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29.9.07

Eduardo Giannetti: Palácio subjetivo aflora no carnaval

É inesquecível o seguinte artigo do Eduardo Giannetti:


Palácio subjetivo aflora no carnaval

Esqueço rapidamente quase tudo a que assisto no cinema e TV. Em alguns casos, chego ao extremo de nem lembrar se já teria visto ou não algum filme ou programa a que esteja assistindo. É uma experiência inconfortável de perda de registro e que se torna esmagadora quando me acontece de encontrar alguém que resolve contar de forma minuciosa, sadicamente detalhista, algo que tenha visto tempos atrás. A sensação que fica é a de que padeço de algum tipo de amnésia aguda localizada.
Mas nem tudo, felizmente, desaparece sem vestígio no ralo da memória. Foi o que pude constatar com certo alívio, num quarto de hotel em Teresina, enquanto assistia ao especial sobre o Brasil (The giant awakens) exibido pela rede CNN há poucos dias [fevereiro de 98].
O programa dividiu-se em blocos didáticos e previsíveis. Primeiro, a situação econômica do país e as nossas mazelas e iniqüidades sociais; depois, um passeio pela floresta amazônica entremeado de alertas sobre a devastação ecológica; e, por fim, um apanhado de manifestações da cultura popular: estádios de futebol vibrantes, grupos jovens de percussão, praias apinhadas de hedonistas e os preparativos do carnaval. A última cena exibia uma menina pobre, de três ou quatro anos de idade, ensaiando feliz da vida e cheia de graça os seus primeiros passos de samba ao som de um tamborim.
O especial da CNN não trouxe novidades. Foi um programa correto, suficiente para embalar o tédio e preencher a janela na grade horária, mas essencialmente rotineiro e descartável. Um programa, em suma, fadado ao esquecimento quase instantâneo e que eu mal conseguiria lembrar de haver algum dia assistido, não fosse pelo fato de que ele acabou me despertando para lembranças que nem eu me sabia capaz de recordar.
A imagem da menina pobre sambando e o contraste implícito entre esta cena e o quadro de miséria exibido na parte inicial do programa reavivaram em minha memória as imagens de um outro documentário sobre o Brasil visto de fora — um trabalho de jornalismo que, este sim, eu não hesitaria em destacar como uma das peças mais surpreendentes e reveladoras feitas até hoje por uma TV estrangeira sobre a nossa realidade.
No início dos anos 80, uma equipe da BBC inglesa veio ao Brasil gravar um documentário sobre as condições de vida numa favela do Rio. A idéia era mostrar de forma ultra-realista, no melhor estilo "câmara invisível" da tradição anglo-saxônica de reportagem, um dia na vida de uma jovem favelada carioca. A equipe subiu o morro, escolheu a protagonista e passou a registrar o cotidiano de vida, trabalho e lazer daquela jovem. O resultado, exibido em horário nobre na BBC-2 (eu estava morando na Inglaterra quando passou), foi um documentário deliciosamente incongruente e que acabou fugindo por completo do controle de seus idealizadores.
A intenção do programa era claramente explorar ao máximo as chagas abertas e a penúria do dia-a-dia na favela: a imundície e a promiscuidade dos barracos, a dieta sofrível, a falta de água encanada, o dinheiro curto, o tempo perdido no transporte público, o subemprego, enfim, as condições absurdamente precárias da vida no morro. Tudo isso a equipe da BBC foi até lá buscar e encontrou. O que eles não podiam esperar, mas as câmaras e microfones testemunharam, era que a jovem moradora daquele barraco objetivo habitasse um verdadeiro palácio subjetivo de alegria, esperança e fantasia.
Acontece que a jovem escolhida para servir de fio condutor do programa personificava a negação viva e radiante de toda a carga de sombra e amargura que o registro clínico de seu cotidiano nos fariam esperar dela. Em meio a toda precariedade de seu dia-a-dia humilde na favela, ela irradiava uma felicidade espontânea, uma satisfação íntima consigo mesma e uma libido exuberante que nós jamais conseguiríamos encontrar numa jovem inglesa de sua idade, não importando a classe social e mesmo no verão.
Embora tivesse razões de sobra para queixar-se do destino e viver na mais espessa melancolia, ela esbanjava joie de vivre por todos os poros e arrancava luz das trevas com a sua alegria interior. Recordo-me, em particular, da cena em que ela ia buscar água a certa distância de casa e, para desconcerto dos ingleses, voltava carregando a lata cheia e... cantando!
A seqüência — Paulo Prado e sua "raça triste" que me perdoe — era puro Gilberto Freyre: "Tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá — os negros trabalharam sempre cantando; seus cantos de trabalho, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira. Às vezes de um pouco de banzo: mas principalmente de alegria."
A relação entre o barraco objetivo da favela e o palácio subjetivo da jovem dá o que pensar. Não se trata, ao que parece, de um caso isolado. Ele ilustra de forma magnífica os resultados obtidos pelo Datafolha em recente pesquisa sobre a felicidade dos brasileiros. Apesar de viver e ganhar a vida em condições precárias, a grande maioria dos brasileiros considera-se feliz e amplamente satisfeita com a vida que leva: só 3% se declaram infelizes em relação à sua vida como um todo.
É plausível supor, contudo, que tanto o documentário da BBC quanto a pesquisa do Datafolha tenham sofrido os efeitos daquilo que os físicos quânticos denominam princípio da incerteza, ou seja, a interferência deturpadora do ato de observar sobre a configuração do que foi observado.
Ao ser indagado sobre a sua felicidade, o entrevistado se defende perante si mesmo da ameaça de dor que uma resposta derrotista traria e declara-se sinceramente feliz. Ao ser escolhida, entre tantas outras, para "estrelar" um programa de TV a ser exibido no exterior, a jovem carioca sente-se a eleita dos deuses e embarca num mundo de fantasias mais espesso e luxuriante que a novela das oito.
Qualquer que seja a realidade, um ponto permanece. Mesmo que o palácio subjetivo dos brasileiros não passe de criatura do princípio da incerteza — algo que, diga-se de passagem, não me parece ser o caso —, a tenacidade da garra demonstrada em não entregar os pontos e o dom de embarcar vigorosamente nos sonhos e fantasias que nos povoam são traços culturais de inestimável valor.
A disposição alegre e afetiva do brasileiro, em meio a toda precariedade do seu mundo objetivo e material, parece buscar qualquer brecha ou pretexto que se ofereça para florescer. Todo dia é "dia do riso chorar". A "ofegante epidemia" do carnaval —esse espantoso vulcão de euforia coletiva com data marcada — aí está para não nos deixar mentir.

De: GIANNETTI, Eduardo. “Palácio subjetivo aflora no carnaval”. In: Nada é tudo. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.63-66.