rasgadas e despudoradas de amor. Como é amar em público?

Na realidade, de maneira geral, faço questão de manter a diferença entre o que é público e o que é privado. Tenho horror a essa mania contemporânea de se falar em público sobre coisas íntimas.
No entanto, sou um servo da poesia. Se ela me ordena falar de amor, eu obedeço.

10 - Esta última pergunta vai além da entrevista. Vc tb é leitor de Lewis
Carroll? Sou fanática!!!


Sim. Desde criança até hoje adoro Lewis Carroll.

22.3.08

Jorge de Sena: sobre os "Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena"

O poeta Gastão Cruz, no ensaio “Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou ‘a arte de ser moderno em Portugal’”, através do qual tomei conhecimento dos “Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena” que aqui postei ontem, cita as seguintes palavras de Jorge de Sena sobre esses mesmos sonetos:

"Quanto aos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena, que encerram e coroam este volume, e são decerto uma supra-metamorfose, limitar-me-ei a transcrever o que, de uma carta minha, foi publicado no nº. 2, 2º. trimestre de 1962, de 1NVENÇÃO, revista de vanguarda, de São Paulo, em que esses sonetos foram primeiro publicados pelos meus amigos concretistas:

‘...trata-se de uma experiência [...] para sugerir mais amplamente do que a própria metáfora ambígua, com as suas fixações de sentido poderia fazer. [...]
O que eu pretendo é que as palavras deixem de significar semanticamente, para representarem um complexo de imagens suscitadas à consciência liminar pelas associações sonoras que as compõem. Eu não quero ampliar a linguagem corrente da poesia; quero destruí-la como significação, retirando-lhe o carácter mítico-semântico, que é transferido para a sobreposição de imagens (no sentido psíquico e não estilístico), compondo um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação. No último soneto, a maior parte das palavras não é inventada, mas os epítetos gregos de Afrodite. E creio ser curioso como, ligeiramente transformados na acentuação (alguns), igualmente contribuem para a criação de uma atmosfera erótica, concreta, cuja concretização não depende do sentido das palavras, mas da fragmentação delas integrada num sentido mais vasto, evocativo e obsessivo. [...] E é preciso que se liquide de uma vez a ilusão de que a ficção pertence à poesia como tal: só pertence à poesia genericamente considerada como criação e construção de estilo. A poesia como criação de linguagem é supra-real, isto é, engloba a realidade e a sua mesma representação linguística.’”

De: CRUZ, Gastão. “Jorge de Sena na poesia do seu tempo ou ‘a arte de ser moderno em Portugal’”. In: Relâmpago. Revista de poesia. Lisboa, nº 21, outubro de 2007, p.33-54.