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7.8.07

Hudson Carvalho: "Cansei"

Eis um artigo muito lúcido e oportuno do jornalista Hudson Carvalho:



“CANSEI”


Há dias o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abespinhou-se por ter recebido uma trovejante vaia no Maracanã, na inauguração dos Jogos Pan-Americanos do Rio. Acostumado com platéias subsidiadas e plácidas, Lula surpreendeu-se com a apupada. Depois, passou a oscilar na digestão do processo. Ora, considerava as vaias naturais, supostamente assimilando-as; ora, observava-as como injustas e viciadas, contestando-as.
Esse pêndulo incorporava também outras percepções difusas e confusas. Ora, as vaias eram atribuídas a uma elite ingrata; ora, eram vistas como instrumentalizadas por uma oposição inconformada com os ditames das urnas. Essas ilações conjugadas, em parte, embasaram a suspeição governista quanto à natureza das arruaças promovidas pelo movimento paulista “Cansei”, no rastro da comoção gerada pelo trágico acidente do avião da TAM.
Em tese, o “Cansei”, como muitos de seus precursores, propõe-se como desaguadouro de todas as mazelas que assolam a sociedade civil, sobretudo aquelas potencializadas pelos descasos dos andaimes governamentais e institucionais. Amparado em causas incandescentes e justas, o “Cansei” – que nome infeliz! - ambiciona o lugar de catalisador de insatisfações múltiplas, notadamente, no caso, é verdade, daquelas que emparedam o governo Lula, tendo a animá-lo cidadãos e contribuintes justamente indignados, mas também foliões elitistas e oposicionistas juramentados. Em suma, um congênere do falecido movimento carioca “Basta”, desintegrado, prematuramente, por insuficiência popular, na sua tentativa de aporrinhar o, então, governante casal Garotinho.
É do direito de todos exercitarem a sua cidadania e espernearem contra a imobilidade, a incapacidade e a imoralidade governamental. Em geral, no entanto, infelizmente, esse tipo de iniciativa presta-se a caftinagens políticas, mesmo quando nascem sob égide virtuosa. E o “Cansei” não foge a regra. É muito difícil um movimento brotar no seio da sociedade sem se contaminar pelos rufiões de plantão. Há sempre políticos oportunistas querendo se assenhorear de aparatos organizados e de demandas nobres, transformando os primeiros em inocentes úteis. Essa simbiose, comumente, vitima os movimentos, conspurcando-os e lhes sugando legitimidade, o que os leva a definhar precocemente.
E o pior é que, comumente, muitos desses núcleos elitistas contestatórios têm a besuntá-los uma hipócrita pregação moralista e um preconceito militante. Uma coisa é o absolutismo da ética; outra é o relativismo do falso moralismo a granel.
No mais, ao incorporarem o brado “Fora Lula”, esses empreendimentos enamoram-se de um sentimento golpista indesculpável. Durante trânsito democrático, são os funis eleitorais que legitimam os governantes. Não podemos promover expurgos, fora das cerimônias eleitorais, apenas por avaliarmos um governo incapaz ou inconveniente. Portanto, tão despropositado como o “Fora Lula” de agora era o “Fora FHC” de outrora.
Esses segmentos, entretanto, não são os únicos em tentarem esgarçar a democracia. O próprio presidente Lula e acólitos costumam contribuir, quando, incomodados, ameaçam sublevar as massas em defesa de seu reino, remontando o imaginário de uma intimidação a la Chávez.
O melhor para o país é que todos assumam postura mais sensata e madura. Ninguém é obrigado a gostar do presidente Lula, e muitos têm razões concretas e subjetivas para criticá-lo e, até, vaiá-lo. Não se pode, todavia, pregar a sua degola além da agenda democrática e longe de ritos processuais. Por sua vez, o presidente tem que se habituar ao fato de que nem todos são obrigados a se simpatizarem com ele e com o seu governo, e que a exposição de queixas também faz parte do processo democrático. Nem o mais paranóico pode ver no limitado Cansei sequer um embrião de desestabilização.
A consolidação da democracia é o mais importante. E a democracia se caracteriza, principalmente, em função do respeito aos direitos das minorias. É normal que Lula, como qualquer um, não aprecie vaias dirigidas a si. O presidente da República tem a obrigação, no entanto, de aprender a conviver com elas. O Cansei, mesmo que contagiado, cumpre um papel. Que o governo cumpra o seu.


Hudson Carvalho